segunda-feira, 29 de setembro de 2014

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

cinzas




desejo
é
fênix

                                                                       
(inflama                         fatal,                                      
 renasce)                     inflama                                    
e renasce.


(inflama
e
renasce)
(inflama                                                                          renasce)

                (inflama                                        renasce)                 

  (inflama                       renasce)


(inflama   

renasce)



inflama
e
morre.

(sobram cinzas)





segunda-feira, 22 de setembro de 2014

sábado






































é sábado.
faz sol lá fora.
(isso quer dizer: faz um belo dia
lá fora.)

crianças brincam, correm, gritam.
eu aqui dentro, em silêncio,
têxtil, táctil,
imóvel.

a histeria coletiva berra muda:
vai pra fora!, faz sol!, é sábado!

percebo:
todos os dias há sol, todos os dias são dias.

o que as crianças comemoram é a ausência de nuvens.
a ausência da aula,
a permissão pra brincar,
soltar gargalhada.

não me baseio na ausência de nuvens.
vivo quando consigo.
seja inverno, sábado,
feriado ou março.

hoje nada me obriga a sair de casa.
nem palestra, cerveja ou concerto;
tampouco ser sábado,
ou o sol
lá fora

(...)




domingo, 21 de setembro de 2014

poema-transe sobre obra de Agustín Barrios



I

o nylon me abraça
acalanta
entrelaça tango sol 
Sudamérica

passeio ruas estreitas
paralelepípedo
pedra morna
não compreende
(pedra)
reverbera a intenção

vibrato
desliza 
liso veludo

cheiro o mar
o sol de um ângulo novo

morno

vejo as rugas do sol
nas cordas do violão



II

a música me salva mais uma vez

me tira daqui

não existo
ainda

adormeço sentidos
todos

e sentado
sinto o éden
em mim



III

ouço a noite.
respiramos

meu estômago tenso só digere som

abraço a noite
que geme

não respiro.

meu estômago oleoso contrai
contrariado por um mi bemol meio-diminuto

que se resolve como truque de mágica a olhos curiosos (incrédulos, analíticos)

aplaudo a miragem noturna
(respira)

fecho os olhos

e vôo



IV

dança comigo
vem

seu vestido me roça
pego sua mão

deslizamos pelo salão amplo



(        (       (      (     (    ( eco )    )     )      )       )        )



lustre
(lustrado
ilustre
etc.)


a melancolia é inevitável.


(uma porta bate e me desperta do transe)
(perco você, musa invisível
inviável)



a música brota do piso
mármore encerado

amor
encenado
em compasso três por quatro


é valsa, querida

dança comigo

vem



V

o querosene da memória queima

a goteira da realidade respinga

o milagre da música permanece imbatível

agudo
sombrio
lúbrico

esse 
três-por-quatro me mexe

(todos nós)

em festas debutantes

casamento

o fim




segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Carta ao pai


Pai,
recentemente você demonstrou certa preocupação com minha saúde mental. Alegou que eu andava bebendo demais e gastava todo meu dinheiro com o álcool.

Engraçado, não lembro de ter conversado com você recentemente. (Será o efeito do álcool?)
Na verdade, as coisas que você anda falando sobre mim, ouvi de terceiros.

Pai,
eu sei que você tem medo. Que quer o melhor pra mim.

Eu sei que você teme pelo meu futuro.
E teme que eu me torne um homem fracassado e passe a vida sendo sustentado pelos outros.
Você teme, talvez, que eu faça vários filhos e não cuide de nenhum.
Você teme que eu me entregue às drogas e talvez num domingo de sol leve meu filho mais novo morro acima pra comprar crack comigo,
e teme também que eu suma um dia antes do aniversário dele e reapareça vários dias depois, sem presente, sem explicação, sem coragem de olhar no olho.

(Você teme que eu seja um covarde.)

Eu sei: você não quer que eu me torne um velho amargo,
que nunca fez nada útil com a própria vida;
que se considera um gênio, mas na verdade é um racista conservador e preguiçoso que passa o dia em frente à televisão remoendo ilusões.
Que parou no tempo e vive do mesmo repertório.
As mesmas piadas, os mesmos temas e argumentos...

Eu sei. Você teme.
Você quer o melhor pra mim.

Mas,

Pai,
fica tranquilo.
Eu jamais me tornarei essa pessoa.

Sabe, eu aprendi muito com você.
E você se tornou um exemplo pra mim:

Um exemplo do que não ser.
Um exemplo do que não ser.
Um exemplo do que não ser.
Um exemplo do que não ser.
Um exemplo do que não ser.


quinta-feira, 11 de setembro de 2014

três tiros na barriga


saio sem saco do serviço. os dois sacos. o que segura minhas bolas e o metafórico. saio esmagado e assim que piso a rua me assusto com uma moto que vem pra cima e com o brilho meio opaco da pistola que o garupa tira do bolso do casaco e me mete três tiros na barriga.

três tiros na barriga. o som meio abafado, mas a arma não é de brinquedo. não entendo. quem era? e por quê?
será a mando do velho do bar que ofendi ante-ontem na presença de duas belas damas por estar bêbado demais e não lembrar a senha do cartão na hora de pagar e o velho achar que eu tava tentando dar calote?

ou talvez aquele brutamontes que quase me matou porque eu ousei jogar uma sacola de lixo na sua lixeira.

ou a garota atormentada que acolhi em casa e tento curar mesmo sabendo que na verdade o que eu quero é ser destruído por ela.

então por isso aquele cara tossiu bem na hora que passou por mim naquele dia que eu fui até o orelhão telefonar pra minha amante cancelar o encontro porque minha mulher apareceu de repente em casa. e eu achando que ela ia pra Sergipe. sim. ele tossiu bem quando eu passei e uns metros depois tinha um homem parado fingindo mexer no celular. 

foram eles.

a mando de quem?

dos estudantes que tiveram suas roupas e produtos de limpeza roubados por mim no dia em que resolvi me matar tomando 12 comprimidos com maconha e conhaque?

não. os estudantes são frouxos demais.

