segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

calvo

meu coração calvo de tanta espera
compreende tu e o tempo.

brusca fisgada por ser do lar,                   

    vazio                           
                              nos quartos

tua roupa no tanque. 
e no palanque de mim:
não-eu
     
          (ainda)

não mobiliamos o espírito.

teatro popular sem decoração:
casamento não rima com poesia.


sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Poema Rimbaudiano



Quero fundir meu corpo ao caos!
Que a minha existência seja o sinônimo do absurdo!
Vou devorar estradas e vinhos, carne e Deus.

Enfiei o punho na existência,
tem cheiro de vômito.

Desmascararei os filósofos e — sobretudo
os monges com seu silêncio pedante.

Andarei pelo pântano e direi:
"Onde estão vocês, almas condenadas?! Vamos festejar!"

Surgirão mendigos, alcoólatras, loucos, mulheres como Zelda Fitzgerald,
homens como Rimbaud e começaremos a celebração!
Sem limites, sem pudor, sem consciência linear.
Atuaremos para Buñuel. Ou Arrabal.

Seremos a corja, os habitantes do inferno.
Um riso escancarado e interminável narrara a noite.
Seremos santos no entanto.
Purificaremos a alma com o elixir da luxúria
e estaremos prontos.
Sim.


São Paulo, 2012                                                       

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Puro enfim


De tanto tropeçar em linhas tênues,
manchei de barro minha honra.

De tanto andar a esmo sob o sol,
tornou-se o barro pesada armadura.

Fechado em mim
sujo e famélico,
construí pequeno império de certezas amargas.

Tive orgulho.
(Arrogante e ingênuo orgulho.)
Escrevi amores, asfalto,
terras novas...

Nunca fui feliz.

Atravessei invernos cruéis
verões cruéis
primaveras murchas
outonos sem cor
e cheguei a você.

Descartei a armadura.
Me banhei na água pura que nasce de ti.
Conheci o mais sublime cheiro de vida.
Abdiquei do meu império,
larguei terras velhas,
enterrei amores...

Tenho orgulho e devo anunciar:
Nunca fui tão feliz.


segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Chama

Entrego a vida à tua chama rubra.
Peço: me incinera.
Me destrói e cuida.

Prepara a mobília,
                   logo eu chego.

Mais como quem vem fugido;
chego como quem busca redenção, colo
e lar.


domingo, 3 de novembro de 2013

mais um que é dela

você, leoa
me transfere a função:
vou de predador a presa
e preso sob suas garras e juba solar,
transcendo
e morro.


terça-feira, 22 de outubro de 2013

Rainha ruiva

Nesta tarde onde o tempo é sólido e rasteja
recebo surras de lembrança e máculas.
É outono.
A despeito disso o Sol arde e ofusca e projeta nas mulheres uma luz rubra que é só sua, minha Leoa.
Iludo-me apesar da certeza da distância.
Fantasio sexos expostos ao sol e me frustro,
não quero outra.
Só você é capaz daquilo que só nós sabemos (e agora exponho):

É você quem me transforma em bicho selvagem e me faz rastejar (como o tempo na tarde de hoje)
em busca monumental e mística.
É por você que me curvo e me entrego e me dôo
e dôo
e peco, peço mais
e peço punição
e gozo um gozo jamais visto
e me visto da sua pele branca
vermelha
e me torno o feto que não se consolidará em você
e encolho e semeio o seu colo
e então você me escolhe, me colhe
e me engole de colher,
Leoa arisca.

Seu corpo é minha Via Crucis,
meu caminho de Compostela,
minha nova estrada,
minha poça de lama
e água límpida.

Ah, minha rainha ruiva,
você jamais caberá nesse poema...


quinta-feira, 19 de setembro de 2013

voo, ou uma ausência sólida

"(...) passarinho de metrópole é papel que voa na imensidão."
Natame Diniz


menina-pássaro foi-se embora.
de tanta ausência, foice em mim

ação do vento:
ausência evapora.
de tanto vagar, outro ninho compus

menina-pássaro avoa agora abstrata,
sua ausência me é leve, sua imagem me é paz.

nosso ninho desfeito me é sólido na ausência,
menina-pássaro quiçá pousará
no meu jardim outra vez.


(...)

O que falo ainda não compreendi —
sou tudo aquilo que calo.


terça-feira, 27 de agosto de 2013

No princípio era o verbo

Na manhã de hoje, Deus (que é todas as coisas) me foi
e me fez soar por ruas da memória e cheiros,
mas me amputou a caneta.

Enviou-me espelhos sem olhos
e me cobriu de olhos sem punho.
Fui espectador e protagonista.

Inserido e ausente em mim, senti farpa na sola 
                                          percepção terrena.

Presenciei tratores que tanto me atraem,
não pude sequer querer interferir.
Compreendi
(como compreendi a carne suculenta diante de mim)
que o equilíbrio é balança e não deve ser tocado.

Na manhã de hoje, Deus me aboliu a rima
e me deu boa memória.
Vestiu-me de higiene mas borrou-me as mãos.
Compreendi;
não anunciei.

Na manhã de hoje, Deus me enviou um novo verbo.
Na manhã de hoje eu apenas sive.


quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Jorge Luis Borges

Degusto em silêncio-penumbra as letras do velho que serenou em vida.
Aprendo que sou o outro e hoje é ontem.
Às oito da noite é penoso querer não ser o outro,
Há gente demais no mundo, destinos se chocam.

Evoco os grandes; não me desce o medíocre.
Brado de modo pouco sereno (sou chuva).
Permito ser irritado pela formiga que me acaricia o braço, talvez invasiva.
Como posso exigir exclusivo espaço no mundo?
Há gente demais, digo a verdade.
Evito neologismos 
Percebo que a boa escrita vem de um homem que está cansado,
                                                      não aceita trapaças ou glacê.

Almejo tecer a teia do Tempo, sentir a existência (isenta de toque) de outros que sofrem
em quartos, em silêncio, em penumbra...
                                                         (Percebo que sofrer é egoísmo.)

Consulto novamente o cego oráculo, por acaso argentino,
universal por mérito,
sereno por consequência de vida confinada em
frustrados amores,
escuras bibliotecas, frias e mofadas bibliotecas,
surdas universidades,
abafados cafés,
infinita e flexível memória têxtil...

Jorge Luis Borges,
hoje escrevo sobre mim
buscando te ressuscitar
afinal,
hoje sou você.


Sonho

Desperto de uma noite vivida e eternizada no vasto porão da memória,
calço chinelos para poupar a sola.
Ando devagar e me surpreendo. A alma, apressada, tropeça e cai de cara.

