terça-feira, 29 de novembro de 2016

Poema escrito enquanto eu dormia



O silêncio sibila sincero através do meu ouvido míope
Gotas de alho atravessam meu tato inodoro
The heavyweight George Foreman defends his title against Ken Norton
Teço esculturas através do escuro silêncio sólido na edícula pastoral
Meus ancestrais bípedes plantam bananeiras sobre aquarelas
Minha bola esquerda se contrai nefasta num processo de evangelização

Muhammad Ali, the dancing master with tremendous hand speed

Licenciatura estéril
Herpes
Santo Agostinho catequizando putas no Pará
Consciência mole, inconsciente ativo
Lacunas no discurso elástico de Lacan




terça-feira, 22 de novembro de 2016

morte



seguir vivo — tarefa impossível.
não pertenço
nunca sei pra onde ir
e se pareço livre é porque tô sempre fugindo


viver é uma obrigação.


nem arte, nem ofício
só a morte liberta.
mas ao suicídio me falta coragem
(talvez pretensão de ser eterno)

então sigo
não pertencendo
sempre fugindo
trêmulo
obrigatoriamente

e noites cruéis hão de chegar
posição fetal
uma luz acesa
imóvel, estático
nulo
escrevendo poesia inútil
enquanto arquiteto a melhor forma de acabar com isso



Ex



Expulso da sala de estar
cidadão do mundo
Me adapto num banco de padaria


Meu passado encaixotado
meu lar
             encaixotado, bagunça

Meu reflexo no balcão de frios
expulso do passado
ex-marido
Malparido, parado
       esperando o relógio me expulsar
em transe, delírio
   
      ex



  etc



banco de rodoviária



tenho tudo que sempre quis agora:
folha em branco
tempo
um banco de rodoviária
passagem no bolso
lápis
e a tela pálida do amanhã

no entanto sigo tonto
tenso e

triste.



estrada-canção



indo embora
sempre
daqui

me vi rio
me vi mar
montanha

estar, estado de ser
   passageiro   estrangeiro   turista

me vi frio
me vi bar
calçada

indo embora
sempre
daqui


estrada



mitridatismo



do silêncio nasce a dúvida
diluída, mitridática

da folha arrancada o poema
manuscrito, apressado
em dúvida.

do fim de um ciclo, teu sorriso
teu rosto
teus cachos
teu pescoço

da longa espera nasce o sonho, tédio.
da longa espera uma esfera opaca
diluída,
murcha
mapas viários, continentes.

da próxima linha, a insatisfação com a poesia
que agora nasce:

                            fim.




parede de vidro




parado pareço estranho
pintando poema em tela-caderno

no metrô meço meu passo
lento

lendo poesia
faço

respiro água
com gás

me banho na clareira
parede de vidro

parado no tempo

me torno estátua




segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Inseto absoluto




Surge úmida a bailarina na parede que me abraça.
Parece gingar firme e macia, celebrando
a urgência desse monstruoso inseto caído. 
Duro e absoluto,
perninhas aflitas sobre carpete de cimento e musgo

Tudo é magnífico nesse inseto angustiado!

Suas dimensões e a forma como ele segura sua minúscula cabecinha
com suas minúsculas mãozinhas
e também o modo como ele aponta para o céu, amaldiçoando os deuses
por terem-no condenado à natureza de inseto-pensante

A bailarina na parede gira e gira e exala um cheiro de banho 
que me acaricia o coração e o sexo.

Venta leve
Um rádio distante toca músicas mesmo banais, conferindo à cena toda uma paz bairrista.

O inseto
segue buscando uma resposta.

Eu não.





domingo, 9 de outubro de 2016

Amanda,



queria te dizer agora que tá tudo bem.
que eu consegui a passagem
que deu tudo certo
que te vejo amanhã de manhã.

mas incomunicável me limito a escrever canções
dizendo que queria te dizer agora que tá tudo bem
que eu já respirei
que encerrei a viagem,
que deu tudo certo
e foi muito bom.

te vejo amanhã de manhã.
te beijo amanhã de manhã.
tua língua no café da manhã,
                                  faminto.

não minto:
queria te dizer agora que o tempo não passa
e os minutos ferem
meus olhos que querem
te ver logo -- que esperem!
                 
amanhã de manhã.



quarta-feira, 28 de setembro de 2016

flores nas mãos



sou uma bomba-relógio atada a um corpo estranho ou
carrego nas entranhas fogos de artifício
que explodem sem cor?

acordo de mais um suicídio mal-sucedido.

