quinta-feira, 18 de junho de 2020

Silêncio — (Romance)




O texto foi todo escrito sob esse disco. Sugiro como trilha sonora.




Primeira parte






I





     Eu odeio sonhar, ela dizia.
O som altíssimo de alguma TV invade o quarto e a madrugada. 
Certamente um solitário, ele conclui. Alguém numa cama de casal, o travesseiro sobre a cabeça, proteção contra a luz da TV, ligada apenas para fazer companhia.

     Como assim odeia sonhar?
     Odeio sonhar. Sempre acordo mal.

Ele liga a TV. Sem som. O colchão de casal no chão, sem lençol. Os travesseiros esparramados pelo quarto. 
Quem entrasse agora até poderia pensar que o sexo foi incrível. 
Mas não foi. 
Nunca é.

     No que você tá pensando?
     Em nada...
     Como “nada”? Isso é impossível.  ela insiste.
     Nada importante, eu quis dizer.
     Mas fala.
     Você tá parecendo a minha terapeuta. Já disse que nada importante.
     Mas fala.
     Tô pensando na porra dessa televisão do vizinho, que passa as madrugadas nesse volume absurdo. Ele com certeza nem tá vendo. 
     Como você sabe?
     Ninguém assiste TV com o volume tão alto. Ainda mais de madrugada. Ele nem deve perceber que tá alto o volume. Ou seja, tá em outra. Provavelmente dormindo, sedado.
     Você tem essa mania de ficar imaginando uma vida pras pessoas. Você nunca vai saber exatamente o que outra pessoa passa.
     Aí é que você se engana. O que uma pessoa passa, todas passam. E se eu digo que ele tá usando a televisão como companhia, é porque eu já fiz isso.
     Exato, você acha que seu vizinho tá fazendo isso porque você já fez isso. Você não tem como ter certeza.
      Ok.

É sempre igual. O flerte, o cortejo, o joguinho, o convite despojado prum encontro, o encontro meio frio, o caminho meio frio pra casa, o sexo meio frio, o pós-sexo incompreensível, a esperança de que amanhã vai ser melhor...

     Quer alguma coisa da cozinha? Eu vou pegar água.
     Mas tem água aqui do lado da cama, você trouxe.
     Essa já tá morna. Quero água gelada.
     Eu vou lá com você.
     Não precisa. Fica aí. Quer que eu traga alguma coisa?
     Não.

Hermes voltou ao quarto, ela vasculhava uma de suas prateleiras de livros, indecisa entre um Sartre e um Camus.

     Qual desses você me indica?
     O Muro. Eu gosto do Camus, mas A Queda é insuportável.
     “O muro", "A queda”... Caiu do muro! — e ri da própria piada.
     Hã?
     Ai, nada...

Hermes parado à porta do quarto, hesita. 
Lígia deita-se com os dois livros em mãos. Lê os prólogos, prefácios e opta pel’A Queda.
"Quem é essa mulher na minha cama?"

     Ei, vem cá. Deita comigo.
     Não tô muito afim de deitar. Mas pode ficar de boa aí. Acho que vou tomar um banho.
     Não vai me chamar pra ir junto?
     Ah, eu até pensei nisso, mas... Você tá lendo, não quis interromper.

Lígia fecha A Queda na hora. Surge do chão com um sorriso no rosto.

     A toalha que eu trouxe ainda tá molhada. Você me empresta uma?
     Claro.
     Nossa, agora que eu me liguei. Eu já tô na sua casa há três dias!
     Jura? Caramba, nem tinha percebido...
     Isso foi irônico?
     Não!
     Pareceu.
     Mas não foi...

O banho é frio. Como sempre. 
A água está quente, mas não o suficiente para aproximá-los. 
Fetos numa placenta.

     Você quer que eu vá embora? Pode ser sincero.
     Claro que não, pode ficar.
     Não sei, parece que não tá rolando.
     Fica, por favor.

Lígia abre um sorriso. Resolve passar mais uma noite. 
Hermes tenta mas não consegue. Sentir nada. 
Nada.
Depois de algum tempo  Lígia já adormecida  finalmente percebe:


Sente inveja do vizinho solitário.