Rememoro a noite eterna.
Bem longe daqui,
naquela cidade onde nunca mais estive
acolhido naquela casa que volto vez ou outra
(em sonho)
na presença leve e quente da garota-cacto.

Noite de mesma textura de tantas passadas,
de olhar pela janela e perceber um céu alto e impessoal.
De perceber que o mundo é vasto
e que somos insuficientes,
ainda que plenos em momentos como esse.
Plenos em nossa pequenez que jamais deve ser questionada, porque absoluta.

Abro a porta, devaneios desfeitos,
textura escorrida, presença extinta,
sonho encerrado.

Porta aberta, a vida massacra
                            plenamente.


Ranço

Do último dia restou um ranço.
A certeza de ser insuficiente,
A culpa por ter te usado de forma humana,
Ter te visto tão pequena...

Ranço esse que é inédito a nós,
                               namorados.
Nossa primeira mancha, tingida para esse poema,
Já não sei se humana ou metáfora.

Da última tarde restaram manchas.
Sangue,
Suas roupas no meu chão,
Meu chão sem tuas cores,
Ter te visto tão bonita.

Do último olhar restou uma dúvida:
quando outra vez?


terça-feira, 20 de agosto de 2013

Eu

Palidamente cansado, menos anuncio que lamento:
Homens são ocos.
Agitam-se ao menor estímulo e fazem estardalhaço demais.
Ocos, preenchem-se de qualquer substância insossa.
Não digerem, vomitam.
Seus vômitos insossos e ruidosos inundam praças, palanques,
corredores, teatros, arquibancadas, velórios e bares.

Algumas certezas estão mal fixadas nesse mecanismo:
Que o ontem é áureo,
O amanhã é incerto
E o hoje, decadente.
Certezas equivocadas que se fixam como parasita no estômago (o órgão da alma).

Palidamente cansado, certamente anuncio:
O tempo não é.

Ao tempo não se permite verbo  percepção humana.
Não há contagem.
O universo é um instante.


Panteísmo

Magma
Matéria-bruta de mim
Saber-me inútil
Queimar tanto

Sinto a expansão do meu corpo que quase rompe.
Pouco falta para que seja fluído corrente

A morte me espera. 
Antes disso, a sólida e crudelíssima solidão 
desejo de morte
a cegueira
acúmulo de perdas
a melancolia (composta por átomos de todo o resto),
também um aperto de mãos ou caminhar...

Não caibo em mim porque sou dois.
Não infinitos; dois apenas.
E cada qual com infinidades de texturas e intenções, compostos por átomos de todo o resto.

Nessa inédita manhã que se repetirá, compreendi Deus,
que é todas as grandes coisas e também
                                um grão.


ALMA

Hienas sentadas em sofás de peido e veludo
engolem carniça enquanto cacarejam (sem dentes) sobre a minha ocupação.
O que canto (música) sai sem som a seus ouvidos IMUNDOS
Todas as hienas na clausura de suas vidas amputadas vomitam escárnio e pensam pensar:

                       "pobre criança sem futuro"

Colérico, ranjo dentes.
Penso em esfaquear esses corpos natimortos recheados de preconceito e bosta.
Esses cadáveres marrons derretidos que se arrastam por aí com pérolas de ostra,
reunidos com o propósito de celebrar a falta de propósito de suas vidas-carteira-assinada.

Hienas dementes constipadas e cínicas.
Hienas FALSAS TINGIDAS E EXPOSTAS NA MAIS PATÉTICA PRATELEIRA.
Alto preço, sem apreço ou valor.

                                   Tremo tremo tremo tremo tremo de ódio

Engulo. Empunho minha harpa e dedilho verdades que me tornam veludo outra vez 
                       sou salvo.

Transformo a carniça em adubo
                          e me glorifico,
                                pleno.



manchei-te

as reações absurdas
ao beijo do jogador
a piada repetida
o animal falante da semana
o assassinato do mês
os movimentos sexistas e
sua impávida mania de perseguição
o sexo como inseguro artifício
a eterna busca do amor sublime
o coitadismo como espetáculo
a rima
a agenda setting
a propaganda que caracteriza e subestima
as mesmas perguntas
as mesmas certezas
as mesmas polêmicas
o elegante banquete de mediocridade
o barulho excessivo
a risada das hienas
o contentamento

tudo isso me enoja
diariamente


quinta-feira, 15 de agosto de 2013

poema de aniversário 03

uma pequena mudança:

abandonei um poema para ir matar a fome
e comi como se matasse a fome da época em que escrevia justamente por não ter o que comer
sim, o mito do escritor faminto
eu era um clichê impregnado de verdade
mas hoje eu sento com meu jazz no ouvido e tenho a opção de pausar um poema para comer salame
é verdade comi como um animal enquanto andava em círculos pela cozinha emprestada
E TOMEI COCA-COLA lembrando dos dias em que bebia água turva da torneira e 
comia farinha de milho diluída nessa mesma água sonhando com pratos fumegantes
esperando visitas que pudessem me salvar da minha própria emboscada
fazendo a manutenção de uma vida miserável
premeditadamente miserável
miseravelmente solitária
era uma vida

sem salame
 com alma 


agora estou gordo
estou morno
sentado inofensivamente ouvindo jazz em meus fones de ouvido lembrando de um tempo que já... 

terça-feira, 13 de agosto de 2013

é verdade que nesse momento eu mataria

meu escudo é fraco.
minha espada (forjada no fogo do poema)
é muito frágil também.

confesso que agora
usaria metralhadora.




sexta-feira, 2 de agosto de 2013

papel higiênico

eu estive no inferno
e por alguns anos me ocupei com tudo aquilo que deixei pra trás.
mesmo nesse período, algumas mulheres frequentavam minha casa;
umas como serpentes, outras como estrelas plásticas, algumas desgarradas,
houve até aquela mãe que ejaculava.
eu andava preocupado com alguns assuntos:
meu estômago, minha sanidade, meu ego.
compreensivelmente, nunca me lembrava do papel higiênico,
então essas mulheres passaram a carregar seus rolinhos na bolsa
e às vezes diziam “olha, eu trouxe esse rolo de papel higiênico pra deixar aqui”
e deixavam, 
para que pudessem se limpar adequadamente na próxima visita.

durante alguns meses, essas mulheres de bom coração (sentiam pena de mim)
me abasteceram com seus rolinhos gentis, mas também com tipos diferentes de
amor,
alimento,
sobrancelhas,
sorrisos,
corpos e fios de cabelo

mas aos poucos tudo acabou.
elas me deixaram, eu as deixei.
não existia mais amor a oferecer  
ou o refúgio de que tanto necessitávamos.
(era simbiótico.)

anos depois, tendo saído honrosamente do inferno pela arrombada porta da frente,
ainda carrego comigo essas garotas, 
exatamente como carregavam seus rolos de papel higiênico 

assim como elas faziam, eu as uso para limpar tudo aquilo que escorre de mim
em noites como essa.


quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Uma pequena comédia

     Meio-dia e meia. O sol vai alto.
     Entra em cena uma já senhora com aspecto de empregada doméstica, andando mais rápido do que seus pés suportam. Segura com a mão direita a alça da bolsa que está pendurada em seu ombro. Persegue uma outra já senhora com aspecto de empregada doméstica.

