quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Enquanto espero a água ferver




Iluminado pelo fogo das velas
Sinto a chuva perto e me conecto com a Grande Verdade
que é simples.

(Há duas velas aqui
Já pela metade)

A água enfim ferve e me levanto
Pra desligar o fogo.

Passa um carro lá fora e o vento parece ter cessado de vez.
Penso nas grandes plataformas de petróleo em alto mar
Tão solitárias
Imensas
E ali dentro, numa pequena salinha, sentado num banco de concreto
Um homem pensa em sua família e
Questiona a realidade.

Olha para o chão de cotovelos apoiados numa mesa dura
As mãos sobrepostas frente à boca sustentando o peso da cabeça.

Eu te saúdo, companheiro!
Sua dor é minha
E também sua alegria e a capacidade de arregalar os olhos
Diante do espantoso destino-horizonte.

Uma das chamas se eleva absurda
Fazendo pensar na eternidade e Jorge Luis Borges
Escrevendo no escuro das pálpebras
Walt Whitman diante do assombroso Céu Eterno
Um mar agitado
Agredindo rochas eternas
E tudo tão grande mas assassinado pelo som eletrônico de algum celular





Aos meus irmãos de dor




Do que fogem, meus irmãos?
Por que maltratam tanto seus corpos?
Não sabem que seus corpos são parte do mundo
E que o chão é tão sagrado quanto o céu?

Vocês querem se ferir mas com isso ferem a mim e a meu filho.
Vocês querem me ferir mas acabam se ferindo dessa maneira.

Eu compreendo sua dor.
Eu sinto sua dor.
E por muito tempo pratiquei também a dor e a destruição
Supondo que isso me tornaria maior que deus.

Mas as flores morreram, depois os frutos
E por fim a água enturvou
E nada mais brotava dessa terra agora infértil
Que é nosso corpo - e que por si só é também nossa alma.

Quando tudo enfim se tornou um pântano escuro e inóspito
E já não mais existia prazer na dor e na destruição
Percebi que bastava esperar e a Verdade se revelaria
De dentro pra fora
E que as sementes da verdade estiveram sempre ali
Aguardando pacientemente
As condições e o momento certo de brotar.




Três violetas neon




Há três violetas neon sobre seu túmulo pequeno
Posso ver de longe, ao cruzar a avenida.
E para todas essas pessoas distraídas ou concentradas demais
Hoje é apenas mais um dia na conta implacável dos dias.

Reparam no adorno do teu túmulo?
Lamentam tua morte precoce?

É claro que não, concluo após breve meditação.
Para eles, tua morte são apenas flores na paisagem
Afinal, tua vida não abalou o mundo
Mais do que essas tempestades de verão
Ou o desfile militar em praça pública.

É bom que seja assim.
Guardem força e fibra para o inevitável momento de enterrar os seus!

E pra falar a verdade,
Tua morte compreendo muito bem
O que eu não consigo suportar é o brilho dessas violetas
Sobre teu descanso eterno.






domingo, 26 de janeiro de 2020

GARAGEM 27




Aquele estacionamento certamente é fachada pra esquema ilícito.
Tá sempre cheio, apesar de tudo. Crise, feriado, tempestade. Tá sempre cheio e o curioso é que sempre por carros de luxo, justo aqui, nesse bairrinho de nada. 
É um bairro ótimo, me diziam, tem de tudo!, mercado, farmácia, padaria!
É um bairro suburbano como todos que morei nos últimos dez anos.

Um bairro inóspito em meio a bairros medíocres. Portanto, não há explicação para o intenso luxuoso fluxo desse estacionamento aqui na frente de casa.
A fachada é tão mal pintada!
Um lugar que oferece serviço de pintura alto padrão não poderia ter o muro assim.
Cheio de respingo, gota solta. O esboço aparecendo de fundo, as bordas irregulares.
Lavagem de dinheiro. Ou esquema genial de distribuição em plena luz do dia - e com razão de ser.

Entram os carros, presta-se um serviço simples de lavagem, a transação é feita naturalmente. O motorista sai com o carro limpo e o porta-mala cheio de algo valioso.
São tão calmos os homens que ali trabalham!
Não odeiam o patrão. Sequer conhecem o patrão. E jamais conhecerão porque jamais frequentarão os mesmos lugares.

E eu aqui só olhando.