quarta-feira, 26 de março de 2014

Antônio Carlos

Antônio Carlos viveu vida amarga
porque teimou ser amargo durante a vida.
Antônio Carlos foi homem de poucas palavras e demonstrações.

Antônio Carlos jamais chorou, exceto no último dia de vida, quando cedeu a um infarto fulminante.


Entrevista de emprego



Hesitei no último botão da camisa. Jovem ambicioso ou homem responsável? Óculos ou não? Amassei as sobras laterais do cabelo, tentei ajeitar os fios que ainda me restam no topo, puxei um pequeno tufo pra cobrir uma espinha tardia e decidi: homem responsável. Fechei o último botão, ensaiei um semblante ambicioso, calcei um par de tênis e me dirigi pra entrevista.
Não foram muito didáticos; “Compareça pessoalmente, traga documento com foto, e currículo”.
Ansioso, fiquei pronto com larga antecedência. Quando ganhei a rua percebi que poderia ir a pé. O trajeto não era longo. Não pra mim. É verdade que o sol se fazia evidente, meu relógio marcava 15:15h, a entrevista estava marcada pras 16h. Deduzi que percorreria algo em torno de três quilômetros. Confiante, de óculos, camisa fechada e currículo na mão, peguei a avenida principal, ainda muito movimentada. Por diversão, decidi repassar o discurso ensaiado. “Ah, sim, tenho total disponibilidade de horário. Com certeza, pontualidade é meu ponto forte. Sim, sou músico há mais de dez anos e já trabalhei com crianças e adultos. Meu método? Ah, eu gosto de moldar as aulas de acordo com o gosto do aluno. Quer blues? Vai ter blues. Quer samba? Vai ter samba. Teoria? Vai ter teoria. Violão clássico? Violão clássico. Filhos? Não. Sou casado, mas filhos ainda não, haha.” Decidi então que seria mais firme. Mais sério. Não sorriria, falaria pouco e ainda passaria uma imagem de durão. Curitibano prefere assim, esse povo carrancudo e xenófobo. Já faz um tempo que decidi tirar o “Sou de São Paulo, vim pra Curitiba porque me casei com uma curitibana e agora vivo aqui” do meu discurso, percebi que não funcionava. Certa vez, numa entrevista coletiva, onde eram disputadas 5 vagas por 12 pessoas – eu sendo claramente o mais bem preparado dali – para trabalhar numa livraria, recebi um “não” que me dói até hoje. O motivo? Ter vindo de outro estado. E a imensa barba. Ali constavam pessoas semi-analfabetas, sem experiência, inocentes e deslumbradas; gente burra mesmo. Ainda assim, não consegui a vaga.
Resolvi investir na carreira de professor. No currículo, menti descaradamente sobre o tempo de experiência dando aulas, floreei minhas habilidades, descrevi todas as minhas atividades relacionadas à musica num período de dez anos – esse tempo é real.
Então percebi que o trajeto era muito maior do que eu havia imaginado. Faltava vinte pras quatro e eu não estava nem na metade do caminho. Dei conta de que andava lentamente ao divagar; apertei o passo. A camisa ensopada de suor. A testa derretendo. Os óculos escorregando pelo nariz oleoso. Meu humor despencou e eu passei a andar sem pudor; como um louco, tropeçando, em zigue-zague, provando pra mim mesmo a minha falta de equilíbrio. O calor só aumentava e nada de eu chegar na tal escola de música. Dez pras quatro, eu não fazia ideia de onde estava. No mapa parecia muito diferente... Decidi pedir informação e abordei duas garotas na faixa dos 16, que me julgaram mal, apertaram os passos e atravessaram a rua. Fiquei puto. Cogitei ir atrás delas e explicar que estou a caminho de uma entrevista de emprego e não faço ideia de como chegar. Mas só perderia mais tempo.
Abordei um taxista que me explicou com segurança, dizendo que a rua era “logo ali, à esquerda”. Sorri com a alma, agradeci meu amigo e encontrei a rua.
Cheguei à escola faltando dois minutos pras quatro da tarde
Quando entrei, não distingui nada. Estava escuro lá dentro. Minhas pupilas, ainda diminutas pela claridade excessiva do sol, suaram para se adequar ao novo ambiente. Um silêncio peculiar pairava por ali. Um silêncio totalmente imune aos carros lá fora, incrementado pelo ruir do ventilador portátil no balcão. Ali dentro, só a recepcionista. Parecia concentrada, escrevia com o corpo curvado para frente, meio de lado, e só se dirigiu a mim quando cortei aquele silêncio calmo.