 — Narva... Narva... Narva!

     Narva finalmente escuta. Narva para de andar e olha para trás, por cima do ombro. Reconhece sua colega e logo dobra o braço, apoiando na cintura seu punho fechado, tentando demonstrar certa braveza.
     A primeira senhora anda rapidamente em sua direção. Olha instintivamente para o lado esquerdo, de acordo com o protocolo que impede que duas pessoas distantes se olhem até o momento em que estejam próximas o suficiente para um diálogo.
     Narva, enquanto forja sua postura brava sem sequer saber o motivo, olha de soslaio para todos os lados, tentando perceber se alguém a observa naquela posição.
     As duas colegas finalmente estão próximas o suficiente. Narva sorri; a primeira senhora desembesta a falar sobre alguma coisa. Passam a caminhar lado a lado, conversando sobre algum assunto importantíssimo.

hiato

após um árduo vôo
revirei o baú real
e encontrei meu leal diabo
suíno em Luana.

o ciúme dobrou os joelhos
e, pior, desafiou a saúde:
hérnia de hiato.

cruzei a caatinga, miúdo,
conheci hienas
e o feroz ruído de suas risadas.

meu balaústre jônico ficou em ruínas
e o juiz, aliado, condenou-me,
de modo que passei a comer,amiúde, as raízes da voluptuosa rainha
pela fresta do meu ataúde.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

3 (Um conto inútil)

     Era possível ver três silhuetas ainda na parte alta da rua cercada por densa vegetação.
     Desciam a rua a passos despreocupados, de costas para a lua cheia que brilhava, muito alta e límpida. Eram dois homens e uma mulher. Todos não passavam dos 25 anos. Pareciam alegres — talvez embriagados, mas compostos. A garota andava entre eles e era certamente a mais efusiva; ora se virava para um, falando energicamente e segurando-lhe o braço, ora para o outro. A cada vez que se virava parecia ainda mais eufórica e arregalava os olhos e ria e gesticulava com a mão eventualmente livre.
     Chegavam, enfim, à parte baixa e plana da rua. A temperatura ambiente era amena e não ventava. Dir-se-ia que o clima estava seco, mas a excessiva claridade azul da lua sugeria o contrário. Conversavam sobre um projeto que acabara de nascer na mesa de um café, espontaneamente, como extensão de um primeiro projeto — motivo do encontro.
     Dos garotos, um era músico. Alto, magro e meio curvado; o outro não passava dos 1,75m, tinha ombros largos e um sorriso pré-estabelecido, limpo e muito honesto. Era ator.
     A garota e o rapaz circunspecto se conheciam há alguns meses. Até a presente noite não conheciam o ator. Receberam indicações a respeito do seu trabalho e marcaram essa reunião para discutir as propostas de uma filmagem. Tudo correu bem. Mas tratavam agora do outro projeto, nascido do clima favorável e garrafas de cerveja extremamente geladas.
     Todos falavam ao mesmo tempo. E alto demais. Já não era uma conversa, mas uma vulgar poluição sonora, como galinhas confinadas que cacarejassem ao redor do milho recém-lançado.
     O novo projeto tratava de uma performance improvisada, reunindo a expressão corporal do ator e a música do outro. A garota dava ideias e parecia querer coordenar o espetáculo.
     A larga rua chegava ao fim, desembocando em avenidas, pontes e marginais. Cada um seguiria numa direção.

 — Poxa, a gente nem pegou os contatos um do outro! — disse o ator.
 — É verdade! Eu acho que tenho caneta e papel aqui na bolsa!
 — Eu não tenho telefone, mas pega meu e-mail! — disse o músico.

     A garota não achou a caneta.

 — Ah, mas a gente vai se falando! — disse o ator.
 — É, eu pego seu número com a Luma! — disse a garota.
 — Ha, ha, nem adiantaria você pegar meu e-mail. Não vou olhar tão cedo!

     E assim chegaram ao ponto decisivo.
     Despediram-se e cada um tomou seu rumo.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Cores

A custo de espirros, construímos um santuário vermelho
Que nos engloba e tudo o que há em nós.
Que te flamba a pele branca e dá textura de corpo
E flamba todas essas palavras que adoraria bloquear.
(Algumas te escapam como tosse e me adicionam doses de azul.)

O santuário é só quarto.
O vermelho é só lâmpada.
O que nos engloba é éter
E sua textura é só pele.


Você abre a porta e percebo: o mundo é mesmo azul.


quinta-feira, 11 de julho de 2013

Osvaldo, ou Pequeno conto sobre ter quase 100 anos

Hoje tem visita, mas a velha não se importa. Não se importa porque já não mais distingue a visita, que é a filha mais nova.
Há cinco anos que a velha já não é dona da própria razão. Há cinco anos a velha pronuncia, clamando, o mesmo nome:
Osvaldo.
O nome Osvaldo tornou-se símbolo de desespero na casa. Desespero da velha moribunda a quem parece necessitar Osvaldo; desespero do bisneto que mal teve contato com a velha e que não tem paciência para com as lamúrias. Desespero da filha mais velha da velha, que é obrigada a suportar tudo isso; que cuida da mãe vegetal como cuidou dos filhos que morreram cedo; que cuida da mãe como a mãe um dia cuidou dela, e revida na mãe vegetal os maus tratos que recebeu.
  
            - Quem é esse tal de Osvaldo que a mamãe tá chamando?
          - Eu não sei, Terezinha, quando eu não dou o remédio e ela fica agitada, só sabe falar esse nome. Ela nunca me falou de nenhum Osvaldo. O papai também não.
            - De certo deve ter sido algum namorado que ela teve na juventude.

A neta da velha – filha da filha mais nova – vem subindo as escadas com o bolo. É aniversário da velha. 96 anos. Da escada é possível sentir o cheiro de urina e fezes que o quarto emana. A neta quase vomita. Para, respira devagar, fecha os olhos, se concentra e segue até o quarto, ao final do corredor, onde estão sua tia, sua mãe e a velha.
“As crianças devem estar chegando”, diz a neta.
A neta tem 46 anos. Dois filhos; um garoto e uma garota que chegam após 12 minutos.
“To aqui em cima”, grita a neta para os filhos, que sobem as escadas contra a vontade, mas não questionam. No caminho, quase vomitam. Param, respiram devagar, fecham os olhos, se concentram e seguem até o quarto, ao final do corredor, onde estão a velha, a avó, a tia-avó e a mãe. Param na porta.
O parabéns é tímido e constrangido e a velha só faz soar “Osvaldo, Osvaldo...”
“Quem é Osvaldo?”, pergunta a neta.

