segunda-feira, 30 de março de 2020

Houve luz




Hoje eu apertei um botão
E houve luz.

Foi tão simples
E assombroso ver

Dez milhões de anos escuros
Extintos por um toque.




Roberto Alencar




Roberto Alencar, meu colega às quartas
Com dois diplomas e gel no cabelo

Veio me dizer que poesia é trabalho normal
E que poeta é profissão como dentista ou juiz.

Eu, que andava ouvindo demais essa injúria,
Sorri metade da cara e desatei:

Sai pra lá, Roberto.




Preguiça Solar




Há que se ter
uma certa preguiça
ao criar.

Há que se ter
uma certa preguiça
ao viver.

Há que se ter
uma certa
preguiça solar

                          ler

É bom estar aqui
vivo
Ser mais um passando
indo

Sem pressa ou passado
Sem prece ou mestrado
                     
                               rindo




quinta-feira, 26 de março de 2020

Luz turva




Há infinito no desfoque,
na luz turva.
Entrelinhas são tripas
que adensam a imagem.

Saber as metafísicas da terra
infertiliza o sonhar.

(É certamente necessário
dominar as matemáticas
da terra para alimentar nove
bilhões de bocas.)

Eu prefiro olhar pra terra
e imaginar.
Um grande útero pulsando.
Eterno corpo ancestral
deitado sob o solo
gerando raízes.

A lanterna da razão
comprovou que
estamos errados.

Sinto que a razão
Iluminou o desencanto.



Um lugar seguro da infância




Há um cômodo suspenso
Numa antiga casa da infância
Para onde tenho voltado
Até demais.

É o menor e mais distante cômodo da casa.
E eu estou lá.
Vejo a tábua de passar,
O armário com pregadores de roupa e
                             produtos de higiene.
Uma janela azul-solar,
Esse sólido baú trancado.

Brinco em silêncio e quase não me movo.
Pareço disfarçar.
Os movimentos calculados
Querem não acordar um cão
                    ou um pesadelo.

Não sorri na memória a criança que fui.
Os bonecos de herói travam batalhas sutis.
Brinco pra justificar minha presença ali.

Vejo só três cantos do cômodo.
Em um estou.
Esse cômodo era então meu refúgio-silêncio
E parece que ainda é.



quarta-feira, 25 de março de 2020

Pandemia




Cheias de ausência as ruas se repetem por aqui.

Na praça Manoel de Barros, bancos de cimento
                           já rendidos à forma dos velhos
Esperam no silêncio o dominó adiado.

Chove.
Ando à toa como querendo me perder.
Tento evocar grandes momentos passados em estradas do país
         mas não decolo.
Esbarro sempre nas mesmas placas de bairro.

Tornei círculo 
Nem mesmo a exaustão me ilumina.

Há um intruso nesse meu planeta branco
    e me eriço como gato acuado
  e me protejo como Chernobyl
e vou além,

Cruzo Lisboa,
A linha de Tordesilhas
Escalo Castelo, o bairro
Rasgando fronteiras no meu mapa mental.

Há uma pandemia global que mata como crime de guerra.
E se agora estou na rua é para evitar o grande desastre humano
     de dois corpos confinados

     Juntos
     e contra.




segunda-feira, 23 de março de 2020

Solidão adiada




Guardou a solidão numa pequena gruta
entre o estômago e o coração.

Chegou a pensar tê-la superado.

Anos práticos correram.
A solidão ali, adiada.

Pois hoje no mercado, corredor de higiene pessoal
Olhou pro lado. Pro outro.
Tirou de dentro a solidão.

Cabia na mão semi-aberta em concha.
Formato-bolinha, cor de musgo em pedra úmida.

— Não podemos ser vistos juntos,
disse baixinho à solidão.
E guardou-a de volta.

Tinha olhos fundos.
Parecia enxergar através.




quinta-feira, 12 de março de 2020

Nosso quintal




Construíram a cidade em torno da gente.
Agora inventam que a gente é irregular
e se nos punem é para o nosso bem
Dizem

Antes tinha o rio, silêncio de bicho, um céu.
Agora é asfalto, fumaça, motocicleta, pedra na lata.
E a gente que é irregular
Dizem

Lembro da vovó sentada debaixo da árvore.
Não lembro se era mangueira ou pé de jaca
mas lembro do descanso da árvore, que cortaram pro nosso bem
Dizem

Antes tinha ar azul, eu juro.
Você lavava o rosto de manhã com o ar.
Agora...
A única coisa que voa perto é pipa tunada de cerol.

Dá desgosto.
Construíram essa cidade no nosso quintal
e agora querem que a gente saia.

Mas a gente não sai nem morto





sábado, 7 de março de 2020

Livro fechado




Olho pro livro fechado à minha frente.
Alegria sólida preenche meu peito.
O título, seu nome imortal de poeta
                           a promessa da melancolia
Fazem desse olhar-a-capa-do-livro
Um silêncio de mar e sinos.

Não abro o livro.
Contento-me com a promessa da melancolia.
Como um passado que sinto, não vejo
                    (e se visse já não sentiria)

Posso esbarrar em letras capengas, má tradução
Incompatibilidade de idiossincrasias
  cães
Desavenças literárias.

Não,
Não vou abrir o livro hoje.
Debruçarei em sua capa-tela-branca
Desinventando-o a noite inteira.