ou o namorado daquela bióloga que gostava de me mostrar fotos de cobras acasalando antes de começar a foda. a bióloga que tinha um mamilo na costela. problema hormonal. nada sério. deve ter sido ele. com certeza não engoliu aquele gemido que ela soltou enquanto fingia pra ele no telefone que tava estudando na casa da amiga. meu dedo mede dez centímetros. é claro que ela gemeu. fiz de propósito. meti bem devagar, aveludado, e quando notei que havia aceitado meu dedo dentro, arqueei os nervos e falanges dentro dela, que gemeu alto e riu e me deu um tapa e depois disse "você me paga!"

não sinto nada. minha barriga doeu e parou. agora ouço um zumbido. os carros passam sem som. ninguém me viu cair, caralho? 

eu queria ter cometido suicídio, não morrer assassinado como alguém que deve.
que morte de merda.

não vou aguentar.
não quero.

aceito a dúvida. 
talvez tenham matado o homem errado.

aceito me deitar no chão dessa avenida movimentada às nove da noite enquanto um cachorro meio torto vem me lamber a boca.


quarta-feira, 10 de setembro de 2014

geometria


numa roda de três garotas ele chega. aborda a do meio.
meio? roda não tem meio. 
roda é círculo, cacete.

triângulo. aborda o vértice. 
(tá mais pra vórtice.)

veste-se de modo colegial 
a garota.

"escuta, eu posso falar com você?
eu não vou te fazer mal.
eu só quero falar com você."

ela gira os olhos em espiral.
esbarra nas colegas, 
catetos.
sendo ela hipotenusa. 
(musa.)

muda, sorri vermelha e dá um passo. 
linha reta
na direção dele,
que diz:

"eu trabalho na biblioteca.
eu sempre te vejo aqui esperando o ônibus.
eu chego mais cedo só pra poder te ver.
eu não vou te fazer mal.
eu só quero falar com você."

querendo sair pela tangente,
ela não diz nada. 
sorri, meio encabulada.
na calçada cheia 
de gente que passa,
indiferente.

ele não vai fazer mal.
ele só quer falar pra ela.

então pronto.
falou, tá falado.
agora se sente culpado.
não por ser casado, 
mas por saber que seu amor 

se tornou
quadrado.


mantra



viver     demora

e   a   espera   dói.



esperança     mora

onde        se    constrói.





(é foda.)




terça-feira, 9 de setembro de 2014

elogio


— de todos os caras que eu já fiquei, você foi o único que me fez chorar.
— pô, te peço desculpa...

— não, isso foi um elogio.


segunda-feira, 8 de setembro de 2014

equilíbrio



quem
ande
sempre
sobre

a

l
i
n
h
a
_____________________
meu                equilíbrio
é
um                 acúmulo
de

EXTREMOS



terça-feira, 2 de setembro de 2014

poema pra fora


me sinto meio-nada, meio bicho-arisco
e arrisco dizer:
prefiro passar fome a comer o pão que o diabo amassou!

mas existem os gatos e existe Ela, 
que faz questão da sua manteiga
e porções diárias de carne.

então engulo com nojo e pressa a comida que me resta
e saio da toca, atento
e sou obrigado a encarar cadáveres
perambulando por inércia,
ouvir suas preocupações,
sentir o cheiro,
confrontar suas carrancas assombrosas.

minha metade bicho-arisco se eriça,
expõe as garrinhas,
evita contato visual.

minha metade-nada vaga também como cadáver
e leciona,
sorri,
mascara a própria carranca.

sem opção
(me falta um amigo)
volto pra minha toca no subúrbio.

é sempre assim.

mas hoje saí mais cedo
e toquei a textura fria
da manhã

hoje encarei com bons olhos alguns simpáticos cadáveres
e me acalantei na voz metálica que ecoa no silêncio sereno do ônibus.

testemunhei sem pressa rotinas medíocres 
mas leves.
sorrisos até humanos.

ofereci meu lugar a um velho,
rejeitou.
aceitei.

percebi que a vida  rara e rarefeita  desperta às vezes.

percebi que dum inesperado encontro matinal entre velhas senhoras brota o sol.
mas é claro, não constará nas enciclopédias.
por isso agora recrio.
esse encontro anônimo, essa manhã rara, rarefeita
que me conduziu por fim a um boteco sujo onde comi lixo engordurado e lembrei ao que pertenço.

volto à toca.
no subúrbio.

vomito o engodo otimista e
me torno bicho-arisco
outra vez,
inevitavelmente.


quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Ode ao ódio


Eu tenho ódio.
Muito ódio em mim.

E sinto esse ódio no estômago,
Nos ombros, trapézio
Dentes
Omoplatas
Na glândula timo

Sinto ódio se uma pena cai
Ou um corpo morto me esbarra

Sinto ódio se me enrolo num fio
Ou percebo covardia no outro

Sinto o ódio na garganta e no rosto,
No estômago e extremidades
No topo da minha cabeça calva –
Sobretudo no estômago.

Transbordo ódio quando encho a cara
Me sinto ameaçado.

Eu sofro disso.

Eu sinto ódio todos os dias.
Um ódio descomunal.

No entanto,
Descrever o ódio não é legítimo,
Sequer terapêutico.

O momento do ódio é breve e devastador.
Todo o resto é abscesso.

Eu tenho muito ódio em mim.
E me sinto esmagado
Então revido
Rompo o silêncio
Tremo
Ranjo
Berro.

Fecho os olhos
Formigando
Tonto
Respiro
Quente

E me torno quieto outra vez
Como se muito pouco tivesse acontecido.

Eu sinto ódio.

Muito ódio
Dentro de mim.




terça-feira, 12 de agosto de 2014

Neblina


Mais um dia que se ensaia
No negrume da manhã

Motores e pássaros bocejam
Despertando janelas fechadas

Café é bebido em caneca
Pois solidão não exige xícara.

Pequenos humanos cumprem pequenos rituais
Em pequenos apartamentos
 (Soando discretos ruídos)

Algumas luzes
apenas ainda
Flertam discretas

Vizinhos cogitam:
"Talvez hoje"

E de soslaio buscam o Sol,
Que já vem surgindo
Pra dar fim às possibilidades
 alimentadas 
no bocejo da manhã

(Neblina)

Esse breve instante que aos olhos morre,
Lento e logo.


enfim


tão bom
quanto
viajar
é
enfim
ter um lar


segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Rasa


Uma mulher sem alma
Tão rasa que nada absorve 
Transborda:
Palavras dementes, recortes de Nada

Sua voz pastosa embrulha versos.
Seus olhos opacos bêbados querem seduzir 
Convidam pro sexo medíocre, funcionário.