Ninguém sabe. Ninguém conheceu esse Osvaldo.


Surpreso


Joana se casou!
Parece piada.
Não bastasse a angústia de
dividir o teto,
descubro que Joana se casou.

Casou
e provavelmente abandonou velhos apelidos.
Abandonou velhos amigos, o seu país,
tenta abandonar velhos hábitos...

Bem, é isso.
Joana se casou
e acabo de perceber que seu sorriso é torto.
(Talvez por um novo hábito.)
Joana não tinha o sorriso torto. Eu garanto.

(Essa maldita música me deixando melancólico.)

Joana não existe.
Joana é uma fantasia de carnaval,
um velho hábito que tento abandonar,
um apelido para solidão.

Joana é meu país.

Joana, casada e de sorriso torto,
é uma piada, uma angústia,
um dividir o teto.
Joana, que costumava ser meu teto,
meu texto, minha fantasia,
agora se casou e certamente não pensa em mim.
Mas ainda costumo ouvir sua voz por aí,
nos corredores da memória –
aquela fantasiosa avenida de carnaval.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Hotel

Fomos expulsos do hotel. Alegaram ser um hotel de respeito.
Pensei em dizer algumas verdades: que o ventilador não funciona, a TV também não, que tem baratas no quarto e que o chuveiro queimou no segundo banho, mas ela me arrastava pelo braço (essa mania que odeio mas não falo).
De mala na mão e ainda de camisa aberta, encontrei-nos sem teto. Então ela sugeriu que fôssemos à biblioteca municipal.
Ao chegar lá, o silêncio me sugou como faria o vácuo. O silêncio claro de luz formigante era uma verdade plena e me extorquiu as palavras da mente, como duas sondas que me tirassem a cera dos ouvidos.
Surdo, fui ler Borges.
Ela tinha algum compromisso, mas disse que voltaria.
Só recuperei a audição quando a chuva, ao se chocar com o teto da biblioteca, fez soar como inúmeros carrinhos de supermercado passeando ruidosamente por sobre suas rodinhas malditas.
"Quando ela chegar", pensei, "vou dizer pra que nunca mais me agarre o braço daquele jeito".
E tendo tomado essa firme decisão, lembrei ter esquecido todos os meus livros no quarto do hotel extinto.


                              Montes Claros/MG, 20 de janeiro de 2013

Rio

O enigmático decurso do rio não me absolverá.
Não me absolverá do grave pecado de não ter sido feliz
naqueles momentos puros e simples de
praça, sorvete, sorrisos e livros.

O enigmático e imbatível decurso do rio não tentará compreender
porque deixei de viver inteiramente esses momentos, para
dias depois, finalmente vivê-los num quarto trancado
sozinho e a lápis.

Eu poderia explicar ao rio o verdadeiro motivo:
que assim faço para eternizar tal instante.
Que assim faço porque
um momento só se torna eterno quando não é vivido.

Mas o rio não pararia para me escutar.
Tem pressa.

E além disso, nada devo ao decurso do rio.


                              Montes Claros/MG, 23 de janeiro de 2013

Esgotado, esgotado

Acordei, bati uma punheta triste e gozei na cara da solidão.
Depois fiquei simplesmente deitado. Imóvel. Mais um dia pra enfrentar… é isso.
A porra fica rala e me escorre pelo braço; não me abalo. Permaneço ali, estático. É terrível quando já acordo assim, de uma certa forma amarrado à cama. Sem força, ânimo ou motivo.
Ninguém disse que seria fácil. E eu ainda tentando do jeito mais complicado. Pura ilusão. Sim, moro sozinho e pago meu próprio aluguel aos 21 anos. Grande merda. Se não consigo resolver isso aqui dentro, ainda não conquistei nada. “Ou quase nada.” Pego um pedaço de papel e anoto uma frase que me ocorreu. “Acordar é o pior dos pesadelos.”

É quase engraçado. Você vê que tá mesmo no fundo quando o suicídio parece a única opção positiva. Mas falta coragem. E disfarço a falta de coragem com uma suposta esperança na vida. Mas os ditos bons momentos são apenas… aceitáveis. Não maravilhosos. Viver realmente não vale a pena. A onda vital avança metros abaixo da linha zero. Sua amplitude é enorme mas emerge dessa linha apenas uns centímetros – ignorando qualquer lei da física –, como um anfíbio que coloca os olhinhos e o nariz pra fora da água.
Bem, eu poderia apenas não pensar, mas é impossível. “Preciso me mexer”. Levanto num pulo, cumpro meu papelzinho de ser humano (me visto, mijo, fecho uma porta, lavo a mão, tão comportado, tão inofensivo, calço a porra do tênis) e saio de casa sem ter ideia do que posso fazer.
Tranco a porta e ganho a rua. 
Não. Ganho não é a palavra certa. Simplesmente ando por aquela porra. Faço um esforço e me lembro: é domingo. Embora domingo seja um dia tão absolutamente característico. Os sons, a luz do sol, as ruas, a disposição das coisas – tudo isso é característico num dia de domingo. Não preciso mexer muito na memória. Menos ainda pra lembrar: não tenho um centavo. Meu pagamento cai em duas semanas. Até lá tenho um pouco de farinha de milho, acho que meia lata de óleo, talvez até um pouco de arroz, mas não tenho gás pra cozinhar. Nessas situações, a pior opção é se enfurnar em casa. Nos faz confrontar nossos demônios; nossa casa é como um enorme espelho: tudo ali são pedaços de nós. Provas do nosso caráter, da nossa incompetência. O melhor remédio pra esse estado de negro espírito é observar e absorver a grama do vizinho, que é sempre mais verde. Sim, isso quando você tem coragem pra sair de casa. Confesso que me sinto aliviado quando ainda guardo essa faísca no bolso.
Vago devagar, divagando, enquanto tento enxergar o maior número de casas, banhadas pelo sol dominical, tranquilas, tão receptivas. Sei que se morasse em qualquer uma delas teria ali meu inferno, mas evito esse pensamento. Forjo a plenitude. Chego na avenida de baixo e sigo até minha zona de conforto. Começo a sentir fome. Acabo de lembrar que ainda tenho um ticket promocional de café da manhã. Tenho quase certeza de que tá no bolso dessa calça. Vasculho e, sim, encontro. Quem diria! É verdade que esse ticket só dá direito a um patético pão na chapa e um copo de café, mas pra quem achava que passaria o dia em jejum…
Posso já prever o gosto. Primeiro uma mordida no pão, mastigo um pouco e dou um gole no café. O pão vai ficar bem macio dentro da minha boca e com um gostinho doce. Incrível! Praticamente me esqueço que estou na areia movediça. Passo pela porta sentindo aquele cheiro característico de óleo sujo e me dirijo ao caixa, vazio. Parece que minha sorte começa a mudar.