"toda bomba pode ser desarmada", ela me diz com calma.

suspiro com pesar
porque
apesar desse cuidado
e a boa intenção de quem ainda acredita,
já conheço os passos dessa estrada
e sei que as explosões seguirão ocorrendo.

ela não quer saber,
insiste em me salvar.

temo machucá-la,
temo não ter mais jeito.

"isso que você me diz, tantos já disseram" e no entanto sigo assim
ingerindo esses coquetéis destrutivos.

"pois agora sou eu aqui, dizendo outra vez
e você vai me ouvir".

não respondo.
ouço o tiquetaquear aqui dentro.
preconizo novas explosões
após raros dias de calmaria.

quem diria,
depois de tanta toxina
alguém se aproxima
com flores nas mãos.



quarta-feira, 21 de setembro de 2016

pela fresta



a velha buzina do trem
novas cicatrizes, diretrizes
um novo nome,
seu sorriso de manhã

também a lesma de mandíbula torta todo dia na mesa, na sala, pelo vão da porta
do quarto entulhado
onde dormi
dormia
durmo
agora

(chove forte.)

espio pelas frestas da janela:
há ratos na cozinha,
a luz acesa

respiro
me alongo
bebo água
deito novamente

         espero

a salada de repolho ainda estará lá
mais tarde



terça-feira, 9 de agosto de 2016

08/08/2016



doutora, hoje fui um bom rapaz.
levantei tarde, é verdade, mas sorrindo e
tomei o remédio em jejum.

elogiei minha esposa, beijei sua testa
fiz lentilha

comi com farinha
e só então fumei o primeiro baseado do dia.

(não enlouqueci como meu Tio-N,)
pratiquei exercícios
alonguei todo o corpo
estudei
comuniquei assertivamente

bebi bastante água
com bicarbonato
escovei os dentes

estendi a roupa
assisti futebol antigo
limpei o cinzeiro
juntei migalhas
marquei datas na agenda
reguei as plantas
conversei com os gatos e
tomei apenas 10mg à noite.

escrevi até um poeminha, sabia?

(...)

suicídio?
não, hoje não.



quarta-feira, 3 de agosto de 2016

palavra na noite densa



olhos abertos não enxergo
meu corpo inerte a 80km/h
dentro da noite densa

suspenso no tempo
                                  de Cronos
decido enxergar o tempo do palco

e revivo gota a gota
tudo aquilo que um dia
sonhalizei



27/07/2016



vivo a noite dos ébrios
e amo-os,
ébrios.

mas

dias adiante
           suando frio
respiro enfim ao perceber
a serenidade do motorista abstêmio

que me guiará
quilômetros, estrada
volta ao lar





crise





bagagem horário
passagem arroz com ovo
maconha citalopram valium
despedida abraço 
pressa
suor frio falta de ar tontura
metrô
bagagem pressa culpa
falta de ar calor suor frio
incomunicabilidade
sede pressa
pânico     vertigem
crise
rodoviária        horário
água
respira diafragma saudade
pazpassagem estrada
fim





terça-feira, 2 de agosto de 2016

sexta-feira, 15 de julho de 2016

azia


escravo de mim mesmo
sou o rei do meu dia.

sentado no sofá-trono
            (torto)
em absoluta
                     letargia


terça-feira, 12 de julho de 2016

às tantas



então
é por isso que as pessoas regam plantas
                         e levam seus lixos pra fora
                               e recorrem a um Deus
                                               e têm filhos…
e é por isso que os pais abandonam seus filhos
e os filhos procuram os pais por toda a vida
                                        em outros rostos          
                                            e identidades
e ao encontrarem se decepcionam e choram.

é exatamente por isso que alguns cometem
suicídio e fogem, enlouquecem, erguem prédios
e escrevem poemas se queixando disso
(…)
frequentam puteiros, enchem a cara de valium
ganham estradas, perdem o orgulho,
brocham.

é por você que homens tacam fogo em seus próprios olhos
e transtornam avenidas nus e passam a noite em cana
e sustentam as têmporas com um gole de vinho
e enxergam afluentes nascendo da pele frágil
martirizada por canivetes cegos que foram úteis na estrada quando a única opção era manga verde do pé.