Pantanal




leio um verso e pronto 
quero estar no Pantanal.

mas a vida me ensinou 
já não me iludo:

quero a promessa do pantanal
a possibilidade da estrada 
eu quero é sair pra dentro!

então paro e espero.
paro mesmo.
parado de tudo,
imóvel.

a verdade passa, desfilando
toda exibida.
ignoro,
finjo que nem vejo.

madrugada 
meu corpo enfim torna-se tronco
e se enraíza na planície noturna.

escrevo um verso e pronto 
o Pantanal revela-se em mim
                  completamente.





sexta-feira, 6 de março de 2020

A rua aqui de casa




É uma rua gostosa.

Passam pessoas lentas com o cachorro,
Carros lentos para encontros de família
(Evito olhar muito dentro desses carros porque
 quase sempre estão contaminados por domingo em família)

Há muitas e distintas árvores
E gosto de imaginar quais são anteriores ao asfalto,
quais vieram só de enfeite.

O cheiro é, sem dúvidas, um cheiro de bairro-subúrbio.

Há de fundo um som de mar, que são as crianças na escolinha.
(A distância transforma gente em mar.)

Pra você ver,
A rua é tão tranquila que foi eleita laboratório de auto-escola.
(Como são bravos os instrutores de auto-escola!)

Há também esse carro morto, meio suspeito e já sem cor,
plantado sob uma árvore antiga
Não sei se por insistência ou abandono.

Com boa vontade e certa adaptação,
posso dizer que nessa rua há uma potente, sólida mata virgem,
rebelde como qualquer mata e qualquer virgem.
(Então o ar que chega é sólido e virgem.)

Em dia de sol (aqui tem muito sol)
é flagrante o cheiro de sabão em pó
e amaciante.

Que paz isso me dá!
(O sabão em pó transforma gente em paz!)

Nessa rua o céu é imenso pela quase ausência de prédios.
Você lembra o que é
Olhar pra frente e enxergar céu?

É uma delícia essa rua.




quinta-feira, 5 de março de 2020

Modulação




Fui forjado à tristeza respiratória.
Tenho o dom da loucura.
Sou preguiçoso
E altamente corruptível.
No entanto,
Capaz de ensolarar um varal com os dentes.
Cometer sem medo a manobra da normalice.
Andar cem quilômetros numa estrada sem Sim
Ou verter sangue sagrado pela honra do que me é raro.

É só uma questão de tom.




terça-feira, 3 de março de 2020

Batizado




Nasci tarde pra poesia.
(Aos dezessete)

Aos vinte, poesia era meu cocar de festa.
Vinte e dois, meu bote salva-vidas.

Aos vinte e quatro tornou-se arma de guerra
e aos vinte e seis, divã e túmulo.

Só aos trinta fui encontrar a própria poesia.

Peguei com as mãos
e gentilmente coloquei-a em seu devido lugar
que é bem no olho da gente.

Feito lupa
ou lente.





Singela homenagem a Manoel de Barros, esse poeta que demorei a aceitar






o velho astuto
entortou minha vista
e o mundo hoje
azulou mais bonito







Precisão




Precisei escrever
(Aquela precisão de poesia entalada)
(De pedrinhas no esôfago)

Mas estava de péssimo humor
e dado a resmungar demais.

Não quis dar voz a esse homem horroroso.
Compreendi (aos trinta anos)
Que o esgoto da vida não deve desaguar no solo fértil da poesia 
                                                                                   porque brota.

Acabei o dia todo com a poesia entalada na garganta.





segunda-feira, 2 de março de 2020

Pernas de veludo




Pernas de veludo entraram no ônibus lotado
e eu, sentado
não consegui ver a cara da moça,
apenas
suas pernas de veludo.

Ambiente inóspito de ônibus lotado
peguei minha mala
meus livros
e fui morar nas pernas de veludo da moça.

Não precisou fiador
documentos não fizeram questão.
Pouco tempo eu já estava ali
e me sentindo lar.

Tive apenas um problema de vizinhança:
O homem ao meu lado passou todo o trajeto tentando
espiar esses versos.

Larguei minhas tralhas e fui morar na janela.

(Pro fim da viagem vi então a cara da moça, que já não me era habitação)




Escrever um livro




Não quero escrever um livro!

Seria como eternizar o jornal de ontem
 Moldura sólida, betume, prego e duratex
nas paredes moles da memória.

Eu não!

Quero calar até que as pedras invejem meu silêncio e
  desistam de ser pedra-calada.

Ficarei imóvel até que as prateleiras
  esquecidas no fundo de uma biblioteca de bairro
Desistam de ser prateleiras
  esquecidas no fundo de uma biblioteca de bairro.

E saiam por aí, deslizando os pés pelo asfalto
  em comunhão com aquelas pedras-cantantes.

Só então pintarei no papel
  Alguma palavra que mereça,
suplique a moldura da eternidade!





domingo, 1 de março de 2020

Neblina de um sonho




Do reino dos sonhos
Trago para o dia certa neblina
Como se ao sair
Tivesse enganchado uma perna mal erguida

Agora a neblina envolve meu corpo
Como um cheiro denso que só eu sinto

É azulada a neblina
Um timbre pérola que tinge meus gestos diurnos
Com certo torpor

Ainda estou na área cinzenta entre os dois reinos
E não tomo partido
Deixo que disputem meu corpo,
Minha presença

Assisto
Talvez impassível

Me protege a neblina.
Amortece os sons todos do existir brutal 
Esse massivo ranger mecânico das ações humanas

Cultivo minha neblina
Movendo devagar para que não
  dissipe
Com minhas ventanias

Você tá bem? — ela pergunta, voz de capacete fechado.

Uma frequência sonora até então subterrânea cessa seu vibrar e me espanta.

Você parece cansado, com sono. Tá tudo bem? — Os olhos interrogativos pintados de vermelho me despertam partes.

— Sim. 
Acontece que fui picado pelo bicho da poesia outra vez.