Oi, apresento meu ticket, queria o café da manhã da promoção.
Senhor, não tem mais o café da manhã.
Ué, por quê?
O café é só até as 11h, senhor.
E que horas são?
São 11:05h, senhor.
Por causa de cinco minutos você não vai me servir o café da manhã?
Desculpa, senhor, já foi tudo recolhido, algo mais em que posso ajudar?
Não.

Saio dali. Continuo andando. Totalmente vazio. “Se pelo menos eu tivesse meu bilhete de ônibus e metrô…” Essa região é horrível pra caminhar. Rodeada de grandes avenidas, marginais, pistas automotivas. É uma área bem desumana. Além do quê, quanto mais desgaste, mais fome.
Que situação, economizando energia como um urso polar no inverno mais rigoroso. Pelo menos se estivesse frio… mas não. Um calor desgraçado e eu cheio de casaco. “Como poderia adivinhar? Na minha casa o frio era forte.” Então faço o que, no fundo, sabia que faria: sento num ponto de ônibus. A melhor opção pra quando se está assim, vazio, sem perspectiva ou sorte. Você não fica em evidência, suspeito, marginal; pode descansar, fingindo que espera o ônibus e ainda passa por cidadão comum. Ótimo lugar pra se sentar e ficar só observando, e eu acabo de observar uma loira deliciosa do outro lado da rua. Também num ponto de ônibus. "Será que ela sabe o quanto é gostosa?" Provavelmente. Mas não sabe que nesse momento tem um pau endurecendo por sua causa. Cruzo a perna, bem fechado, como mulher, e fico balançando a perna pra estimular o pau. Fica realmente obsceno. Cubro com os braços, sigo mexendo a perna. A loira tá de pé, de costas pra cá, conversando com duas mulheres que sentem inveja dela, dando passinhos daqui pra lá, de lá pra cá, se abaixando pra rir, se curvando pra ver se o ônibus se aproxima. Veste uma calça preta, dessas de ginástica, e a essa distancia a calça parece meio transparente, ainda mais pela ajuda do sol forte. Percebo que não sou discreto. Nem um pouco, aliás. Pareço um obcecado. Um voyeur. Mas de repente sua bunda me parece meio patética; a sombra formada pela calcinha e o próprio formato da bunda desenham uma espécie de âncora ali. A calcinha é o corpo da âncora e a borda da bunda mais o espaço entre as pernas formam a parte de baixo da âncora. Pode ser um sorriso também. Fico variando. Meu pau amolece aos poucos; daquela bunda sai merda. Merda. MERDA. Cocô. Fezes, peido, cheiro de cu, suor, pêlos. É só uma parte do corpo humano. Todo mundo tem isso, até eu tenho. Você tem, sua mãe tem, Nelson Mandela tem!
Preferia quando a bunda era um refúgio e tento esquecer tudo isso e a âncora, mas não consigo. A bunda continua patética e ela acena pro ônibus que para, encobre sua imagem e segue. Busco outras distrações. Caço outras pessoas por ali, olho pro meu lado esquerdo e noto um casal dividindo uma bicicleta, mas o curioso é que a garota é quem pedala e guia, o imbecil vem sentado atrás, naquele apoio que algumas bicicletas têm. A coitada parece fazer muita força, tá sem equilíbrio, tadinha! Como um cara desses tem coragem de mostrar a cara em público? Quando estão já bem próximos dou uma encarada severa entre as pernas dela. Pra buceta mesmo. Está de saia. Longa, é verdade, daquelas meio hippies (a moda hippie voltou), mas é suficiente pra fazer meu queixo tremer. O cara percebe que eu olhei, nubla a expressão e me encara. Retribuo com frieza no olhar. Eles passam por mim e o garoto vira pra trás – como um homem que se vira pra olhar a bunda da mulher que passa ao seu lado na rua – tentando me intimidar. Já não tenho vontade de olhar pra eles, mas não desgrudo o olhar pra que não pareça que ele venceu. Por fim desiste, posso já olhar pro outro lado.
Meu estômago se manifesta. Ronca alto. Meu humor despenca. O sol parece ainda mais quente e claro. Quase desértico. Avisto dois garotos aparentemente retardados que se aproximam com uma bandeja de frango assado. Cada um carrega uma. Cristo, por quê? Eu pensava ser o escolhido, o novo messias, e o senhor faz isso comigo? É um teste? VAI TE FODER, ENTÃO! VAI TESTAR O CARALHO! Esses dois imbecis merecem devorar um suculento frango assado nessa manhã patética de domingo E EU NÃO?! Estão a menos de cinco metros de mim. Cinco metros agora, cinco minutos lá atrás. Sempre quase. Cobiço as bandejas de frango, invejo suas sortes, tudo parece muito silencioso enquanto devoro o frango com os olhos, os carros passando na avenida não emitem som, as bocas estúpidas das pessoas se movem mudas, até o sorriso satisfeito e maldito desses dois comedores de frango sai silencioso, mas não depois que passam por mim e um deles joga NO LIXO um pedaço enorme de frango e logo depois, quando passam pelo portão da concessionária, o outro arremessa um pedaço pros cachorros. Não pode ser verdade. Não é possível. Fico indignado com essa situação e faço o que nunca pensei que pudesse fazer. Me levanto e vou até o lixo. Hesito. Olho pros dois lados; muita gente me conhece por aqui. Moro aqui e trabalho aqui. Ficaria feio se me flagrassem enfiando o braço no lixo atrás de comida. Mas aparentemente nenhum conhecido por perto. Procuro o pedaço de frango no lixo e fico de certa forma aliviado quando percebo que é apenas carcaça. Osso. Sem carne. É o tórax do bicho.
Sentar novamente no ponto de ônibus me parece uma ideia absurda. Fujo dali envergonhado e faminto. Caio na marginal.
Opto por um caminho inédito. Passo por distintos prédios residenciais, cobertos por cercas e muros e portões. Ironicamente, passo pela porta de um restaurante que começa agora a servir o almoço. Devo aparentar a fome que sinto porque o segurança do restaurante me encara, me bloqueia o sonho de um delicioso e fumegante prato. Sinto uma contração no estômago, fico tonto, muito calor, muito claro, muitos  carros transitando. Tão potentes, velozes, sem fome. Não notam a minha existência, são superiores. Entro numa região desconhecida com grama, árvores, ladeiras, carros, carros, carros caros, casas caras. Finjo que é tudo um delírio e quase acredito nisso porque a claridade excessiva, o calor excessivo, a exaustão e a fome me turvam a visão e também a compreensão e interpretação do mundo todo. Viro à esquerda, atravesso a rua, desço uma ladeira e chego a outra avenida, então reconheço o território. “Se eu seguir essa avenida vou dar na ponte. Se continuar firme, chego na Paulista.” Sigo. Passo por uma pracinha agradabilíssima e decido me sentar, parece o Éden, mas por algum motivo não paro, sigo em frente, triste, e quase sou atropelado. O cara enfia a mão na buzina, mesmo já tendo passado por mim. Isso me deixa profundamente irritado e mostro a porra do dedo do meio tremendo de ódio. Sigo. Tenho que decidir logo se subo ou não a ponte. Subo. Passo aqui a pé pela primeira vez. Até então, só de ônibus. O corredor reservado ao pedestre é aconchegante. Separado da pista por um muro de concreto com aproximadamente um metro de altura. Finalmente paro. Encosto na grade de proteção, de costas pros carros que passam me olhando, sinto. Abaixo de mim passa um rio. Ao lado, uma ciclovia, paralela aos trilhos de trem da estação. É domingo. Eles têm permissão pra pedalar. Quer dizer, a ciclovia é aberta todos os dias, mas domingo é o dia que lhes é reservado a se dar esse prazer, afinal são pessoas maduras, sérias. Durante a semana é trabalho. Onde já se viu… Andar de bicicleta durante a semana! Ninguém aqui é vagabundo! Mas hoje é domingo. Hoje pode. E daqui posso olhar sem pudor pro meio das pernas das ciclistas. “Nossa, sou uma criança pervertida” e um cara passa por ali me olhando, curioso e preocupado: Nossa, será que ele vai se jogar? Caramba! Que doidão, parado ali no meio da ponte! Aí percebo uma fila de lixo correndo devagar pelo rio. É curioso, o lixo parece muito organizado, correndo ali no espacinho que lhe é permitido, como os ciclistas pedalando dentro dos limites da ciclovia, os carros transitando entre as faixas e muros de proteção, os trens que transportam passageiros ininterruptamente pelos trilhos. Tudo em movimento. Seguindo o fluxo. Dentro dos limites estabelecidos. Eu parado ali pareço errado, quase obsceno, vulgar, perigoso. Sou como um câncer, um abscesso, algo que deve ser olhado e examinado com curiosidade e grande atenção. Posso ser um suicida, posso ser um bandido, um vagabundo. No entanto, só estou parado, quietinho, sentindo certo prazer depois de muito tempo de espera. Recebo do sol – totalmente desimpedido por nuvens – sensação idêntica à da infância, na praia de Santos. O chiado do mar (aqui é rio), o burburinho dos banhistas e bolinhas de frescobol (aqui é trânsito), o excesso de luz e calor que é idêntico em ambas situações. Viro e olho um pouco pros carros que passam ali na ponte; pareço estar na estrada outra vez. Vejo os motoristas pelo mesmo ângulo que via quando praticamente implorava por carona no sul do país, e a indiferença com que me tratam agora é exatamente igual. Me vêem aqui, mas tentam evitar que eu perceba, afinal, posso ser uma ameaça. Seguem suas vidas, eu sigo a minha.
Sigo.