é por isso que marcam-se obras-primas.
comemora-se a taça ou recordes

é por isso que as mulheres tomam anti-gases e compram revistas descartáveis
e alisam o cabelo descartável e disputam o amor descartável com uma faca sob a saia.

por isso tantos documentários sobre 
fome, guerra, capitalismo, aborto, Hitler, carros, equilibristas, mamutes, répteis
depressão,
                 incompreendida pelos que nunca sentiram isso, então seguem
regando plantas, tecendo netos, unindo e destruindo lares,
colocando seus lixos pra fora, recorrendo a um Deus…
confortáveis, 
em consignação, à espera da extrema unção que redimirá
seus pecados secretos que sequer são excitantes..

é disso que as baratas se alimentam.
é por essa fresta que entram répteis com sorrisos injustos
roubados de homens ensandecidos que não queriam o aborto
mas tiveram sua sorte abortada por mulheres aparentemente 
frágeis e
doces.

por isso as pontes são tão altas
e os esgotos tão escuros.

por isso tantos idiomas, tantas crenças, tantos mantras, tantos filmes, tantas palavras…
por isso a incompreensão absurda sobre um fato simples,
o choro,
o aborto.

por isso os filhos seguem buscando seus pais por toda a vida;
em corpos, copos, cabelos loucos, olhos opacos,
peles insípidas, putas em alemão,
valas sujas, rodoviárias, borracharias, bares,
quartos de hotel,
                     o susto de um alce em meio ao silêncio suspeito da floresta.

por isso estou aqui,
por isso tantas palavras.

para espantar isso
que insiste em chegar
quando o equilíbrio já acena como um velho camarada…

e foi justamente isso que estiou a tempestade de lágrimas
por tempo indeterminado.

bom.
sem lágrimas.
é mais fácil assim.

enfrentando
com olhos brutos

e prontos.


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inverno, 2012, São Paulo/SP                                                                                                                                               

segunda-feira, 11 de julho de 2016

estria



nossa estria é um mosquito zunindo.

o poeta diria corda no pescoço
ou grilhões sobre os membros
mas não é assim tão vital.

é um cachorro mordendo o calcanhar
é tentar lembrar o que se esqueceu
e não lembrar
é rimar sem intenção.


só me enxergo com seus olhos e o que vejo é cruel.
nossa estria são cupins roendo meu ego
quando a noite cala.

com maestria você rege a orquestra fúnebre
do silêncio –
seu rosto se transformou,
parece borracha.

nossa estria são cupins roendo minha cama quando a noite seca.
                      
essa estria –
que embora às vezes quase suma –
                pode ser quelóide coronária
quando peço doses de Cynar
e só percebo na terceira dose
que essa é a bebida do nosso
primeiro ritual –
                e já aqui você dissimulava.

                               as estrias que você tanto tentou esconder
                               não se parecem em nada com as que
                               exponho agora


essas doem demais,
acredite

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inverno, 2012, São Paulo/SP                                                                                                            

não é só isso



não é só isso, amigo.

é já ter compreendido o filósofo,
é saber destrinchar uma intenção
perfeitamente,
é não encontrar dificuldades em levar uma mulher à cama e
conseguir prever todas as palavras que sairão daquela boca vil
e ser ídolo, ser exemplo…

é estar vivo, com pernas que funcionam e dedos que apontam,
é ter rompido a placenta e ainda assim não compreender
nada
quando ela sai pela porta levando sua toalha e
todas as outras coisas que me faziam companhia em
noites como essa.

sua bicicleta atravancando a cozinha tinha até conquistado seu espaço
e parecia não mais atrapalhar,
aliás,
já fazia parte da minha mobília precária.

sua vermelha toalha pendurada como uma cortina de sublime tecido.
seus cabelos como água-viva espalhados por toda a casa…

bem, ainda tenho o filósofo, a cama, a boca
e palavras que me salvam em
noites como essa
onde já sei tudo e conquistei tudo
mas pareço um leproso ao espelho.

nessas noites de vinte e quatro horas e cupins.
nessas noites de comprimidos.
noites de faca afiada, de martírio, auto-piedade,
noites que se parecem em muito com noites.

noites de tuberculose.
aneurismas.

de culta incompreensão dos fatos,
de sábias palavras inúteis,
de podres metáforas pedantes,
noites de úmido frio e insônia.

noites sem ela ali,
desfilando sua nudez a meu deleite
enquanto me espalho pela cama sentindo esse breve amor
que uma toalha vermelha