– Oi, eu tenho uma entrevista marcada pras 16h. – disse com exagerada firmeza, me julgando talvez importante.

Ela bocejou e me estendeu uma ficha cadastral.

– Preenche essa ficha, coloca seu nome completo, os documentos, e na folha de trás, uma redação de 15 a 20 linhas, com título, sobre você. Quando acabar, pode deixar aqui comigo. E pode usar essa caneta aqui.

Peguei a folha, a caneta e me sentei numa cadeira dessas de escola, peça única, o suporte muito estreito para alguém de um metro e noventa.
“Tudo bem, é isso que deve ser feito. Então... façamos.”
Finda a primeira parte, depositei a caneta sobre a mesa, alonguei o pescoço, o trapézio, girei os punhos como quem se prepara pra uma luta, descansei os olhos e tive a ideia de um título: Tempo. É musical, forte, admite várias interpretações, é uma palavra conhecida... “Mas muito abstrata e pouco profissional. Preciso de algo mais direto e ousado ao mesmo tempo.” Estralei os dedos, girei o pescoço mais uma vez, olhei de rabo de olho pra recepcionista, novamente entregue à sua atividade – que julguei ser palavra cruzada.
Com Passo”. Sugere música outra vez, mas também alude ao fato de eu ter percorrido um longo caminho até chegar aqui, seja de casa até a escola, seja de São Paulo até Curitiba... Mas aí eu cairia outra vez na situação da xenofobia. Não. Definitivamente não.
Penso mais um pouco e finalmente decido. “Entrevista de emprego”. Corajoso, realista, levemente metalinguístico, direto. É, definitivamente é um bom título. Quando vou escrevê-lo, a caneta falha; marca o papel mas sem tinta. Rabisco a palma da mão até que funcione e então reescrevo o título. A letra sai torta, como se eu não controlasse meu próprio braço. “Muito tempo sem escrever à mão”, penso. Mas decido manter assim mesmo. Resolvo o velho embate da primeira linha com uma ideia que julgo ousada.

“Me encontro numa recepção, sentado numa cadeira que mal suporta o meu corpo e me serve de base para uma auto-descrição. O motivo? Busco um emprego.
Músico há mais de dez anos, auto-didata em violão clássico, bateria e contra-baixo, tenho 7 anos de experiência como professor de violão e guitarra. Estou em Curitiba há apenas 3 meses. Gosto de pensar na vida como uma longa estrada...”

Não. Caralho, não! Que papinho furado é esse? A mulher, no mínimo, vai achar que sou bicha. “Gosto de pensar na vida como uma longa estrada”? Que merda é essa? Até cantor de folk já se cansou dessa metáfora...
Só o que me resta é pedir uma nova folha à recepcionista. Me surpreendo ao seu jeito rude quando me entrega uma nova ficha. Nos seus olhos pude ler “Porra, cara, como você consegue errar uma redação sobre si mesmo?”. Senti vergonha, mas fiz o que deveria ser feito. Preenchi tudo aquilo outra vez, mas aproveitei para adicionar uma nova informação na parte “ULTIMOS EMPREGOS”, assim mesmo, sem o acento.
Achei que seria prudente informar sobre um emprego antigo, num hortifruti, carregando caminhão. Não anularia minha experiência musical, e ainda ressaltaria minha disposição pro trabalho. Floreio um pouco as descrições e fico satisfeito com o resultado. Chego de novo à redação.
Meu currículo? A mulherzinha nem tocou.
Tento refazer aquele começo, mas não consigo lembrar das palavras. O que reescrevo é equivalente. Falo da minha paixão repentina pela música e sobre como isso se tornou carreira  tudo muito dramático e comovente; falo sobre shows que fiz, músicos que conheci, estilos pelos quais já passeei... Até que erro feio uma palavra. Uma palavra tão simples... Tento ajeitar a grafia, mas vira garrancho. Algo ainda pior do que a melosa frase “Gosto de pensar na vida como uma longa estrada”. Faço o que, inevitavelmente, deve ser feito... Com angústia, mas faço.
A recepcionista não consegue acreditar que estou ali outra vez. Estufo o peito, faço cara de poucos amigos e forço uma hostilidade opressiva na intenção de me impôr. 