terça-feira, 9 de julho de 2013

sábado, 25 de maio de 2013

Naufrágio

Metíamos num colchão no chão. Sem amor. Metíamos como quem castiga ou pratica exercício e eu só pensava em encerrar. Ambos fingíamos. 
Gozei.
Encenei algum afeto — emprestei amor aos meus olhos — e virei para o lado, na busca de algum tecido que limpasse a cena; dei de cara com seu absorvente sujo e ainda úmido. Não consegui desviar. Encarei aquilo por alguns segundos e o que me incomodou, afinal, não foi o sangue, mas o aspecto daquela fraldinha ridícula, tão humana, tão comportada, tão indefesa e patética. Covarde, com suas abas que nunca prendem direito, embora grandes demais.

— Ai, não olha! — ela disse, movendo-se bruscamente como quem se assusta.
— Não olha o quê? — dissimulei. — Só tava procurando alguma coisa pra te limpar! 

"Só tava procurando alguma coisa pra te limpar", repeti no pensamento. "Parece que eu falo com uma criança". 
Nisso, olhei de volta em seus olhos mas não consegui fixar. Fui repentinamente tomado por aquela tristeza que você, leitor, conhece tão bem — naufrágio num peito seco.
Finalmente ela se levantou, catou sua roupa e foi ao banheiro, contíguo ao quarto.
Deitado, vazio e mirando vagamente o teto, fingi não ouvir seu grito que dizia "Quer vir tomar banho comigo?".

Então fechei os olhos e vi um mosaico nascer.


sexta-feira, 24 de maio de 2013

Inventário


Olhos que já quase não enxergam
Dedos que não se movem mais
Um joelho operado; o outro, por pouco.
Sequelas dos anos que já...

A saudade da primeira sapatilha tal como deveria ser
Fotografias em que surgem estranhos tão próximos
Almoços ainda não digeridos,
Encontros efêmeros cogitados na correria de uma esquina 
sequer atravessaram a rua.

Algumas cartas: já não é certo se fictícias ou não costumava brincar de ser Elisa.
Velórios
Reencontros tardios
E a certeza de um reencontro que jamais...

Tantas tralhas.
Carteiras, medalhas inúteis, enxovais, conchas, terços, ingressos de cinema,
lembranças de momentos puros que teimam em permanecer vivos
ou abscessos de momentos rasos que fingem ter existido.

O futuro passou.

E o presente segue firme,
Implorando ao passado os cadernos repletos de rascunhos
Esboços de uma vida atrofiada,
O saldo de uma vida inteira.


Um casal dócil



Eu já tive 16 anos.
Eu também já amei assim.
Dócil. De brincar como filhote mamífero.
Mas acaba. E não ouso avisá-los.
Observo, invejoso.

Ah, esse amor puro
de fresco hálito!
De pensamentos que não se perdem
com transliteração, por compartilharem idioma:
o mais sublime de todos.

Esse amor de alugar qualquer filme
à tarde, comédia, terror,
importa?

Quem vai dar o primeiro tiro,
não sei.
Ele, traição
Ela, desinteresse…

É penoso não conseguir
apenas admirar esse amor de namorados
sem ressalvas, sem alertas.
Mas já inevitável.
Eu não tenho mais 16 anos.
Já não consigo amar assim:
macio, liso, puro.