é capaz de enxugar




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inverno, 2012,                                                                                              
São Paulo/SP                                                                                                

feak i dem



nossa tentativa de agir do modo mais sincero possível
me pareceu um grande teatro
onde encenávamos personagens admiráveis
amorais
sem regras
                selvagens

era sincero.
mas escancarar essa sinceridade foi um ato premeditado
combinado e tal
ideia minha

na real era um jogo:
testar a elasticidade da convivência


é possível ser sincero o tempo todo?
ela hesitou bastante e disse não
concordei.


existe um caminho?


sim, inventar idiomas:

desma  feak i dem
rosh-flo-trinj
blei CLU CLUU CLUUUU
plic vlei flou pl
trrrrrrrr piiiiii


pronto.
essa é a verdade do universo no meu idioma.
agora traduza
                               e
boa noite





__________________________________
inverno, 2012, São Paulo/SP                                                                                                         

domingo, 5 de junho de 2016

Leo Dalice - Varre a Rua Velha (Demo)







Leo Dalice atua como compositor, arranjador, instrumentista, letrista e cantor.



Gravação: Marcelo Dubianchi



(Demo não masterizada.)






domingo, 8 de maio de 2016

entre-dias



condenado
mais uma vez
a esse sofá movediço

sem brilho
sem surpresas
sem álcool

tomando um chá artificial de gengibre com limão
fingindo estar em paz.

os remédios não fizeram efeito hoje.

meu estômago dói.

sinto uma força elétrica circular por toda a minha pele,
refém desse corpo.

minha respiração ofegante não é capaz de romper o silêncio assustador
que me oprime e faz segurar minha própria cabeça, apertando as têmporas.

o relógio marca 00:58
me encontro suspenso entre-dias.
horas escuras virão.

já não consigo dormir na minha cama.
já não consigo me masturbar.
já não compreendo esse rombo entre estômago e coração.

(todos sorriem.)
(falar é obrigatório.)

preciso de um abraço apertado 
não quero ninguém por perto.

por que caralhos eu simplesmente não consigo aceitar essa noite comum, nesse sofá
com meu chá artificial?

sou bom demais pra isso?


escrevo com dificuldade.
entre um verso cuspido e outro arrotado
fecho os olhos, espero mais um tremor passar.
seguro minha cabeça para que ela não despenque do pescoço e role pelo chão.

nesse momento não há nada que me faça querer estar vivo.
tudo me parece absurdo.

por exemplo:
pra que tanto fio?
pra que tanto papel?
pra que tanto prato? talher?
pra que outra televisão?
por que tanta lata de milho no armário?
por que essa euforia-letárgica aqui dentro?

é simplesmente incompreensível.

não posso parar de escrever.
o Grande-Nada me aguarda,
imbatível.

uma garrafa de whisky.
uma garrafa de whisky e meus problemas estariam resolvidos.

o relógio marca 01:09
faz frio lá fora.
mas muito calor aqui
dentro dessas roupas,
dessa pele elétrica, desses pêlos latinos sobre meu corpo.

escrevo sobre morte para não pensar em morte.
meus dentes rangem.
me falta ar.

alguém resolve fazer estardalhaço no corredor do prédio e o barulho me atinge como navalha no ouvido.

pra que tanto barulho?
pra que tanta risada?
caralho.

(...)

minha gata vem até mim. se acomoda entre minhas pernas.
traz um olhar sereno.
me olha e me lambe.
pra ela está tudo bem,
basta que o pote de ração esteja cheio.

"te amo", eu digo.
ela não compreende. segue lambendo suas almofadinhas.
sinto vontade de mordê-la. esmagar seu corpinho quente,
mas ela está agora totalmente encolhida
ronronando sublime entre minhas pernas.

ela me trouxe paz.
salvou minha noite,
por enquanto,
1:21.




segunda-feira, 2 de maio de 2016

apatia




"parabéns por mais um fracasso", disse o rapaz diante do espelho
"parabéns por mais um fracasso", disse o rapaz de olho vermelho

 parabéns por mais um fracasso.
 parabéns por mais um fracasso.

 apatia
incompetência
 frigidez
  gosma            letargia


parabéns por mais um fracasso.
parabéns por mais um fracasso, garoto.