– Eu preciso de uma nova ficha. – mas ao dizer isso minha voz falha, desafina, e soa como uma voz adolescente. Fico quente e vermelho de ódio. Pego a nova ficha com rispidez, não agradeço e volto ao meu lugar.
Escrevo a porra da redação em fluxo de consciência, não releio, julgo bem o trabalho, levanto e vou até o balcão, com receio. A mulher me sorri com ternura e parece não ter percebido nada do que acabara de acontecer. Isso me surpreende e anima. Recupero o humor e percebo a paz daquele lugar. Penso em me candidatar pra uma possível vaga de recepcionista, mas desisto. “Ela já vai te receber, ok? Aguarda aí um minutinho”.
Ok, aguardo.
Bebo dois copos d’água; o primeiro desce como a salvação, o segundo bebo sem vontade, para preencher o tempo de espera.
Ouço a madeira ranger acima de mim, uma porta se abre, ouço passos graves no corredor e uma voz aveludada que diz “Leonardo? Pode subir, por favor.”
Respiro e subo, alongando os tendões do braço e mãos. É provável que eu tenha de demonstrar aquilo que alego. Uma cabeça enorme me aguarda no topo da escada. Depois compreendo o corpo, o rosto e o cabelo. Finalmente compreendo, é louca. Minha futura patroa é louca. Olheiras absurdas, cara de ansiolítico e a tal voz de veludo que já citei.
A conversa segue burocrática, com falsa intimidade – da parte dela.
Respondo firmemente olhando nos olhos. Sorrio maliciosamente, não caio nos seus truques de baixar a guarda pra ver se eu baixo também. É inteligente apesar de louca. Fala sobre a própria vida pra preparar o terreno, ri alto com a metade inferior do rosto, enquanto a outra metade me fita e analisa. Devolvo o olhar. Faço com que ela perceba que estou a par de tudo. Ela compreende. Continua falando, depois me aponta uma parede que me havia passado despercebida. Três violões pendurados. Escolho um de nylon, clássico, aparentemente feito por luthier, com muito capricho.

– Esse foi feito pelo meu marido; fez pro meu filho, mas ele não seguiu carreira... Bom, mas toca um pouco pra eu ver.

Eu estava preparado. Alonguei e aqueci durante quase uma hora, em casa. Optei por um improviso em ré maior, alternando momentos melódicos de poucas e precisas notas, com momentos muito técnicos, sobretudo a mão direita.
Talvez pelos supostos calmantes, ela não demonstrou emoções, apesar da demonstração excepcional. Apontou para uma guitarra encostada na parede.

– Agora um pouco de guitarra.

Demonstrei o que ainda restava dos meus dias de guitarrista, ela gostou. Foi o suficiente. Depois falamos sobre horários, pagamentos, dias livres na minha agenda... Eu estava finalmente empregado. Fácil assim. Finalmente.
O papo seguiu burocrático, naquele mesmo tom de falsa intimidade. Eu tinha de dançar conforme a música... Na primeira oportunidade me levantei, disse “Bom, então tá...”, apertei sua mão e assegurei que estaria ali novamente no dia seguinte, quando já teria um aluno, marcado pras 19:30h.
Eu estava outra vez empregado e sorria de modo patético, orgulhoso do meu feito. Mas essa não era uma alegria plena, algo me incomodava quase secretamente, como uma sensação de estar prestes a desmoronar. Bom, pelo menos agora eu poderia sustentar a casa e ser considerado um Homem novamente. Aos olhos dos outros.
No caminho de volta, parei no mercado e me dei ao direito de comprar algumas cervejas. Doze garrafinhas. Com um dinheiro que ainda não tinha. Para comemorar o fato de estar novamente vendido. Eu era um brasileiro com emprego, celular e o nome sujo na praça. Eu era um Homem. E me sentia patético por isso.
Voltei a pé pra casa. A noite surgia; como deveria ser. Não lembro muito do resto, tenho esse trecho esbranquiçado na memória. O que sei é que bebi as doze garrafas. E dormi no sofá.
Então acordei de ressaca, alimentei meus gatos e, só de cueca, escrevi esse conto.


terça-feira, 25 de março de 2014

O sofá


Emanuel Filho é homem honesto, incapaz de cometer um mínimo ato imoral. Ama, acima de tudo (e até acima de Deus), sua mãe Juracir, mulher guerreira e ignorante – esse fato Emanuel ignora.
Aos 46 anos, Emanuel Filho atingiu o ápice da carreira profissional, tornando-se zelador do Edifício Residencial Paineiras. E conseguiu, finalmente, após árduo trabalho honesto, presentear sua mãe com um novo sofá; afinal, pensava Emanuel, aquela mulher batalhadora merecia (como ninguém) repousar em paz.