II



É Hermes quem acorda primeiro. Livra-se da coberta que foi catar no meio da noite. Se esforça para não fazer barulho. Não quer acordar Lígia.
No caminho pra cozinha, inevitavelmente percebe o topo de sua cabeça semi-calva no espelho. Os gatos vem até ele. Têm fome. Hermes, antes de tudo, enche os potes dos gatos com ração. Depois prepara o café.  O silêncio é descomunal, quase ofensivo. É sábado, não são oito da manhã. Hermes não emite um ruído até que a chaleira ensaie seu apito. Hermes desliga antes, sabe que água de café não se ferve. O dia nasceu meio cinza, um tanto frio. Olha pela janela da cozinha e só enxerga outras janelas. Vê roupas no varal, produtos de limpeza nos parapeitos das janelas, geladeiras, pedaços de móveis... 

     No fundo é tudo igual — pensa. Ou fala?

Passa o café bem forte, talvez numa tentativa de impressionar Lígia, que dorme. Ou finge?

Os gatos comem sem cerimônia. Croc Croc Croc Croc. 
Hermes contempla o espetáculo. "São meus filhos", pensa. 
Sabe que Lígia bebe café com leite e pão com manteiga. Prepara tudo e leva até o quarto. A porta se fechou sozinha. Hermes tem as mãos ocupadas e abre a porta com o cotovelo direito. Lígia dorme (ou finge) na mesma posição. Hermes deposita caneca e prato na mesinha recém-construída por ele mesmo. Ensaia acender a luz, opta por abrir a janela. Filetes de luz inundam o quarto sem cortina. Hermes hesita outra vez. Decide não abrir. Vai até Lígia e lhe dá um beijo no rosto, outro na boca. Sente seu bafo matinal. Ela desperta, como num filme.

     Eu trouxe café. E pão.


Lígia parece não compreender. Seus olhos inchados e impessoais.

Hermes venera a cena. A natureza em sua condição primária.
"Eu te amo", ele deseja dizer. Não consegue.

     Que horas são?

     Umas oito.
     Que cedo...
     É. Perdi o sono.

Lígia tenta acordar aos poucos, não se importa com seu estado físico. Hermes percebe e aprova a atitude.

     Me dá o café.


Hermes deita ao lado de Lígia e a observa tomar seu café da manhã como uma criança.


     Vem morar comigo?

     Oi? 
     Vem morar comigo.

Lígia mastiga e faz um sinal com a mão: "espera".

Aí engole.

     Morar com você?
     É.
     Por quê? Como assim?
     Vem morar comigo. Casa comigo. Tem espaço, a gente se dá bem. Eu te amo.

Lígia arregala os olhos.

     Oi!?
     Vem. Só vem. O resto é detalhe...
     Como você vem me dizer isso uma hora dessas?!
     Desculpa, da próxima vez eu agendo um horário.
     Para de falar assim! Eu odeio quando você é sarcástico.
     Então você me odeia na maior parte do tempo.
     Exatamente.
     Uau. Bom saber...
     Pois é.
     Tivemos nossa primeira briga?
     Talvez.
     Vem... Só vem. O resto é detalhe.



III


     Onde eu deixo a mala?
     Onde você quiser. A casa agora é sua também.
     Para. Eu não quero que comece assim. Vamos estabelecer uma ordem, senão daqui a um mês você tá me expulsando da sua casa.
     Nossa casa.
     Você tem certeza que quer isso?
     Eu preciso de você.
     Precisa? Ou quer?

Silêncio.

     Bom, eu vou deixar lá no quarto desocupado.
     Não. Deixa no nosso quarto.
     ...
     Eu tenho um pouco de saquê. E whisky. Cê quer?
     Quero. Saquê.
     Sério?
     Sério, por quê?
     
Hermes sorrindo prepara um drink com o saquê enquanto Lígia vai acomodar-se no quarto deles.
Gelo, manjericão, melancia velha e saquê.

     VOCÊ GOSTA DE MELANCIA?! — exagera no tom de voz.
     Adoro, por quê? — Lígia reaparece na sala, de pijama e meias. — E não precisa gritar, viu, eu não sou surda.