"parabéns por mais um fracasso", disse o rapaz diante do espelho
"parabéns por mais um fracasso", disse o rapaz de cachecol e calvo

disse o rapaz de cachecol e calvo
disse o rapaz de olho vermelho
                                  disse o rapaz de casaco azul diante do espelho






eu queria ter:


a mão direita do baden powell
a esquerda do muhammad ali e
o estômago de um adolescente





terça-feira, 19 de abril de 2016

beabá



mulher de marte,
               amar-te
          é uma arte
                 à parte.



sábado, 16 de abril de 2016

eis isto:



hesito  logo
              desisto

nesse quesito,
                existo.





quarta-feira, 23 de março de 2016

um grito na noite


o que nós fizemos?


um vidro quebrou
uma cadeira caiu
o gato rosnou
e então um grito alto,
daqueles que vêm de dentro da alma

"almas não gritam", ele diria.

o corpo com fome grita
a garganta seca grita
o filho abandonado grita
o corpo com ódio grita

mas alma não grita.

a alma está entre o estômago e o coração.
não é um órgão ou glândula,
mas está lá, espremida.

o estômago vazio grita
o coração inerte grita
o gato adestrado já não grita 
a falta de espaço provoca o grito.

o que poderia ter sido,
os passados possíveis...
     um eco.


então uma gaveta se abriu,
ele mexeu nos talheres
e foi aí que o corpo caiu no chão.

e a esposa?

demorou um pouco.
ela abriu uma porta,
veio andando depressa
e quando chegou na cozinha
deu o grito mais assustador que eu já ouvi na minha vida.


os vizinhos distantes também ouviram
mas seguiram suas novelas.

afinal, foi só mais um grito na noite.







noite de tédio em maio de 2012



tédio.
nenhuma rota de fuga hoje.
ilhado no meu recanto
alheio à chuva
filtro sons
mato alguns mosquitos, mato o tempo, corto as unhas do pé.

sinto que alguém me observa.
atuo numa fantasia premeditada, esperando que algo aconteça.
nada jamais acontecerá.

cato fios de cabelo pela casa.
ouço a chuva,
corroído pelo vazio.

escuto passos no corredor e imagino uma visita inesperada.
outra porta se abre,
minha fé se fecha.

a chuva resolve se lançar com tudo
me fazendo lembrar de um amigo que mora na rua.
torço pra que ele esteja seguro.
(certamente estará.)
vive na rua com a filha de um diplomata nigeriano.

tempos atrás, essa garota me ofereceu um boquete no meio de uma noite turva
por 5 reais.

não aceitei.

só não consigo me lembrar o motivo
disso tudo.



05/2012

quarta-feira, 16 de março de 2016

política


me sento apático para escrever.
o país ferve lá fora, bem longe.
me sinto absolutamente fraco.

nada novo.

caminho devagar, de meia, em silêncio
para não acordar o bicho aqui dentro.

os escândalos políticos não me interessam.
os escândalos políticos não me empolgam.
não há nada novo nisso.

vejo as multidões se agitarem.
vejo as multidões se agredirem.
cheiro o manjericão crescer na minha janela.
observo meu gato se lamber com afinco.

ouço o trânsito lá fora.

os bares seguem cheios.
agricultores de mãos calejadas seguem colhendo alimento.
empresários de mãos frias seguem fazendo fortunas frias.
suicídios seguem silenciosos.
assuntos sexuais seguem mal resolvidos:
os mesmos traumas,
os mesmos tabus.

a história segue sendo escrita:
as mesmas palavras,
as mesmas cores:
azul, vermelho
verde, amarelo.

não há nada novo lá fora.

os escândalos políticos não me impressionam.
sigo alheio, imune, inerte, em silêncio.

um silêncio pesado.
silêncio de morte.

choro de repente
e me assusto.

algo enfim
me surpreende
hoje.


sábado, 12 de março de 2016

para não enlouquecer totalmente



mantenha-se hidratado
vai fazer um boxe
lava a louça
separa o lixo reciclável

passa um pano no chão
ouve um jazz
faz umas flexões
pula corda

toma um banho quente
fuma um cigarro
bebe um café
dropa um valium logo

luta mais boxe
ouve Lenine
Racionais
Yamandu

faz um alongamento
medita
me dita a direção.

abraça tua esposa
pula mais corda
limpa a areia dos gatos
come um pouco

lava aquela roupa
termina aquele poema
grava aquela ideia nova
respira um pouco.

brinca com o gato
treina jab com a direita na frente do espelho
(mantém a guarda alta)
passa arnica no ombro.

bola mais um
faz um café
bebe água com gengibre
mantenha-se sempre hidratado.

só não fica nesse sofá
definhando

vai





terça-feira, 8 de março de 2016

isso não é um poema



durante os últimos nove anos da minha vida eu fiz abuso constante de álcool.