Guardo em mim
pouco de mim.
E tento salvar o que restou.

Dúvida, frigidez, ressalva...
Sexo: carne fria massacrando carne fria.
Sem vontade, encanto,
amor assim.

“Que na verdade ainda não é amor”,
é o que afirmamos,
numa tentativa vã de driblar nossa incapacidade
de amar plenamente.

Será o amor um dom reservado aos jovens?
Os jovens, que pouco sabem
e muito pensam que sabem.

Sabem amar apenas.
(Apenas?)
Esse amor cansado de adjetivos
que observo, capto, invejoso.


Mosaico

     "Devo ir ou não?" ela me dizia, referindo-se à faculdade. Respondi vagamente, contraindo a parte inferior da boca e erguendo os ombros "Cê que sabe... vai ter algo importante?", não tendo ainda percebido que ela gostaria de me ouvir falar "Não vai. Fica aqui comigo."
     Ela indo ou não, ainda tínhamos tempo. Eram quatro da tarde e fazia muito sol. Estávamos no seu quarto, esparramados sobre dois colchões no chão que se separavam facilmente, fazendo com que nossos corpos quentes tocassem o piso frio. Nos conhecíamos há três horas.
     "Sabe", eu disse, "eu me sinto bem. Sei que isso pode parecer banal, mas passei por momentos realmente terríveis recentemente. Sinto como se a vida finalmente tivesse me recompensando pelos testes sádicos". Ela sorriu e pareceu não ter entendido. Levantou as sobrancelhas, como de costume, e afundou sua cabecinha entre os ombros, como um brinquedinho de armar, e bastasse um toque para que sua cabeça pulasse. Peguei-a pela cintura e rolamos para a direita até que eu ficasse em cima dela, dominante.
     Me olhou, impassível. Novamente ergueu as sobrancelhas e não pareceu se importar com a condição de recessiva. Trajava um riso meio sarcástico, que mais suscita do que revela. Meus braços tremeram um pouco por apoiarem totalmente o peso do corpo. Lentamente, me deitei ao lado dela, de lado, o cotovelo esquerdo dobrado e o braço arqueado, sustentando-me a cabeça que estava leve. Com a mão direita acariciei seu umbigo, levantei sua blusa aos poucos  atalho que havia descoberto recentemente  e olhei dentro dos seus olhos. Ela desviou o olhar, tímida. "O jeito que você encara é muito estranho. Parece que você olha dentro da gente, roubando alguma coisa!".
     Já não era a primeira vez que eu ouvia isso. Aliás, ouvia isso com frequência.
     "Ai, Deus, vou ou não vou pra faculdade?", "Não vai. Pronto. Fica aqui comigo hoje!", então pareceu aliviada e disse, como já tivesse arquitetado há tempos "Tudo bem. Hoje eu fico aqui, aí amanhã eu saio mais cedo de casa e resolvo o que eu tenho que resolver, depois vou direto pra aula".
     Assenti silenciosamente, percebendo que ela já havia estabelecido que não iria à aula, esperando apenas o meu aval, dividindo a culpa da negligência.
     Silêncio. O ventilador nos soprava, brando. Fazia calor, um calor envolvente, tenro, com pequenas sugestões de ardor. Eu olhava para o céu através da janela entreaberta. Uma única nuvem de muito contraste e contornos ilustrava o centro da imagem. Era pequena. Muito acima, separadas pelo azul leve, um emaranhado de nuvens disformes, quase dissolvidas, que formavam então uma visão onírica; um tipo de passagem para algum lugar, coroando a imagem da pequena nuvem obstinada.
     "Você já reparou nessa janela?" ela perguntou, me cortando o pensamento. "Olha esse desenho que ela formou".
     A janela era revestida por um tipo de adesivo azul escuro, de certa forma translúcido, repleto de riscas. Riscas largas como rios num mapa, riscas estreitas como suas afluentes. O conjunto de riscas formava um mosaico medieval, como a estampa de um brasão ou o fundo de uma bandeira nobre. Muito bem pensado e trabalhado. "Foi o sol que fez isso com o adesivo. Não sei como, mas foi o sol. Esse adesivo era inteiro preto quando eu coloquei".
     Era difícil de acreditar, no entanto, ela falava a verdade. Falava num tom de inocência, como alguém que realmente não compreende algo mas não questiona, apenas admira. Eu me sentia bem. Constatei que a lembrança daquela tarde, com aquela garota recém-conhecida, naquele quarto arejado e claro, sobre os colchões no chão, em frente ao ventilador, logo depois de ímpares momentos a dois e observando o mosaico natural... constatei que aquela tarde me fixaria a memória eternamente.
     Pensei em lhe dizer isso, mas preferi apenas me deitar sobre ela e dizer o quão bonito era o seu sorriso.

a morte do amigo

era uma pessoa incomum o meu amigo.
se não choro sua morte – ainda – é porque sei que ele não choraria se a soubesse.
e sei também que ela veio a seu convite.

preciso ser breve.
sei que em instantes vou compreender sua morte. e desabarei.
então chorarei ininterruptamente.
chorarei por saber o que só eu poderia saber. chorarei porque fui sua última testemunha. chorarei porque vi seus olhos imprudentes e destrutivos
naquela noite.
chorarei por ter recebido a notícia cinco dias depois de consumada a sua morte.
chorarei porque era ele, e meu choro tem permissão para ir e vir.
chorarei lembrando do que só eu poderia lembrar.
nossas aventuras imaturas desbravando o país; chorarei nossos momentos de caos e ordem.
até os debates insuportáveis terão mais harmonia em meu pensamento triste.
chorarei por ter adivinhado sua morte, sendo o telefonema apenas a confirmação.
chorarei pensando que poderia ter impedido.
(sei que não poderia.)
e seria injusto porque era a sua vontade.
e sempre dói pra quem fica.
ainda dói sem lágrimas e sei que essa dor ainda não é dor.

poderia ter sido daquela outra vez, poderia ter sido na praia, poderia ter sido naquela casa absurda, naquela vila de pescadores,
do alto daquela cachoeira – aqui teria sido eu –, poderia ter sido soterrado, por tiros no meio do mato, overdose, suicídio… até que demorou.
nós a procurávamos juntos. incessantemente.
a morte.
ele a encontrou. e talvez volte para me dizer “olha, desencana, é a mesma merda, só que morto” e eu diga “ah, tudo bem, então vou ver se encontro algo pra fazer por aqui, forte abraço”.

respiro.
impeço que os olhos façam seu trabalho.
está quase na hora.
sua morte merecia o melhor dos poemas, mas a vida também não anda fácil.
bloqueio os olhos mais uma vez.
mas é inútil. as lágrimas virão. aliás, já estão aqui,
à espera do ponto final.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

A mulher mineira

Existe qualquer coisa de fantástico na mulher mineira.
Talvez o rostinho de formiga submissa
ou a apodítica ingenuidade.
Pernas fortes de subir ladeira,
o sotaquinho tão gracioso, ou esse próprio inho.