Não cedo.

Enfim se cansa da minha caretice
(Ela pensa que abrir as pernas é abrir a mente)
e vai com alguém que passa na calçada
fazendo um sinal com os dedos.

Emborco meu último copo e procuro meu rumo.
Ainda há um longo caminho,
Presumo
com os olhos marejados de cerveja
e astigmatismo.


quinta-feira, 31 de julho de 2014

sábado, 5 de julho de 2014

joelhada nas costas


definitivamente,
esse é tempo de partida.
tempo de vértebras partidas.

é tempo de partidas
entre bandeiras
(de partidos, países.)

e o povo
deve optar.
tomar partido enquanto há tempo.

(não há tempo.)

parte desse povo
patriota
(que não se vê povo)
preenche
os assentos do espetáculo.

o povo operário
(em contrapartida)
preenche
com seus corpos partidos
as fendas do estádio mal assentado.

definitivamente,
esse é tempo de partidas,
bandeiras.

definitivamente,
esse é tempo de vértebras e viadutos
partidos.


segunda-feira, 26 de maio de 2014

A cidade como um ser


Retorno como turista à cidade que conquistei
e me divido entre ela e você.
Busco recuperar entre-prédios sensações antigas que me façam ficar
mas — sem desejo  te encontro na antítese de todas essas mulheres.

Aqui, à tua ausência física,
percebo que em mim você é também uma cidade.
(Cidade como um ser que pulsa.)
E as ruas se bifurcam, me secam as palavras.

Confundem-se as cidades,
no entanto não se fundem.

Avenidas e anúncios sobrepostos em postes nos distanciam.
Impostos contabilizados em via pública não me valem nada.
Bibliotecas surdas não me informam.

Negligencio trêmulo o semáforo pensando em nós,
esfrego os olhos para que você suma da pálpebra e flagro nos dedos a aliança que nos iniciou
nessa cidade onde agora você está,
e é.

Eu fugi,
fraco.

(Profetas embriagados em praças imundas preconizam ou ignoram meu dilema
tão carnal e urbano.)

Percorri quilômetros até aqui e parece que também aqui você sempre esteve.
Esbarro em dores herdadas do seu passado;
carrego prédios no pulmão, torres no tórax, fantasmas no estômago sôfrego.
Carrego sua sombra, seu peso no trapézio.
Aqui, à distância, te venero e desejo ainda mais  bairrista.
Não ouso parar de andar.
Me norteio no sol das cinco e, com olhos quentes     secos
                                                                                   fatigados, te almejo outra vez,
                                                                                   obcecado.


O deus que tanto renegas parece agora me testar.
Sádico, me mete em labirintos de concreto fedendo a mijo onde ando em círculo, a esmo.
Gasto sola, sinto sede, tremo inteiro e cedo.
Decido voltar.
Porque essa cidade  impassível  é longa e eterna; esperará.
Já você  meu norte, minha nova cidade , pereceria sem meus impostos,
e isso não posso permitir.

Vago vermelho ainda oscilante como sombra de vela por ruas escurecidas  o Sol já cansado.
Atravesso o viaduto, encontro rumo.
E no dilema entre essas cidades,
te elejo meu lar.


domingo, 25 de maio de 2014

Encontrinho (Micro-conto tragicômico)


Entediado, sentei num ponto de ônibus e fingi esperar. Notei um homem sentado no extremo oposto do ponto, mas não olhei diretamente. Uma terceira pessoa estava ali; senhora oriental sem bunda, trajando calça de helanca. Logo esticou o bracinho curto e seguiu seu rumo.

Minutos correram, pessoas chegavam e iam. Apressadas, distraídas, cansadas, produzidas, corretas, com ou sem mochila nas costas... Mas o homem do início da história seguia ali, podia vê-lo pela visão periférica. Fingi então acompanhar um carro que cruzava a avenida à nossa frente, pretexto para olhar na direção do meu companheiro misterioso.

Dei uma encarada rápida e logo desviei o olhar. Acho que não notou. Era um homem esguio, a pele meio escura e, assim como eu, de aspecto maltrapilho.

Olhei de novo, dessa vez sem pudor, e nossos olhos se cruzaram. Quebrei o silêncio.


 Tá esperando há muito tempo?  perguntei, tentando segurar o riso.
 Há muito tempo  respondeu, tentando segurar o riso.
 Ah, sim, e tá esperando qual ônibus?  perguntei, quase gargalhando.
 To esperando o… Pinheiros!  ele disse, quase gargalhando.
 O mesmo Pinheiros que já passou umas cinco vezes?  eu já não segurava a risada.
 Esse mesmo!  disse meu mais novo amigo, gargalhando.
 Prazer, Ulisses  menti.
 Prazer, Gustavo  mentiu.

A despeito disso, nosso aperto de mãos foi firme e sincero, mas logo em seguida surgiu um breve constrangimento mútuo. Tornei a olhar para o nada, meu amigo certamente olhava para o lado oposto. 


 É foda…  tentei consertar o triste mas inevitável clima fúnebre.
 É…  disse ele, percebendo.
 Tá fugindo do quê?  perguntei, mas soou falso.
 Oi?


Meu amigo pareceu realmente não entender o sentido da pergunta, e seu sincero espanto ao dizer Oi? me deixou ainda mais desconcertado.


 Ah, você sabe, nós dois aqui, sentados, sem perspectivas, esperando o fim do dia, fingindo esperar o ônibus, vendo o tempo passar…  acrescentei, como se a situação ainda pudesse piorar.
 Não, cara, eu não sei do que você tá falando, não...  terminou a frase já de pé, tentando enxergar o ônibus que se aproximava.

Eu, não exatamente querendo criar um laço fraterno, apenas tentando dissolver tal teatro tragicômico, levantei também e, sem perceber, me aproximei muito do meu amigo, tão assustado. 