não tô falando sobre ir pra balada no sábado e beber umas tequilas.
eu tô falando sobre dependência química. alcoolismo.

nove anos.
dos 17 aos 26
tendo o álcool como companhia,
muleta.

caí muitas vezes. muitas.
perdi amigos, me afastei.
fugi da família, me escondi.

nove anos vendo o álcool arruinar meus dias, meu corpo.
nove anos passando vergonha em público.
nove anos num buraco que eu teimava romantizar.

admiti logo cedo minha fraqueza perante a doença.
tá,
e agora, José?

passei, acredito, por todas as fases do alcoolismo.
da adaptação à paranóia.
da negação à depressão.
da barganha ao fundo do poço.

no sofá, sozinho, em pânico.
semanas sem sair de casa,
sem abrir a cortina (um cobertor na janela)
cancelando compromissos, aulas.

a doença me causou delírios e alucinações.
ódio do mundo.
fome.

exilado. mutilado.
eu tinha tudo pra ser só mais um bêbado fodido
ou um número na lista de suicidas.

muita gente desacreditou.
disseram até que eu tinha virado mendigo,
acredita?

mas sempre carreguei comigo o amuleto.

o meu poder superior:
a Música.

foi a Música que me manteve vivo, lutando.
foi pela Música que decidi não me matar naquele dia
com a faca engordurada na garganta,
na cozinha do meu calabouço, sozinho.

(meu corpo seria encontrado dez dias depois)

mas a música não era suficiente.
ou o amor por uma mulher.

busquei ajuda.
psicológica e psiquiátrica.
nove anos depois.

gastrite, traumas, obsessões, calvície.
cansei de sofrer.
cansei.
chega.

parei de beber há cinco meses.
já recaí algumas vezes
mas sigo firme.
vivo.

tenho a Música como religião
o boxe como forte aliado
e pessoas que me protegem de mim mesmo.

eu, que tanto me fragmentei.
que fui vítima e carrasco.
autor e personagem.
criador e criatura.

percebi, afinal, que corpo e mente não são departamentos distintos.

e eu  sempre eu  não sou vários, como costumava dizer.
sou apenas um.
na lama elétrica da vergonha ou no palco,
sob o foco do refletor principal.

sempre eu.

sem pagar simpatia.
a vida segue amarga.
a vida segue.
eu sigo.
sóbrio.

sobrevivente.



segunda-feira, 7 de março de 2016

Muhammad Ali



Muhammad Ali
ali
diante
de mim
colossal
impávido

Negro.

felino
pugilista, caçador 
um leopardo.

exilado dos ringues
e restaurantes
como desertor.

Negro.

converteu-se ao islamismo,
abandonou seu nome de escravo,
libertou seu povo
e conquistou o mundo branco.

como Miles Davis,
agredia forte e ligeiro entre longos períodos de silêncios
sincopados.

transitou entre o ballet pesado de Tchaikovsky e o berimbau
tranquilo e infalível de Naná,
Negro.

Ali
ali,
alucinado,
versus Larry Holmes invicto e jovem:

A fúria negra ressuscita outra vez.

Ali sempre guiado pela música imprevisível que sua mente capta.

Contra Trevor, aos quarenta, frequência nula.
Soa o gongo final.

Ali,
aqui e em qualquer lugar:
o maior atletartista do século XX.



quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

enquanto espero



levanto
me alongo e
20mg de citalopram

café pra acordar,
omeprazol pra não implodir

          música

um ansitec pós-almoço
tédio,
masturbação.

bicarbonato de sódio.

5mg de valium quando a tarde cai
maconha quando enfim escurece,
café pra rebater.

          cinema

alguma coisa pra dentro do estômago
mais maconha (porque álcool não pode)
10mg de valium pra frear a máquina,
relaxante muscular pra ficar macio.


letárgico no sofá,
escrevo má poesia

          (orgasmo)

fumo aquela ponta,
lá se foi mais um dia


             
                               
                                            (silêncio)
               





a hipocondria é uma resposta à espera.





fevereiro/2016                                                                                                                     

Pangéia - Teaser


domingo, 21 de fevereiro de 2016

Me dói (Canção)


Me dói
te ver assim
gasta
da festa que eu não fui chamado

Dói
te ver assim
chegando usada,
atrasada,
da festa que eu não fui chamado

Me dói
te ver assim
chegando usada, abusada,
cuspida da festa que eu não fui.