É noite de terça-feira.
Como sempre, uma criança faz birra em algum apartamento. E a avó grita. E algum vizinho acende incenso. E queima a comida. E tudo se encontra no seu devido lugar. Hermes sorri sem perceber.

     Você prefere Tchaikovsky ou Philip Glass?
     Porra, essa é difícil...
     Não pensa muito. Pra agora. Tchaiko ou Glass?
     Glass.
     OK, posso por as danças?
     Danças?
     É. Não conhece esse álbum dele?
     Não.
     Você vai ouvir. É incrível.

(...)

     Eu te amo.
     Te amo.

(...)

     Mete fundo, vai.
     Você gosta, né, safada.
     Adoro. Acaba comigo, vai.

(...)

     Boa noite.
     Boa noite, meu amor.


IV


     O inferno são os outros. Cortando grama com essa máquina barulhenta. De manhã. E essa ressaca.
 
Lígia, dormindo, concorda.
Hermes enrola o travesseiro na cabeça. Pressiona na região dos ouvidos. Não adianta. O barulho infernal entra fundo em sua cabeça, que lateja.

     Não é possível. Esse cara não tá fazendo isso a essa hora.

Hermes se imagina levantando, abrindo a janela e jogando uma pedra no homem que corta grama.
Alcança o celular, no chão. 08:57

     Falta tato à lei. Não é natural ouvir um barulho desses pela manhã. É violência demais.

A ressaca é aniquiladora. Saquê com whisky. Bela mistura, campeão.
Hermes desiste e levanta. Lígia dorme um sono pesado.
Os gatos vem até Hermes. Um deles, Norberto, para no meio do caminho, empina a bunda e se estica pra frente, as patinhas arranhando o chão.
Hermes alimenta as três boquinhas famintas.
Abre a geladeira rezando pra que tenha água.
Bebe meio litro em velocidade moderada porque sabe bem o que acontece quando alguém desidratado bebe tudo de uma vez. Empirismo.
Faz café mas não toma. Esquenta o leite, adiciona o café, duas colheres de açúcar. Pensa em passar a cabeça do pau, mas desiste. Ri de si mesmo e leva a caneca ao quarto, concentrado para não derrubar.
Em nenhum momento teoriza sobre a ida de Lígia para sua casa.
Norberto surge de repente e se roça na perna de Hermes, que se assusta, grita e derruba café com leite em si e no chão. Norberto se assusta e sai correndo, em dois segundos está na janela, se roçando na tela de proteção.
Hermes deixa o café no quarto e vai até o banheiro se lavar. Aproveita e mija, lava o rosto e a nuca. Por acaso olha para o cesto de lixo. Papel higiênico sujo de merda. Não é dele. Não joga papel de merda no cesto.
Então essa é a merda da Lígia. É bom eu me acostumar.

(...)


     Você não vai acordar?
     Hum... que horas são?
     Quase onze.
     Ah...  Lígia resmunga enquanto tenta abrir os olhos inchadíssimos.
     Dormiu bem?
     Acho que sim.
     Sonhou?
     Acho que não.
     Você nem tomou o café.
     Desculpa...
     Tá de ressaca?
     Hum...?
     
Hermes levanta impaciente.
Finge estar bem. Finge não estar incomodado com a presença daquela mulher ali, indiferente a ele.
Forja uma postura despreocupada, natural. Sabe que nunca obtém sucesso nessas tentativas, no entanto segue no jogo.

     Eu vou dar aula daqui a pouco. Você fica aqui sozinha numa boa?
     Hum-hum...
     Tá. Eu vou tomar banho...
     Tá bom.