 Relaxa, cara, eu não sou desses que ficam caçando assunto na rua, pode acreditar, só quero esclarecer esse mal entendido.


Estávamos realmente muito próximos.

Dando alguns passos para trás, quase caindo da calçada, meu amigo tentou se esquivar:


 Tá bom, cara, sem problemas, mas eu vou indo agora, meu ônibus chegou.  E estendeu seu comprido braço para o ônibus Jardim Miriam.

Nunca mais vi esse homem.



Tanto ainda



Ainda há tanto a ser dito!

Tanto ainda a ser explorado,
compreendido;
tantos primeiros cheiros ainda secretos,
nuances sem descrição
ou tela;
tantas esquinas do acaso a dobrar!

No entanto,
me flagro cheirando a boca do gato para entender que estou vivo,
enquanto
meus cem olhos opacos assistem à lenta-mas-implacável  decomposição do corpo, fadado ao fracasso
como tudo,
aliás, até mesmo aquilo que jamais conhecerei.


janeiro, 2014                                                                                                  

biografia não-autorizada de um herói nacional

nasci
senti tédio durante a maior parte da vida
enfrentei algumas dificuldades
escrevi algumas mentiras em meio a isso
e fui considerado um gênio intocável.

adoeci
morri velho e sozinho,
então me tornei herói nacional.


sábado, 26 de abril de 2014

Industrial


Querendo fugir desse apartamento
que me confina,
olho pela janela e não vejo vida.
Compreendo: a vida é anti, mas também sua ausência.

Um alvorecer vermelho áspero industrial revela o inevitável:
                       carros
que esperam vazios seus dependentes
(alguns já enfrentam mais um dia),
trilhos prontos pra carga humana,
altos prédios em blocos-cinza,


Muros


construções embargadas, guaritas vazias,
bancos vazios na estação...

Em qual lugar,
em qual refúgio terreno esconde-se a vida?

Sob qual luz,
sob qual luz que não seja essa 
opaca e leitosa 
revela-se o milagre?
   
       ,meu peito vazio
se contorce
           sem luz.

Meu peito sem leite pulsa e não ecoa.
Pelas minhas veias corre o ferro
o chumbo
metais pesados e leves
presentes nessa paisagem industrial que me brinda em todas as manhãs que encaro o dia.

           
Compreendo: também a ausência é vida.
Também o ferro moldado é vida.
Também o vazio é vida.    
Compreendo: mesmo a espera é vida.


Querendo fugir desse apartamento
triste que me confina,
olho pela janela outra vez e compreendo:
                                                         
                                                              viver dói.      
                                         (Vida essa amputada e nunca plena.)

E mesmo o amar não é pleno 
exige vigília e na vigília torna-se câncer.


Vem comigo...
Ao menos na minha fantasia, sejamos plenos.
Ainda que nas promessas, sejamos plenos.
Ainda que nos poemas, sejamos plenos.
Porque a vida não basta.

Tento outra vez, falho
e volto.

Volto e me refugio nesse poema interrompido
                                e impotente.


São Paulo, outubro de 2013

terça-feira, 22 de abril de 2014

Discurso sobre as camadas do silêncio


As duas batidas secas e ágeis na porta interromperam o ritual diário de Poliedo. Estirado no escuro, colchão no chão, numa espécie de transe induzido, Poliedo recebeu aquelas batidas como um aviso aflito e pesaroso; semelhante ao pai que nutre grande amor pelo filho, mas, num ultimato, anuncia que não medirá esforços para afastá-lo do vício em drogas.
Era sua esposa  Poliedo sabia  do outro lado da porta do quarto, usado como biblioteca e refúgio.

 Pode entrar.

Como alguém que se arrepende, a esposa de Poliedo abriu a porta cautelosamente e, enxergando apenas as pernas do marido  iluminadas pelo feixe de luz que acabara de entrar –, ainda do lado de fora ela perguntou:

 Não vem comer? Já esfriou tudo. Seus bifes eu ia fritar na hora, senão fica duro.
 Pode deixar que eu me viro depois, não to com fome agora respondeu estático, tendo apenas tensionado involuntariamente a coxa esquerda, ainda de olhos fechados.

A esposa ainda manteve a porta aberta por alguns segundos – Poliedo se percebia observado , então o silêncio e a penumbra tornaram a reinar no quarto.
Ele não sabia, sequer tinha interesse, mas os relógios já passavam das 18h; exceto o da cozinha, sem pilha, parado às 11:45 – e justamente nisso pairava seu pensamento desconcentrado e nômade.
Lá fora o trânsito se intensificava, era possível perceber pelo som urbano dos motores, pneus no asfalto da avenida e, sobretudo, pela suspensão parcial do silêncio.
“Eu deveria escrever sobre o silêncio...”, pensava então, “sobre as múltiplas camadas do silêncio... As diversas naturezas do silêncio, talvez até me trancar numa sala anecóica pra compreender de fato o que é o silêncio, porque certamente isso não é. O que agora trato como silêncio é simplesmente o isolamento; o abismo entre eu e o resto do mundo. Silêncio é o que preenche essa bolha onde agora eu estou; esse espaço em branco, vazio, escuro. Pela janela, além do trânsito, me invadem inúmeros ruídos: o canto insistente de uma cigarra, talheres tilintando, algum pássaro muito distante, a voz abafada de uma criança e outras dezenas que percebo mas não decifro, que impedem um certo tipo de vácuo, que dão textura a esse espaço que me abraça, possibilitando o próprio isolamento. O silêncio cotidiano nunca é pleno. E eu sou muito grato a isso...”
Poliedo levantou num pulo, ofegante, tomado por um formigamento cego, acendeu a luz e se pôs a procurar papel e caneta, afim de transcrever seus pensamentos acerca do silêncio, mas – como sempre – fatores externos arruinaram seus planos. Encontrou papel, mas não caneta. Teve ódio ao ver as palavras se perderem; ao ver que, sob a luz, era apenas um homem comum inserido num enredo tragicômico, encenado de si para si.
Abriu a porta do quarto e ao fazer isso sentiu uma lufada de ar leve e límpido  quase pôde notar claridade no corpo do ar. A esposa estava na sala, entretida em alguma atividade.