Me dói o seu bocejo que sai assim,
      gasto
por bocas que não me chamaram
pra festa que eu não fui
                              porque fui te esperar
                              em casa

                                                  quieto.


Dói mais que te ver assim,
você não me ver mais.


domingo, 7 de fevereiro de 2016

O verdadeiro terror


Em 2010 eu saí de uma casa superlotada e fui morar sozinho em SP.
Lá, vivi num cubículo sem janela.
O ralo do meu banheiro era um rombo indiscreto que fedia o fedor de todas as casas da vizinhança. Meus vizinhos passavam o dia inteiro fora, cumprindo tarefas que odiavam. Só quando eles cagavam (a merda de um dia inteiro) eu notava suas presenças.
Eu dormia num colchão no chão e a casa era infestada por baratas. Eu me alimentava de água com farinha de milho, cerveja barata e literatura. Eu e meu violãozinho velho.

Desnutrido, recém-traído, sozinho naquela cidade, eu me fechei no meu mundo imundo. Eu andava pelas ruas completamente transtornado e sentia raiva de quem se alimentava.
Eu emagreci 20kg, perdi cabelo e sanidade.
Eu sofria alucinações.
Eu sentia baratas no meu corpo. O tempo todo.
Eu lia Dostoiévski de cueca no chão sujo. Coava a mesma borra de café até três vezes.
A TV de 14 polegadas do antigo morador estava quase sempre ligada, mas nunca com som.
Me apaixonei algumas vezes nesse período, mesmo notando minha decadência iminente. (Elas se preocupavam comigo.)

Cortaram minha luz. Era inverno. Chuveiro elétrico.
Eu passei três semanas tomando banho gelado, lendo Balzac no escuro, iluminando as páginas com uma lanterninha até que acabasse a bateria.
Eu havia acumulado, ao longo do ano, roupas molhadas num tanque. Tudo apodreceu e se tornou toca para inúmeras espécies de inseto. Era meu corpo se livrando da velha carapaça.

Eu pensava ser seguido e espionado. Eu conectava todas as pessoas da rua numa complexa trama contra mim. Eu não tinha telefone nem internet. Não tinha facebook. Eu não sabia o que era um meme.
Eu cheguei ao fundo escuro de um estado neurótico-obsessivo.
Eu tentei suicídio duas vezes.
Eu comi uma puta sem camisinha num inferninho de beira de calçada popular em Osasco numa terça-feira.
Eu era protagonista e vitima da minha tragicomédia cotidiana.
Eu sentia muito ódio. Eu. Muito.

Mas nada disso me preparou pro verdadeiro terror humano, que são os comentários em portais de notícia.



quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

dois verbos



                             quando ouvir "sente!"
                             não senta,

                             sinta!






terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

with my arms







escrevo meu berço                                                                                                  
             meu abraço                                                                                                  








Teto


Se estou assim,
deitado, estático fitando o teto
não é porque estou louco ou
desesperado ou prestes a cometer
o bom e velho
Suicídio.
É porque estou vivo e isso basta.

O teto é tão simples quanto parece;
É um teto. Sem surpresas.
Não o encaro na intenção de
buscar uma resposta para sei-lá-o-quê.
Estou aqui paralisado, fitando o teto
por não restar outra opção.

Não quero confraternizar com os
outros. Não quero sorrir ou
demonstrar interesse ou 
combater…

Talvez passe a noite aqui, devorando meu teto branco.
Farei isso não por estar deprimido.
Farei isso porque estou vivo. Sem surpresas.

E isso basta.

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                                             03/2012