O cubículo ao lado do bicicletário C-2 era suficiente para a vida e poucos pertences de Emanuel Filho. Homem discreto e passivo, não recebia visitas; seu único vínculo social era justamente com Dona Juracir, a quem visitava quinzenalmente, nas folgas. 
Ao não perceber que sua humildade havia se tornado submissão, Emanuel Filho pedia licença como quem pede desculpa ao entrar na casa da mãe, que – viúva e silenciosamente envergonhada pela vida do filho – recebia-o sempre com certa impaciência e aflição. 
      
– Já tá ficando tarde, Filho, é melhor você ir indo antes que escurece. Ainda é capaz de pegar um resfriado andando por aí.

E Emanuel, 46 anos, assentia, julgando ingenuamente aquilo como nobre preocupação materna. 

– Eu te amo tanto, mãezinha. No dia que a senhora se for, não sei nem o que vai ser de mim. – gemia, abraçando-a de modo dramático.

Até que certo domingo, dia de visita, a vital questão de Emanuel Filho foi posta à prova.
Juracir não atendeu a campainha (por sinal, sempre tocada com muito zelo, inofensivamente, quase imperceptível). E não atendeu porque enamorou-se e foi morar na casa de Dorival, parceiro de dança aos sábados, parceiro secreto de paixão operária há três anos.  
No portão humilde da casa (grande demais para uma só pessoa) era possível notar a placa formal: "ALUGA-SE", e o número da imobiliária. Do lado de fora, na calçada, alguns móveis velhos já castigados pela chuva, quadros sem moldura, um fogão... e o sofá – aquele; escolhido com tanto cuidado. 
Nenhum bilhete. Nenhum aviso. Nenhum sinal.


Emanuel Filho sentou-se no encosto do sofá abandonado, tentando compreender.


sexta-feira, 21 de março de 2014

buraco negro

sua buceta era um buraco negro
que sugava meu ego
meu pau, minha mente, minha alma
sugou meu silêncio, minha casa,
minhas roupas, sentidos
sugou minha vida e queria mais!

sua buceta era um monstro
enorme, roxo, peludo e malcheiroso
(incrível)
que me atormentou o sono, o dia, os anos
sugou meu ego, minha vida, meu corpo,
minha sanidade, meu pau já insuficiente
e queria mais! mais!

sua buceta engoliu a Terra inteira e agora pede trégua.





(arte: Katheriny Mendes)

quinta-feira, 20 de março de 2014

poema médio

tento seguir ileso, alheio à infinda infidelidade tropical.
fincado nessa vida (que é média), ando sem toque, meio medíocre,
entre parcelas – de dívida e arte – minguadas, sem risco.
vou pelo meio, vou reto, me esquivo pouco porque vou sem perigo.

(um copo que quebra,
o fio do interfone,
o aspirador de pó,
a ração dos gatos,
as aulas insuficientes,
a casa da sogra,
cupons de desconto,
pulgas,
fechar as janelas, cortar o açúcar,
forçar a poesia pra fugir da média, fazer média pra fugir da dívida,
praticar a mediação entre mim e os outros – tantos)

sigo assim, em repouso que sufoca,
tênue trilha que percorro, alheio ao lodo, sem saber onde vou dar –
mais parcelas, quem sabe, médias, miúdas; isentas de fogo ou coragem.

sigo sem saber ser essa pessoa que descrevo.

sem saber ser essa pessoa que descrevo,
sigo médio, catando migalhas, parcelando a culpa de querer ser o outro;
aquele (agora distante) num chão frio ou pensão.

nesse afluente raso,
sigo em ti e contigo, inofensiva vida.


sábado, 15 de março de 2014

Dor

Dói tanto lembrar de tantos momentos e saber: aquela não era você.

Seu desconforto era conflito entre múltiplas faces (ainda ocultas),
sua angústia era certa repulsa a mim, entregue inteiro e tanto.