 A carne tá num pote, na geladeira, já temperei, é só fritar.
 Você viu a caneta?
 Que caneta?
 Aquela que eu uso pra preparar as aulas. Pode ser qualquer uma, na verdade...
 Não sei, não sou eu que uso... deve estar nas suas coisas de música.
 Não tá, já procurei – retrucou com certa agressividade.
 Eu não sou obrigada a saber onde você guarda suas coisas. E não começa a gritar comigo, eu não fiz nada!
 Não to gritando, caralho!, mas é sempre assim, quando eu finalmente consigo sair do marasmo, tudo acontece pra me atrapalhar e eu não consigo produzir!
Oh, tadinho! – disse num tom irônico que irritou Poliedo ainda mais – Como o mundo é cruel com você, né?
 Vai se foder! Só te pedi uma caneta, porra, não uma opinião.
 Pra quê falar assim, meu? Não joga a culpa em mim; se você não consegue mais escrever, não é me culpando que isso vai ser resolvido. E talvez se você se preocupasse um pouco mais com outras coisas, não se frustraria tanto quando uma coisinha assim desse errado...
 Como assim “outras coisas”? O que você sabe sobre isso?! Eu só te pedi a porra de uma caneta, não um sermão! – interrompeu, já se dirigindo ao quarto.
 É sempre assim – a esposa insistia –, você passa o dia inteiro em casa fazendo nada, fora do mundo real e, quando não consegue escrever, me agride, me rebaixa...

Poliedo mal havia fechado a porta, abriu-a de novo, com brutalidade, e foi na direção da esposa; pegou-a pelo braço com rispidez e olhou-a de modo opressor, de cima para baixo.

 “Fazendo nada”?! Eu não tenho culpa se você escolheu se atarefar ao ponto de não conseguir mais pensar...
 Ah, eu escolhi?!
 ...Eu me dou o direito de ficar parado e não vejo mal nisso! Ou você acha que suas aulinhas e seu trabalhinho num balcão são mais reais que meus textos? Você acha que as visitinhas que você é obrigada a fazer à sua mãe são mais reais e mais importantes que minhas meditações?! Você se acha mais humana por conviver no meio das pessoas, mas na verdade você não sabe nada sobre elas! Eu vivo desse jeito, em silêncio e no escuro, porque me condenei a isso. É meu dever! E eu cumpro ele! E sou bom nele! Agora me dá a porra da caneta e pode voltar pros seus afazeres reais e ridículos!

Poliedo saiu de cena com orgulho, sem caneta e sem resposta. Sabia que havia exagerado, que não devia ter rebaixado a esposa e que no fim ela estava certa. Precisava arranjar um emprego se quisesse seguir com aquela vida comum, matrimonial. Pensou em pedir desculpas, mas sabia que amanhã tudo estaria bem outra vez.
Sentiu falta dos seus dias de estrada e da parcial liberdade que isso proporcionava.
Então, sem mais nem menos, achou a caneta. Voltou ao quarto, mas a atmosfera densa e repovoada condenou suas últimas palavras ao ostracismo. O discurso sobre as camadas do silêncio teria de esperar.
Poliedo catou uma toalha limpa e se dirigiu ao chuveiro, desejando um demorado banho, no escuro. “Mais tarde, revigorado, eu posso finalmente escrever”, pensou.

***

O que se seguiu não foi exatamente assim. Depois de um longo e lento banho no escuro, Poliedo fritou os dois bifes e sentou-se no sofá, diante da TV desligada, decidido a encontrar um emprego no dia seguinte.



quarta-feira, 16 de abril de 2014

Presságio

I


     O cheiro que senti num relance quando me aproximava do aglomerado de universitários foi um presságio. Mergulhei na memória que o cheiro trazia e era tempero de carne, um taco de madeira alheio ao piso e a pele queimada, imprudente. Tendo a dizer que o cheiro na verdade é só da pele assada; inventei o tempero por inocência. Essa lembrança é antiga e hoje percebo que o cheiro doce e mórbido que senti num relance ao me aproximar do aglomerado de universitários é da pele queimada. O taco é adorno. Adorno da sala, adorno da memória. O taco não estava presente na ocasião, se bem me recordo. O taco é uma alegoria da minha memória distorcida, uma sobra, um abscesso, um câncer, uma pele morta. A pele queimada com cheiro doce me marcou e agora já não me lembro o porquê de ter sentido que o cheiro era um presságio.
     Sinto meu corpo enrijecer quando estou a poucos passos dos universitários e quando adentro o bloco que eles formam, percebo que não é maciço o bloco e sim um montante de círculos constrangidos, mal elaborados, quadriculados por semi-conhecidos, alunos veteranos, alunos novatos e não-estudantes – que em sua maioria são mais velhos e mais escuros (tanto na pele como nas intenções) do que os estudantes, fáceis de distinguir.
     Vejo os mesmos padrões sendo formados e forçados em todos esses bares: duas garotas – uma delas recessiva e insegura – conversando sobre provas e professores com dois ou três garotos extremamente seguros de si (que eu quase diria estarem mais inseguros que a garota recessiva); três ou quatro amigos deslocados do bloco oco porém dentro dele, rindo efusivamente e balançando seus copinhos e suas garrafas e esticando o indicador pro céu, reproduzindo passinhos inseguros de alguma dancinha moderna, buscando projeção entre algum grupo de garotas com roupas apertadas e escovas já sem força, que tentam ofuscar com o excesso de maquiagem; garotas com seus copinhos de cerveja que servem de enfeite ou figurino porque não bebem a cerveja ou até bebem um copinho vez ou outra, mas hoje preferem evitar porque não ousam ficar estufadas, porque a roupa está apertada, porque acabou o remédio anti-gases e porque querem estar com hálito de chiclete na hora de encontrar os não-estudantes que chegarão de carro, o farol alto, o bumbo eletrônico rasgando o subwoofer e não vão descer do carro pra fazer marra. As garotas vão acenar, se despedir do bloco como quem estende roupa no varal, mas não por prática.
     Vejo também alguns solitários. Corajosos inseguros bebendo além da conta, sozinhos em suas motos ou bicicletas, com suas mochilas e sem companhia. Digo corajosos porque eu jamais teria peito de me fincar no chão, sozinho, olhando as paredes internas desse bloco oco. Não permito que me vejam numa situação constrangedora dessas. Meu ego é sensível, coitado.
     Julgo enxergar rostos conhecidos, mas quando chego mais perto percebo que não são as pessoas que eu imaginei e isso é óbvio porque as pessoas que julguei ter visto – amigos próximos e conhecidos que só me toleravam por boa intenção – não moram mais aqui. (Talvez eu não more mais lá.) Os rostos ficaram colados num álbum imaginário de recordações, em alguma caixa de papelão imaginária, com mais algumas tralhas, livros, roupas, hábitos, o clima úmido, o trânsito de cinco carros, a praia, o jardim que a floreia de ponta a ponta, as putas magras de 20 reais e toda minha família.
     Quase posso sentir o cheiro de mofo e pó que ficou aglomerado na caixa imaginária de papelão, mas ligeiro lembro-me do cheiro da pele queimada, imprudente, e quando busco no arquivo morto da minha memória o porquê da impressão de um presságio iminente, espirro. Espirro e emerjo de mim mesmo. Como uma bola de pingue-pongue que uma criança afunda na piscina, depois solta pra vê-la surgir como um golfinho. Espirro não pelo bolor, ou pela poeira, tampouco pela pele queimada que inocentemente comparei a tempero de miojo por tantos anos, mas pelo forte cheiro de asfalto recém colocado na avenida que apelidei de quintal. Ato contínuo, esqueço-me totalmente dos estudantes e não-estudantes e à puta que pariu com isso tudo. 