Pacato inferno


O som leve do ventilador portátil não interrompe o silêncio tropical; pelo contrário: intensifica-o. Todas as janelas abertas não dão vazão ao calor dantesco e atípico. As moscas vagam fartas pela merda dos gatos que, exposta ao calor, fede o dobro.
A cena é de dar inveja a qualquer escritor de sub-literatura policial. Não há mesa de escritório ou arma, é verdade. Sento-me sobre um travesseiro murcho, enrolado no chão, de costas apoiadas num sofá velho fedendo a vinagre.
Nesse exato momento encontro-me suspenso na existência. Busco um tipo de paz interior, mas as gotas de suor me escorrendo pelas costas distanciam qualquer possibilidade. Esfrego as costas no sofá. O travesseiro se desenrola. Dou um impulso com os joelhos, o corpo salta um pouco e tento nesse ínterim arrumar o travesseiro, mas caio rapidamente sobre ele, ainda mais desfeito. Esmago os dedos com o peso do corpo. Meu saco vai parar embaixo do cu, todo empapado de suor. Um mosquito talvez cego tromba no meu nariz  desperto totalmente da paz que vislumbrava. Descolo o saco do cu, enrolo o travesseiro outra vez, ajeito a postura, fecho os olhos, respiro sentindo o diafragma cada vez mais relaxado, estico a coluna, giro o pescoço e tento encontrar um ponto de fuga no negrume dos olhos. O suor escorre. Muito. Tomo conhecimento de dobras até então ocultas no meu corpo. Estou gordo. Levanto bruscamente, vou até o banheiro lavar o rosto, cometo o erro crasso de olhar o topo da minha cabeça oleosa e calva. Ontem mesmo eu era um cara bonito, com certa elegância. Pra onde vai a vitalidade? Escorre como suor? Fede como merda de gato? Gira sem parar como o ventilador portátil?
É impossível permanecer aqui. Visto uma bermuda limpa e uma camiseta fedendo a sovaco. Tudo bem. Recolho cinco sacolas de lixo antigo – uma delas furada, fazendo escorrer chorume pelo chão – e desço as escadas frias desse prédio pacato onde moro.

A rua parece o inferno.
Vago tentando encontrar o diabo que enfim me libertará.

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                                                                                 10/2014

sábado, 30 de janeiro de 2016

três noites



a casa deles é do outro
e enquanto eu viver vai sempre ser minha também.
       inevitavelmente.

posso deixar tudo que quiser lá.
posso voltar a qualquer momento
resgatar livros, rascunhos, mobília, instrumento.

a casa deles que é de outro é frequentada por todos,
   a casa é um caminho no tempo —
      pavimentado por fósseis de tudo.
                                                                   .
                                                                 .
(muda o tom)


tudo acontece ainda em outros mesmos lugares com outras mesmas palavras


em vão
eu vim.



                  vago






quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

A hora mais triste


Contemplo o crepúsculo com olhos turvos de cerveja e astigmatismo.
O comércio baixa as portas.
Motos e carros transitam lentos entre-sinais.

Percebo que não posso ser livre.
Não posso sequer querer ser livre.

Se me liberto, corro numa só direção.
(Fugir é ser livre?)

Como bússola — farol de quem se desprende —,
que aponta sempre o Norte — Útero do universo.

Nem mesmo o útero é livre!

la vita è bella


a vida é uma estria amarela bem no meio da cara. que a gente espera esbranquiçar.
é o café de ontem bebido e cuspido pela manhã.
é a pia entulhada de louça.

é a estria amarela que escurece bem no meio da cara.
é o gato correndo assustado quando a porta se abre.
é a furadeira do vizinho pela manhã.
a mesa alta demais. é tendinite no coração.

um silêncio enfim conquistado. breve demais.
o almoço gasoso duas horas depois.
encher os bolsos de moedas. é limpar a porra no próprio cartão de visita.

a vida é o pé do porco na feijoada.
é o cachorro da rodoviária.
burocracia na biblioteca.

são as prostitutas audazes às três da tarde na avenida principal reconhecendo seus clientes de terno.
é o patrão sádico.
o empregado explorado. servindo cerveja gelada pros funcionários do banco. 
happy hour.
é a testa suando abstinência.
vasculhar o bolso sem moedas. não ter um cartão de visita.

a vida é uma estria violenta no meio do peito
que a gente torce pra que exploda.


cactos


quando ela enfim desabrochou,
eu brochei

e munidos de palavras banguelas,
tornamo-nos cactos.



quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

VHS



o filme francês me comoveu
com toda sua melancolia
solidão e pílulas

então decidi escrever um poema comovente
que arrancasse do leitor
essa mesma melancolia que sinto agora.

tentei retratar o homem estrangeiro,
o suicida,
a moça catatônica na cama,
a jovem atriz que me remeteu ao passado esquecido...

o poema ia bem.
repleto de lirismo e uma estética VHS

mas quando notei
o estrangeiro em mim,
a solidão dessa noite morna,
meu passado incompleto
e as pílulas que ingeri para afastar pensamentos suicidas,
compreendi: o poema já estava escrito.
em mim.

na minha pele, meu trapézio
no meu estômago.

o poema era meu próprio corpo
catatônico
em minha cama impregnada
de suor
e letargia.