segunda-feira, 26 de maio de 2014
A cidade como um ser
Retorno como turista à cidade que conquistei
e me divido entre ela e você.
Busco recuperar entre-prédios sensações antigas que me façam ficar
mas — sem desejo — te encontro na antítese de todas essas mulheres.
Aqui, à tua ausência física,
percebo que em mim você é também uma cidade.
(Cidade como um ser que pulsa.)
E as ruas se bifurcam, me secam as palavras.
Confundem-se as cidades,
no entanto não se fundem.
Avenidas e anúncios sobrepostos em postes nos distanciam.
Impostos contabilizados em via pública não me valem nada.
Bibliotecas surdas não me informam.
Negligencio trêmulo o semáforo pensando em nós,
esfrego os olhos para que você suma da pálpebra e flagro nos dedos a aliança que nos iniciou
nessa cidade onde agora você está,
e é.
Eu fugi,
fraco.
(Profetas embriagados em praças imundas preconizam ou ignoram meu dilema
tão carnal e urbano.)
Percorri quilômetros até aqui e parece que também aqui você sempre esteve.
Esbarro em dores herdadas do seu passado;
carrego prédios no pulmão, torres no tórax, fantasmas no estômago sôfrego.
Carrego sua sombra, seu peso no trapézio.
Aqui, à distância, te venero e desejo ainda mais — bairrista.
Não ouso parar de andar.
Me norteio no sol das cinco e, com olhos quentes secos
fatigados, te almejo outra vez,
obcecado.
O deus que tanto renegas parece agora me testar.
Sádico, me mete em labirintos de concreto fedendo a mijo onde ando em círculo, a esmo.
Gasto sola, sinto sede, tremo inteiro e cedo.
Decido voltar.
Porque essa cidade — impassível — é longa e eterna; esperará.
Já você — meu norte, minha nova cidade —, pereceria sem meus impostos,
e isso não posso permitir.
Vago vermelho ainda oscilante como sombra de vela por ruas escurecidas — o Sol já cansado.
Atravesso o viaduto, encontro rumo.
E no dilema entre essas cidades,
te elejo meu lar.
domingo, 25 de maio de 2014
Encontrinho (Micro-conto tragicômico)
Entediado, sentei num ponto de ônibus e fingi esperar. Notei um
homem sentado no extremo oposto do ponto, mas não olhei diretamente. Uma
terceira pessoa estava ali; senhora oriental sem bunda, trajando calça de
helanca. Logo esticou o bracinho curto e seguiu seu rumo.
Minutos correram, pessoas chegavam e iam. Apressadas, distraídas,
cansadas, produzidas, corretas, com ou sem mochila nas costas... Mas o homem do
início da história seguia ali, podia vê-lo pela visão periférica. Fingi então
acompanhar um carro que cruzava a avenida à nossa frente, pretexto para olhar
na direção do meu companheiro misterioso.
Dei uma encarada rápida e logo desviei o olhar. Acho que não
notou. Era um homem esguio, a pele meio escura e, assim como eu, de aspecto
maltrapilho.
Olhei de novo, dessa vez sem pudor, e nossos olhos se cruzaram.
Quebrei o silêncio.
— Tá esperando há muito tempo? — perguntei,
tentando segurar o riso.
— Há muito tempo — respondeu,
tentando segurar o riso.
— Ah, sim, e tá esperando qual
ônibus? — perguntei, quase gargalhando.
— To esperando o… Pinheiros! — ele
disse, quase gargalhando.
— O mesmo Pinheiros que já
passou umas cinco vezes? — eu já não segurava a
risada.
— Esse mesmo! — disse
meu mais novo amigo, gargalhando.
— Prazer, Ulisses — menti.
— Prazer, Gustavo — mentiu.
A despeito disso, nosso aperto de mãos foi firme e sincero, mas
logo em seguida surgiu um breve constrangimento mútuo. Tornei a olhar para o
nada, meu amigo certamente olhava para o lado oposto.
— É foda… — tentei
consertar o triste mas inevitável clima fúnebre.
— É… — disse
ele, percebendo.
— Tá fugindo do quê? — perguntei,
mas soou falso.
— Oi?
Meu amigo pareceu realmente não entender o sentido da pergunta, e
seu sincero espanto ao dizer “Oi?” me deixou ainda mais
desconcertado.
— Ah, você sabe, nós dois aqui,
sentados, sem perspectivas, esperando o fim do dia, fingindo esperar o ônibus,
vendo o tempo passar… — acrescentei, como se a
situação ainda pudesse piorar.
— Não, cara, eu não sei do que
você tá falando, não... — terminou a frase já de
pé, tentando enxergar o ônibus que se aproximava.
Eu, não exatamente querendo criar um laço fraterno, apenas
tentando dissolver tal teatro tragicômico, levantei também e, sem perceber, me
aproximei muito do meu amigo, tão assustado.
— Relaxa, cara, eu não sou
desses que ficam caçando assunto na rua, pode acreditar, só quero esclarecer
esse mal entendido.
Estávamos realmente muito próximos.
Dando alguns passos para trás, quase caindo da calçada, meu amigo
tentou se esquivar:
— Tá bom, cara, sem problemas,
mas eu vou indo agora, meu ônibus chegou. — E estendeu
seu comprido braço para o ônibus Jardim Miriam.
Nunca mais vi esse homem.
Tanto ainda
Ainda há tanto a ser dito!
Tanto ainda a ser explorado,
compreendido;
tantos primeiros cheiros ainda secretos,
nuances sem descrição
ou tela;
tantas esquinas do acaso a dobrar!
No entanto,
me flagro cheirando a boca do gato para entender que estou vivo,
enquanto
meus cem olhos opacos assistem à lenta-mas-implacável decomposição do corpo, fadado ao fracasso
como tudo,
aliás, até mesmo aquilo que jamais conhecerei.
janeiro, 2014
biografia não-autorizada de um herói nacional
nasci
senti tédio durante a maior parte da vida
enfrentei algumas dificuldades
escrevi algumas mentiras em meio a isso
e fui considerado um gênio intocável.
adoeci
morri velho e sozinho,
então me tornei herói nacional.
senti tédio durante a maior parte da vida
enfrentei algumas dificuldades
escrevi algumas mentiras em meio a isso
e fui considerado um gênio intocável.
adoeci
morri velho e sozinho,
então me tornei herói nacional.
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