II  

  

     Me aproximava eufórico de casa. Máquinas curiosas removiam o asfalto com uma facilidade espantosa. O asfalto removido era lançado em pó num recipiente que ficava na parte traseira da máquina. Passei por uma rua que poderia subir se quisesse e seria um atalho pra casa, passei reto, mas pouco antes de chegar à entrada do Buffet dei meia-volta e corei porque hão de pensar que sou louco. Vinha andando a passos largos, daqueles que temos medo quando sonhamos ou quando algum amigo encena, fazendo voz de demônio, e de repente resolvo dar meia volta e subir a rua. É de se estranhar. Podem pensar que não me dei conta da rua, ou que a velocidade com a qual eu andava distorceu o espaço-tempo, de modo que...
     Não. A verdade é que nem sei se me notaram. Meu egocentrismo diz que sim, mas a razão desconfia. Dou três passos contados e largos rua acima, então me lembro da ultima vez em que estive aqui e pensei “esse caminho não vale a pena, nunca mais subo por aqui”, mas seria demasiado estranho se retornasse e retomasse minha antiga rota. Os homens, de louco, achariam que sou débil-mental. Ou que estou despistando algum perseguidor oculto a seus olhinhos suínos. Divagariam sobre meu jeito aterrorizante de andar, sem a desconfiança de que caminho assim por pressa, presságio entalado e vontade de cagar.
     Subo toda a rua como se com vaselina nas solas. Reduzo à primeira marcha, quase ponto morto, e perco a vontade, perco a pressa e o presságio já não tem lá tanta importância. Noto o orelhão que fica de fronte ao bar do cara com deficiência na mão - está fechado - e decido telefonar pra alguém. Insiro o cartão. Três unidades. Dá linha. Busco algum número ou motivo pra telefonar. Tento vencer a primeira oportunidade de linha. Sei que em breve vai dar sinal de ocupado. Tenho todos os números decorados, desde os que aprendi na infância e me gabo disso com freqüência, mas agora todos se misturam numa proporção bizarra porque não se misturam realmente e é só desculpa esfarrapada pra tampar o fato de eu não ter pra quem ligar.
     Dá sinal de ocupado e três garotas vêm descendo pelo oeste. Por obrigação finjo falar com alguém, pois pareceria que sou um estuprador que pretende surpreendê-las sob o poste sem luz, fronte ao bar fechado do mãozinha. Julgo estar louco. Julgo que elas pensaram o mesmo, não só porque fizeram silêncio quando passaram por mim, mas porque não falo com nexo. Se elas soubessem que falo apenas por falar, com o sinal de ocupado me perturbando do outro lado (e por isso as palavras sem harmonia) me julgariam mais louco ainda, então eu explicaria que só criei essa situação pra que elas não pensassem que quero estuprá-las (mas na verdade eu quero) e elas já se afastaram, descendo por onde eu subi e vou atrás delas num ímpeto que desconheço e paro de supetão imaginando se os recepcionistas ainda estariam na porta do Buffet e que se eu descesse agora teriam certeza de que subi pra buscar cocaína, então um diria “eu não disse?, era droga!” e o outro derreteria a face, contrariado.
     Não ter descido a rua foi uma boa escolha. Evito passar por louco, drogado, estuprador e tenho a chance de recuperar o cartão que esqueci no orelhão que apita, agudo, e só noto o apito quando chego muito perto do orelhão porque o barulho das máquinas removendo o asfalto está realmente alto.
     Respiro. Guardo o cartão no bolso de trás e sinto a chave de casa. Três unidades, nenhum número pra ligar. Nenhuma prece por mim esta noite. Meus amigos próximos e os que me toleram por boa intenção devem estar naquele bar que íamos quando eu ainda morava lá. Esse pensamento me consola. Sinto um prazer egoísta e excitante. Sorrio com o canto da boca e penso estar chamando atenção, parado no meio da rua. Não quero andar pra canto algum. Gostaria de me fincar no chão, sozinho, mas sem a atenção das universitárias inseguras, sentindo esse prazer macabro que me invadiu, tão genuíno. Sou teimoso e não movo centímetro. Sigo pensando em meus amigos naquele bar inseguro, com homens inseguros beliscando a bunda de outros homens inseguros, falando de futebol, vídeo-game, putas e empregos com extrema segurança. Todos em sua zona de conforto. Até a discórdia está na zona de conforto comum que se cria por inércia.
     Sinto certa raiva de tamanha estupidez. Deus, como é possível! Uma palavra nova, um pensamento novo, uma ação já seria novidade! Tento imaginar qual faísca salva a noite deles agora que eu não estou mais lá pra beber além da conta e proferir xingamentos terríveis aos ventos, aos outros, dizendo coisas que todos no fundo sabem, mas não ousam comentar. 