Existem também as desabrochadas —
tão minhas em minhas memórias.
Carregam essas no olhar algo inalcançável à mulher paulista.
Um tipo de riso sarcástico quase secreto por se saber acima.
Um desleixo espontâneo.

E então as jovens?
Exalam vida como orvalho!

É impossível caminhar por ruas mineiras e não amar.
Quase todas e cada uma delas.
Além disso, existe um certo traço grosseiro de inteiras palavras,
comum às mulheres de interior.
No entanto, têm classe.

Modigliani seria incapaz de pintar a mulher mineira.
(Eu garanto.)
Assim como creio ter sido incapaz de descrever o que essas amostras de Madalena
provocam em mim.

Montes Claros/MG, fevereiro de 2013                                                                         

maioridade

uma menina assustada
cheia de tiques, temores e traumas,
cheia de certezas e páginas cheias de certeza protetora.

uma menina sabida
que vai ao banco e se tranca,
que tem pudores, medo, fotografias na janela, tiques, traumas,
meias-páginas de incertezas e máximas.

uma menina 
flexível, pequena, pequeníssima!
assustada e retraída
com lentes que não vêem o mundo à volta,
o mundo à frente, o mundo que a justifica.

uma menina com lentes
que enxerga, que enxergam, 

que enxergarão páginas cheias de páginas,
mas, por pudores, evitarão as páginas

cheias de verdade.

sábado, 2 de março de 2013

Ciclo morto


Quis morrer no parto
Para encerrar um velho ciclo.
Sobreviveu.

Amaldiçoou a sorte,
Perdoou a filha
Última de um velho ciclo.

Por doze anos ainda viveu submersa em si
E compreendeu:
Amar é querer ser absorvido inteiramente.


sexta-feira, 1 de março de 2013

Néia

Venho pensando em Néia.
(Néia é gentil apelido; seu nome é Geneilza.)
Mas Néia é apelido. Seu nome ela não revela.
Eu respeito. É nome que pesa em seus 32 anos
e rosto de anjo labutador, engrossado pelo sol nordestino e suas mazelas.
Néia é mulher.
Se fosse ovelha, seria negra.
Se fosse velha, morreria em mim.
(Estou rondando certo lirismo por não saber como dizer que Geneilza ejacula
e que seu gozo me inundou o sono essa noite.)

Mas Néia vive.
Por sua fibra de baiana maltratada e sonho incubado.
Por sua fibra de mãe solteira e ex-marido obsessivo.
Néia me levou além das outras.
(Leia-se: Néia trepava melhor que todas.)
Seu rubor me aqueceu uns dias de fome;
Seu néctar (seu gozo) me adoçou umas noites de insônia,
quando as noites se mostravam duras demais.

Mas nosso último encontro foi frígido —
justamente por isso foi o último —
e Néia fugiu furtiva, pra nunca mais me extasiar.
(Leia-se: e Néia fugiu furtiva, pra nunca mais me extasiar.)


                              Montes Claros/MG, 19 de janeiro de 2013


Poema escrito enquanto eu olhava para baixo


Terá o abstêmio alcançado a plenitude
      Precocemente?

Amigo, posso lhe dizer
Que tenho 3 paixões:
a música
o cinema
a literatura

              E ainda me sobra tempo para pensar em suicídio!
 Então o sujeito sóbrio chega e me diz que a vida é curta demais!

Assumo minha inveja.
Eu gostaria de ser um abstêmio. Traçar o escopo de uma vida,
Seguir o cronograma
                Disciplinado
                                 Lúcido
                                              São
Sério.

Mas o que posso fazer? Nasci apaixonado.
                Triplamente apaixonado –
Se minha essência não é monogâmica, como posso prometer isso às mulheres?

                O abstêmio nunca será um apaixonado.

Por isso se ocupa em manchar a imagem do boêmio –
                         Como se o boêmio já não denegrisse suficientemente a própria imagem!

Ora, abstêmio
Nosso único acordo é: nossas condições rimam entre si!
Fora isso, ocupe-se em me vigiar
                                               Que eu me ocupo de buscar o equilíbrio entre

   Arte                                                   e                                                    tédio

                                                                                               .

o desamor


é quando a barriga esquenta
e as pálpebras já não vibram mais.

quando o esforço se faz evidente
ou é apenas esforço.
é quando viramos xerox de nós mesmos
ou quando não existe mais o esforço.

não é a ausência do sexo, mas o sexo por costume ou cordialidade
e não é necessariamente a presença da mentira
mas a verdade dura dita desnecessariamente.

o problema não é quando as máscaras caem, mas quando começam a surgir.

é quando outros idiomas passam a camuflar as palavras,
todas as suas frequências se anulam
e seu orgulho míngua.

o desamor se dá quando olhamos para o outro e enxergamos um ser individual, 
não mais uma extensão de nós mesmos.


o diálogo entre nossas mãos

minha mão. sua.
aproximação fugaz e inevitável.

minha mão: sua.
a ti me entrego, nua e inesgotável
e te cravo as unhas.

minha mão sua.

Você



Você
que já me viu seduzir a noite
e beber sangue de vagina desvirginada,
ou você que acreditou nisso…
você não é capaz de me imaginar sob o chuveiro
encolhido
abraçando meu próprio corpo
com as luzes apagadas.

Isso você não pondera.
Você me apunhala porque não percebe que
também sou carne e sangue.

Você que me viu com tantas mulheres
e acredita que meu coração é um pênis
não pensa que
se ando sumido
é porque talvez não tenha mais forças
(meu suicídio afetaria sua vida apenas duas semanas depois de consumado).

Você
que pensa
que sou um garanhão,
um homem sem piedade ou alma
se engana.

(A culpa foi minha?)

Você torna a me apunhalar, cuspir,
você pinta minha caricatura com guache
e expõe ao público –
não me manda o convite da exposição.
Sua obra-prima me passa desapercebida.

Você não vê meu reflexo no espelho clamar calado por socorro.
Na verdade você já não costuma pensar em mim.

Por isso estou sozinho.
Por isso eu fugi.


O sangue virgem secou, amigo.
Agora só recebo carne usada
e mal sei usá-la.
Esqueci o sentido do corte,
cansei de armazená-la.


Vai, purifica sua lembrança sobre mim.
Tira o punhal da minha garganta.
Esquece aquele sangue virgem.
Eu não sou assim.
Ouve meu choro abafado.
Me dá um abraço.
Me perdoa.