Dói físico.
E dói metafísico rememorar seus olhos amarelos agitados diante de mim, tão falsos.
É absurdo que isso aconteça.
Absurdo.
E só não choro porque sequei.
Meu peito seco recebe inteiro o golpe,
Sem lágrimas antissépticas.

Me parece já impossível ser o mesmo. Sigo porque devo, coberto de cicatrizes
e feridas prestes a brotar.
Minha lepra será vagarosa e cruel.
Não há mais morfina.

A dor não coube no poema.

setembro, 2013                                                                                                           

quarta-feira, 12 de março de 2014

Cobre (t = 60bpm)

O céusico, tão próximo e colossal, não é menos frágil do que eu.
Alheio ao acobreado tom da tarde e à inevitável melancolia, fragmenta-se, move-se,
pano a iteis poesias.
Calo a música, atento aos carros lá fora.
Aguardo a campainha que enfim me despertará.
(Aguardo aflito.)
Encaro janelas, muros, construções em progresso, emancipadas e solitárias antenas que desconhecia...

Carros relincham no asfalto pluvial,
a tarde despenca. (Meu quarto incandescente torna-se a própria tarde de hoje.)
Os gatos vem até mim; não compreendem a melancolia – querem água.

(Esboço um primeiro sorriso, cansado, não acendo luzes.)

A noite me invade e mostra através de turvos espelhos:
minha dor é média. É tom de cobre, é aguardar campainha, é estar fraco e calvo, é o fluxo lento intumescido de lâmpada
e chuva.

Elogio a sombra, acompanhado de escritores Velhos.
ticos. Cansados.
Soslaio suas palavras, sem toque, e planto letras entre cifras de música...

Um zumbido elétrico me rasga inteiro.
É a campainha.
É ela.


terça-feira, 11 de março de 2014

Jaz

 
          O carro vai fluente pela avenida úmida. Ela dirige. Estão a caminho de um aniversário; amiga não muito próxima, mas o que se há de fazer?
Vão em silêncio. O relógio mostra 21:13 – a festa marcada pras 19:30h. É que se demoraram num sexo mal resolvido, ela perguntando “por que o teu pau ficou mole?”; “sei lá, perdi o tesão”, já vestindo a cueca, rumo ao banheiro.
Da cama, um resmungo  "perdeu o tesão por mim?" –, que ele responde negativamente, para si. Liga o chuveiro, fecha os olhos e deixa a água fluir pelas costas, sentindo aquilo. Em silêncio, logo ela surge e se ocupa do espaço vazio no box.
Agora vão quietos pela avenida. Choveu a tarde inteira, o asfalto úmido brilha. Dave Brubeck tenta preencher o oco do carro com seu jazz cinco-por-quatro, ele de ouvido atento, ao ponto de perceber que por trás desse jazz existe um pesado silêncio e por trás ainda desse silêncio, um berro muito agudo e aflito é ensaiado.
Sexta-feira. 14ºC. A chuva torna a cair; vem lentamente, em garoa, engrossa muito depressa e não há tempo dele evitar que a água invada o carro, encharcando boa parte do seu blazer de segunda mão. Ligeiro, procura a maçaneta. Não acha. É vidro elétrico, acionado direto do painel. Lembra disso, enfim, e mete o dedo comprido no tal botão, derrotado, os pingos grossos massacrando o jazz e o silêncio e o blazer e todo o resto.
Ela dá seta, olha o retrovisor e lentamente ganha a pista de alta velocidade. Estão atrasados. O silêncio torna a reinar  a chuva cessa num repente – e é possível que todos esses sons e silêncios e confusas conclusões sigilosas tenham passado despercebido por ela, talvez distraída ou concentrada demais. Ele não pergunta.
No lugar marcado, ninguém realmente anseia por suas presenças.



Regresso


Volto ao poema não como o filho pródigo;
Volto como o inquilino inadimplente, sem simpatia, distante e pálido.

Volto não porque preciso;
Volto ao poema porque não tenho outro Onde, abrigo, teto, ombro, rede...

Engulo seco o catarro artificial, enxugo seco as lágrimas de culpa.
Volto ao poema sem vergonha, sem orgulho, volto num tropeço, recaída –
                    
                                   Volto ao poema como o alcoólatra limpo que, num pestanejar,
                                   Agride a esposa com a mão do passado,
                                   Porque um alcoólatra é para sempre um alcoólatra e um poeta há de sempre retornar, cabeça baixa, peito estufado, punhos cerrados.