III, IV


     Chego ao portão de casa seguido pelo cachorro branco que vive por aí clamando ajuda e quando pensa que vou abrir pra ele entrar, enxoto-o a pisoteios e entro sozinho.
     Percorro o primeiro corredor com cautela. Não enxergo os degraus. Ambiciono escrever um conto assim que me instalar em casa. Penso em usar uma ideia que tive enquanto voltava do trabalho. Um conto que tem como ponto de partida um cheiro que me lembrei recentemente, e a falta de compromisso com o tema me tranquiliza porque é só um cheiro. Percorro o segundo corredor com mais desembaraço. As luzes de algum lugar cedem quase que por obrigação um pouco de claridade ao corredor com portas que é onde eu moro.
     Gosto daqui. Me sinto protegido e exilado. Um exílio opcional e silencioso. Aqui as pessoas não passam muito tempo, como se ficar em casa fosse um crime. Arranjam todos os pretextos imagináveis pra passar o dia todo fora de casa e só sobra tempo de sentir orgulho disso! Que ódio eu tenho dessas pessoas que levantam às cinco, sem ideia alguma do que estão fazendo, que se arrastam por aí, que acordam o sol com a batida no portão – mas não me acordam – e seguem pra algum curso ou pra algum emprego que odeiam e saem do emprego ou do curso que fazem pra poder mudar de emprego e vão pra outro curso, ou outro emprego, ou alguma faculdade que tratam como uma extensão da escola, ou como um intenso e extenso vestibular pra algum trabalho que almejam, mas a verdade é que não têm IDEIA de onde querem chegar. O que se sabe é que é crime ficar em casa. É crime deitar num colchão no chão e olhar pro teto e reparar nas paredes brancas ou no pedaço de céu que lhe é reservado; que ocupa todo o espaço que falta à telha quebrada e graças a deus essa telha está quebrada porque o pedaço de céu que se vê é mágico. Muito melhor do que enxergar todo o céu possível do gramado de um parque, que é falso, que é frustrante, que não é céu e sim a luz do sol refletida em éter ou vácuo ou espaço ainda não colonizado. O céu que me brinda todos os dias é céu de verdade. É um refúgio dentro da minha casa que é meu refugio por essência. E é meu refugio porque aqui eu fico sozinho e quieto e no meio do Morro do Querosene onde as pinturas folclóricas se mesclam às roupas forçadamente despretensiosas dos moradores. E as pinturas folclóricas são também um refúgio porque não me forçam a reciclar o lixo ou evitar sacolas plásticas. Quem as pintou faria isso. Quem as pintou não fica em casa fitando o teto porque acha crime, bem como todos os meus vizinhos que ainda estão fora de casa quando eu chego e abro a porta e peço licença às baratas e sou ignorado e noto que faço papel de bobo em posição defensiva na porta de casa, como quem abre a porta e espera encontrar um homem armado.
      Entro.
     Fecho a porta mas não tranco. Nunca tranco. Acendo a luz do aposento que arrisco chamar de quarto, fingindo que não procuro baratas sobre o colchão. Atiro as tralhas – livros, toda a roupa do corpo, as chaves de casa, o cartão telefônico com três unidades e a vontade de estuprar as três garotas – às pressas no colchão e dou pra preparar um café porque sinto que hoje o texto flui. Abro a despensa improvisada num armário em pátina amarela e procuro café. O café aberto não é suficiente pra minha fome literária, então me obrigo a abrir o outro saco que é de café Pelé. Pego uma colher de sopa de café Pelé, adiciono o farelo do outro que é Três Corações e penso que devo inserir isso no texto que vai ter o cheiro agridoce como ponto de partida, mas logo descarto a ideia porque sei que vão julgar uma armação mal feita, uma piada ridícula. E no caso de nem perceberem que misturar café Pelé e café Três Corações é um fato curioso eu ficaria com cara de gelo porque pensariam ser um merchandising falho.
     Encho a panela com a água e descarto totalmente a ideia de inserir o café no texto. Esquento uma sopa grossa que tomo com pimenta e ligo a TV, sem som. Resolvo não interferir e tomo a sopa fazendo leitura labial. Sinto resíduos de sopa no meu bigode e tento sorver tudo de uma só vez mas me surpreendo com o gosto de bigode que entra na minha boca e a pimenta em excesso que vai direto pra a garganta e queima. Bebo da água que deixei congelar na noite passada na tentativa frustrada de apaziguar o ardor. Um mosquito zune (zune?) dentro do meu ouvido e me irrito, tento pegá-lo mas ainda estou atordoado, ele voa alto e eu me levanto e fico de pé no colchão e sigo o crápula com os olhos e sinto orgulho por não perdê-lo de vista. Encontro um momento oportuno e lanço um jab, erro e lanço uma sequência de cruzados e ganchos e tapas de mão frouxa e não há meio de nocautear o bicho que zune e alem de zunir me chupa o sangue mas duvido que o sangue seja meu quando o estraçalho e vejo um sangue claro demais.
     Dou um peteleco no que ficou grudado no meu anelar direito e vou deixar a cumbuca vazia na pia. Levanto o pé exageradamente pra não tropeçar no fio da TV, que anuncia um combate de MMA depois do programa sobre leitura labial. Hesito um pouco. Julguei ter visto essa luta na noite passada. Como pode? Até comentei sobre a luta com alguns colegas no trabalho e agora sei que fiz papel de besta! O pouco que vi da luta na madrugada de ontem foi suficiente pra me causar emoção na hora, na pausa entre sonhos conturbados e na verdade também era sonho essa pausa. Pesquei o momento do nocaute onde o lutador brasileiro acertava um belo chute no queixo do mexicano, fazendo o queixo esticar desproporcionalmente até que ficava muito mole e tocava o chão, me remetendo imediatamente a um pesadelo da infância. Agora é óbvio que foi sonho. Como pode o queixo de um homem virar melaço e tocar o ringue? Como fui dar a sorte de acordar e flagrar exatamente o momento do nocaute? Como posso ter visto a luta se dormi com a TV desligada?
