sábado, 22 de abril de 2017

a curva azul do mundo



ir-se.
andar até o pé esfolar.
andar até que a sola sem escolha se funda ao céu no asfalto.

ir-se.
andar por andar.
andar e só.
andar andar andar andar.

partir-se:
ir sem despedir-se.
partir sem aceno.
(as mãos pálidas do aceno)

andar até sentir saudade do imóvel.
andar até arder o crânio.
andar até que a vegetação se canse
e mude.

andar mudo.
andar até sumir na curva azul do mundo.



Todos meus amigos



não ando em bando
mas vez em quando
encontro um amigo
ou alguém que me diz
estar insone ou meio louco
sofrendo de ansiedade, gastrite, pânico
sem trampo, sem teto, sem rumo, morando de favor -
e que bom poder andar de mãos dadas no inferno.

as pessoas que encontro estão sempre olhando pros lados
com olhos opacos e pressa, preocupadas com o aborto ou
o filho não-planejado ou o preço da terapia e dos remédios.

todas as pessoas que encontro (e aqui me encontro também)
andam inseguras sobre o amor em tempos líquidos
mas precisam carregar seus bilhetes nas máquinas do metrô
com seus livros de poesia ou crítica literária na bolsa
(todos andam com mochilas e bolsas)
e ninguém está muito satisfeito com o rumo das coisas
e ninguém mais crê nas assembleias ou chapas estudantis.

as ideologias enfraqueceram e agora é cada um por si.

eu não ando em bando porque o bando me assusta.
mas vez em quando surge um rosto pelo vão da porta
e por um período curto e necessário
a vida parece valer a pena

mas no fundo eu sei - e assim cantou o poeta de Cuiabá:

Todos meus amigos
querem
morrer.



pão com azeite



sinto que deveria compor música  a única unanimidade universal
mas é ao poema que recorro agora.
é ao poema que peço socorro
porque só no poema a vida se realiza plenamente.

é na tinta da caneta que resgato teu sorriso.
é na curva de uma vírgula que capto tuas reticências...
só agora, deitado num colchão no chão,
sinto o gosto do teu pão com azeite.

sem melodia ou acorde tiro de ouvido
todo gemido
e cada gota d'água que escorreu do nosso banho
tão precoce e íntimo.

não me intimido diante da possibilidade do fim 
sempre terei tinta e tela
e caso me encontre perdido no escuro outra vez
sei que poderei fechar os olhos e
imediatamente enxergar o mundo
pela inesgotável luz que um dia jorrou de ti.


uníssono



nossos ombros embriagados em uníssono
riem desses passos clandestinos
que nos levam ao alojamento universitário

teu quadril no quarto me convida
e todas as nossas células rompem em uníssono o silêncio noturno.

tudo é tão absurdo.

fantasmas do passado, diluímos em saliva e álcool.
despimos as lentes — o que importa é perto e agora.

testemunhamos no escuro o milagre que une deus e diabo
e quando o dia ameaça enfim invadir nosso mundo
tornamo-nos humanos
e nossos estômagos
(roncando em uníssono)
digerem cúmplices a pasta de amendoim.

meio-dia,
é preciso seguir.

nos despedimos à porta do refeitório
e na minha cabeça clandestina circulam
como profecia realizada os versos daquela canção.

sóbrio ando torto pelo desequilíbrio da tua ausência,
como quem desaprende a caminhar com as próprias pernas.

ganho a rua imerso na promessa do amanhã
e canto:

I've never used to kiss
Like we did last night.



15 rounds



no piloto-automático assisto
Ali x Frazier (I) pela trigésima vez
e ainda aprendo sobre
corpo  guerra  tática
genética  narração  propaganda

a elasticidade da minha mente,
álcool  beck  valium
o pós-divórcio
não ter um teto, isso tudo
você sabe...

Ali castiga Frazier
(por enquanto)
de modo impressionante
aos olhos do mundo     e Miles Davis

(Frazier faz aquilo que me apavora)


"No caminho pra cá encontrei um corpo despedaçado no asfalto, com uma corda no pescoço", ela me disse.

"Era você."


alongo as pernas e a nuca,
finjo estar tudo bem


A decisão será unânime.




mapa mundi



teu rosto é um mapa mundi
e por esses oceanos minha caravela navega sem bússola.

nunca me assombrou a tempestade dos teus hemisférios —
o acaso nos desloca do Tempo.

há uma pequena ilha sob a ampla noite azul,
nossas pernas sem norte confirmam a terra firme.

mergulho tendo teus ombros como salva-vidas
e a espuma branca do mar espelhando a lua
me sussurra todas as palavras que nunca dissemos.




cidade



ando pela Grande Cidade com um grande guarda-chuva em mãos
me sentindo meio-pateta
meio-Gene Kelly no auge
com gosto de Halls preto e prato-feito azedo na boca.

aceno para parte do meu passado,
muito já não está.

a locadora virou farmácia
a padaria é agora uma barbearia pós-moderna
o drive in fechou

apenas aquele velho emblemático
permanece
em sua casa emblemática.
com um relógio de ponteiro em mãos,
manipula o tempo dos homens e mulheres com pressa

estou duas horas adiantado.
saí com desnecessária pressa da casa emprestada
e ando agora com desnecessária pressa
nesse enorme túnel do metrô
ultrapassando transeuntes como Senna
no Grande Prêmio de Mônaco, 1989

(começa a chover)

versos de poesia portuguesa pululam na memória,
sua boca vermelha perfeitamente desenhada me recitando os versos densos,
mas é com leveza que você lê.
seus olhos orientais me desorientam um pouco
e seu sorriso pequeno que brota entre-estrofes me ilumina e cega.

você não está aqui agora.
você esteve ontem e quatro anos atrás.

(aumenta a chuva)

a voz metálica do metrô garante estar tudo bem.
eu não acredito, mas o que há de se fazer?

preciso devolver as chaves da casa e é isso que faço agora
aflito entre-versos:
os portugueses,
os da cidade,
os seus,
esses.