Volto desgarrado porque, a bem da verdade, contrato nunca rompi 
e daqui não pretendo fugir tão cedo.


segunda-feira, 10 de março de 2014

Sinfonia Nº 03 em D maior


I

Do dilema nasce essa massa
Azul e híbrida
Solar, brisa leve
Ao som daquela sinfonia.

Essa massa, inútil poesia,
Dilema entre o que escreve
E o que abre portas

Crianças brincam
  leves
Nuvens passeiam leves
Levadas em ciranda pelo vento brando, ao som daquela sinfonia híbrida

(Pizzicato solar interrompido
Pela porta que bate lá fora.)

Flagro o teto, o sábado, o céu
Inerte, num antigo dilema
Meio vazio de Mim,
 um tanto cheio de si...

Levanto a cabeça pendente,
O pescoço massacrado
Os ombros tesos
O tronco torto
Abro uma porta, vou até minha esposa, dou um beijo em sua testa, sorrio e volto ao quarto azul, 
onde a sinfonia me aguarda, é sábado, nuvens são nuvens, brancas, azuis...
E ignoram meu dilema  aquele velho dilema marrom
                                                                                 unilateral.

É sábado.
As crianças em ciranda azul
Ignoram meu dilema, meu poema, a sinfonia, minha esposa, a porta que bate...

*

Enfim me diluo
E extraio beleza
Dum pingo de chuva;

O céu anuncia: Já vem tempestade!

                        E a cortina
                                        dança
para o vento-mensagem.


II

    ..

(      )
.
 .. .
.  . ..
(                )
.
 ..
.  . .. 
  . .  ... .  .. 
   . ..   . ..  
(                        )

           .

                    . ..

    ..
         .

                     .


III

Plural sonoro –
Sol
Sopro
A risada das crianças,
Seus pisos no asfalto.

Coletivo de cheiros –
Ar azul
Amaciante
O hálito fresco das crianças,
Seus pés no asfalto

Confusão de vozes
Sonoras
Nasais
Azuis
As crianças brincando



Sinfonia de vida –

       Eu.

E todo o resto
lá fora.


( .   .        .      
               .     :        
                         .  
                               .)



Patético poema palestra

Te desejo na falta
Me alegro à presença
Sacrifício cometo se necessário.

Amo você aos três modos do homem
e também ao modo do poeta.

Você, pequena, me inunda.
Você, líquida e sólida, corre e pulsa em mim 
o coração de punho fechado estremece
e meu corpo de metro e noventa já é pouco pra tanto você.

Eu te amo
e transbordo
poesia


Camas

Meu endereço não é meu lar.
Tenho pensado em todas as camas onde dormi,
cidades que flagrei,
quilômetros...

Certa vez em MG contei 16 camas em vinte dias.
Foi o marco zero dessa estrada movediça,
repleta de linhas tênues onde tropeço.

Meu casamento está marcado.
Meu próximo endereço será meu lar.
Questiono: cama, será a última?


outubro, 2013

Sensível demais

A súplica se multiplica.
De olhos atentos  fatigados , busco mentira nas tuas células e respiração.
Encolho.
Busco abrigo no teu peito e choro, quieto.
(Você dorme.)

Sensível demais...
A ideia do suicídio conforta mais que teu colo 
nasce e morre em mim, leal, e não esbarra em você.

Cedo ao sono,
Sonho mal.
E quando acordo percebo que não era do descanso que precisava, mas de ter sido humilhado no sonho que você interrompe, de onde saio vingado e viril e te fodo bem forte, te chamo de puta suja
e gozo um gozo sublime.

Foda-se o poema.
Finalmente nos abraçamos e nos tornamos um só.


setembro, 2013

O milagre

Hoje, sábado
recosto e espero.

Daqui vejo a cidade brilhar
e ser cidade grande.

Respiro.
Na tarde de hoje (já é noite)
fui única testemunha do delito de deus:
magníficas fendas vermelhas como estrias num preguiçoso céu outonal,
às seis.

Só para mim abriram essas fendas.
Humilde, compreendi:
existe o Milagre e existe o Amanhã.
(Como existe o porém...)

Agora, já em casa
recosto,
esperando
o amanhã.


outubro, 2013