     Volto pra cama com a xícara de café e tento ligar o computador, sem sucesso. Estou acostumado. Normalmente ele funciona pela vigésima tentativa. Engraçado. Vinte tentativas. Aproveito o tempo pra enriquecer o texto que pretendo escrever assim que o café esfriar e o computador me obedecer. Não consigo sair do tal cheiro.
     Ouço o silêncio. Sopro o café e levo a xícara à boca, mas não chego a tomar. Deposito o café no chão e ligo, certeiro, o computador. Estou ansioso. Volto a sentir aquele prazer mórbido. Ouço o asfalto ser desmantelado, mas não me importo muito com isso. Espero o computador funcionar direito e decido usar o asfalto no texto. O cheiro da pele queimada pode se fundir ao do asfalto fresco e eu posso inserir a situação constrangedora de passar pela calçada do bar da faculdade que tem aqui perto, encher linguiça descrevendo alguns tipos, posso dizer que passo por eles de cabeça baixa mas isso soaria submisso então uno os universitários a alguns amigos que julguei ter visto no mesmo bar dias antes, invento algumas metáforas que logo me escapam, penso em plagiar Budapeste, bebo o café e abro um arquivo com um início de texto que apago e deixo como linha inicial “O cheiro que senti, num relance, era adocicado...”. Gosto desse começo e sou obrigado a colocar fones de ouvido pra não ser interrompido por mosquitos.
     Miro a tela. A barra de texto piscando e estou obstinado a achar disritmia no seu piscar. Enrolo a mim mesmo. Não dou continuação à primeira linha, que mudo incessantemente. Sinto o cheiro absurdo que meu ralo emana e perco o foco. Meu ralo é um rombo indiscreto e fede o fedor de outras casas também. O cheiro adocicado das fezes da vizinha, da bosta do vizinho e da minha bosta que cheira muito melhor que a deles. Mas é injusto que o ralo exale esse cheiro quando eu não usei o banheiro. É injusto – e um pouco fetichista – que eu saiba quando meus vizinhos cagam. Só quando eles cagam eu noto suas presenças.
     Vou até o ralo e despejo mais que o necessário de desinfetante. O cheiro é forte e ofusca o do ralo. Fecho a porta do banheiro sem olhar pra trás, meio fazendo tipo, meio querendo me tornar um homem digno de se colocar num texto que começa com a frase “Quando senti aquele cheiro de pele queimada, num relance, senti que...” e não prossegue. Mudo a introdução e largo o texto – a barra de texto piscando sincopada. Ouço um ruído familiar e me preparo. Cato um pé de tênis que nunca vi na vida e procuro a barata. Noto-a correndo desesperada pelo rodapé da cozinha e arremesso o tênis. Sinto uma dor absurda no ombro que esteve doído o dia todo e eu já nem lembrava. Desisto da barata. Ela entra na caixa dos livros. Levo a mão ao ombro esquerdo, que rodo em semicírculo. Acordei assim hoje. Com dor no ombro. “Talvez tenha sido a comemoração excessiva pela vitória do brasileiro”, penso, e rio um riso auto-suficiente e pateta. Me ocorre a genial ideia de fundir o cheiro da pele desmantelada, do asfalto queimado e do ralo coletivo, talvez acrescentar um perfume barato de alguma universitária insegura.
     Desisto do ralo. Pode parecer plágio. Plagiar o Chico Buarque é até válido porque a prosa dele – embora uma joia rude – sofre fortes influências da prosa alucinada-mas-lúcida do Saramago e por aí vai. Agora, plagiar Selton Mello e Lourenço Mutarelli é meninagem. Mudo a primeira linha do texto e parece que agora vai. Falo do cheiro da pele, invento um taco de madeira pra ilustrar, falo dos universitários, uso exemplos antigos, embarco numa prosa alucinada que não é joia nem lúcida mas não dou bola. Invento um presságio, um cartão telefônico, meninas a oeste, um orelhão na minha rua, um estupro, enfio o Mãozinha no texto, aproveito pra falar das baratas, repudiar os vizinhos, falo falo falo e falo sem sair muito do lugar. Patino na areia fofa. 3.347 palavras escritas e eu só voltei do trabalho pra casa. Passei por jovens sedentos por sexo, cheiros muitos, ruas íngremes, Buffets, céus e parques, um cão carente e uma sopa grossa; até fiz café mas não atingi questão alguma, não concluí nada, não fiz a coisa andar e amanhã eu não posso esquecer de falar pra Maria arrumar os embrulhos de presente. Alternei momentos de bastante pontuação com momentos onde vírgulas pouco se faziam notar, mas acho que não obtive êxito, um mosquito zune (zune?) no meu ouvido e eu largo o texto porque levanto com ódio e quero matá-lo, mas não consigo, então vou até a cozinha pegar a garrafa d’água que sei que deixei congelar e tropeço no fio da TV que desliga e me deixa prostrado no escuro ouvindo o tilintar de alguma barata atrás de mim e piso em ovos pra não pisar em baratas e vou até o interruptor da cozinha com o coração equivalente a um bumbo eletrônico rasgando o subwoofer e quase ouço meu tórax rasgar mas não dá tempo porque acho o interruptor e vou acender a luz com a mão frouxa porque temo tocar em baratas, dou um peteleco fugaz e erro e desisto da cozinha e volto para o aposento que arrisco chamar de quarto num desespero que só Gregor Samsa sentiu quando, numa certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, se viu metamorfoseado num inseto gigante.
     Acendo a luz. 



I, V


     O cheiro que senti num relance quando me aproximava do aglomerado de universitários foi um presságio. Mergulhei na memória que o cheiro trazia e era tempero de carne, um taco de madeira alheio ao piso e a pele queimada, imprudente. Tendo a dizer que o cheiro na verdade é só da pele assada; inventei o tempero por inocência. Essa lembrança é antiga e hoje percebo que o cheiro doce e mórbido que senti num relance ao me aproximar do aglomerado de universitários é da pele queimada. O taco é adorno. Adorno da sala, adorno da memória. O taco não estava presente na ocasião, se bem me recordo. O taco é uma alegoria da minha memória distorcida, uma sobra, um abscesso, um câncer, uma pele morta. A pele queimada com cheiro doce me marcou e agora já não me lembro o porquê de ter sentido que o cheiro era um presságio...