Hermes fecha a porta do quarto sem olhar pra trás. Percebe a artificialidade do movimento. A cabeça, leve demais, lateja. Whisky e saquê. Faz calor. Ouve os ruídos do mundo: as crianças no parquinho, um aspirador de pó distante, veículos cruzando a avenida expressa, uma ou outra moto se destaca  o som circulando Hermes.
Um avião cruza o céu ostensivamente azulado. Hermes não vê o avião. Gostaria de estar nele. Fugindo.
Imagina uma enorme e metálica turbina. Absoluta. O calor absurdo que aquilo emana. Sente o vento quente no rosto, o cheiro do combustível. O som ensurdecedor. O sol massacrando. A furadeira do vizinho. A merda da Lígia. Sua cabeça vazia e leve é o anfiteatro perfeito para o show de terríveis ruídos. Hermes liga o chuveiro. Tonto. Gelado. Faz tanto calor que a água gelada sai quente. Hermes quase vomita. Abre o vitrô do banheiro e dá de cara com uma janela aberta, as pernas fartas de uma mulher espalhadas pela cama. Hermes não hesita. Pega o pau mole. Começa a bater uma, a cara metida na janela, sem pudor. A mulher lê algum livro e balança a perna direita, como se quisesse enviar sangue pra buceta. Como se estivesse se excitando aos poucos, sem notar. Hermes não consegue uma ereção. A cabeça vai explodir. Uma dor aguda. Grave. Uma turbina de avião na garganta. 
Vomita no box.

Duas da tarde e Lígia ainda não levantou. Enrola na cama, um braço dobrado sobre a testa, a perna esquerda erguida, balançando lentamente. Às duas e treze levanta. Leva a caneca cheia até a cozinha e despeja na pia. Norberto, o gato, não vai com a cara de Lígia e sai correndo quando ela entra em cena. Da janela espreita Lígia, desconfiado. Lígia está parada no meio da cozinha. Tenta decifrar os horários organizados a lápis por Hermes numa folha sulfite colada com durex na parede. Nenhum compromisso marcado para hoje, no entanto. 
Lígia bebe água do filtro, abre a geladeira e hesita. Escolhe alguns ingredientes para seu sanduíche.
Norberto não desgruda os olhos dela.

Na rua, Hermes caminha em ziguezague, de olhos fechados. Pressiona as têmporas com a ponta dos dedos. Passa a mão pelo topo da cabeça semi-calva. Sente a eletricidade dos cabelos percorrendo a mão, depois o braço, perdendo força no ombro dolorido. Todo o corpo dói. "Fígado", é o que dizem. Hermes precisa ir ao médico. Há anos adia. Precisa fazer endoscopia, exame de sangue para DST, diabetes, hepatite, esquizofrenia.
O alcoolismo autodiagnosticado não tem cura. Aprendeu com a mãe. "Uma doença incurável, progressiva e fatal."
As ressacas pioram a cada bebedeira. Hermes não compreende. 
"Eu nem bebi tanto ontem. Meia garrafa de saquê e umas quatro doses de whisky. O saquê a 15% de teor alcoólico. 500ml. 15% de 500 é 75. 75 ml de álcool, mais uns 250ml de whisky, a 40%. 40% de 250 é 100. Ao todo, então, 175ml de álcool. É o equivalente a onze latas de cerveja. Não é muito." 
A operação matemática esgota as últimas forças de Hermes, que cessa de andar. Se apoia num Muro, curva o corpo pra frente e ensaia vomitar. Não sai nada. Mete o dedo na garganta. Nada. Pessoas olham curiosas, enojadas, com medo. Ninguém oferece ajuda. Estão no Sul. Hermes nem se espanta mais. Na verdade mal percebe as pessoas que passam. É tudo um borrão claro demais que Hermes tenta enfrentar sem cair. Vai andando assim até encontrar uma mureta em frente a um hospital. Não entra, apenas senta ali. Fecha os olhos, ergue a cabeça e respira fundo, pelo diafragma. Pensa na merda da Lígia. No café com leite desprezado. Não lembra o que aconteceu ontem. Nunca lembra. Só lembra de contar as doses de whisky. E todo o monólogo interno que isso gera. Lembra de Lígia bebendo saquê, portanto deduz que bebeu meia garrafa. O gosto de saquê volta. O gosto do whisky de média qualidade volta. O gosto da merda de Lígia o surpreende. Hermes vomita na calçada.
Como se tivesse vomitado um endo-parasita, levanta muito mais disposto. Distingue os carros e as pessoas e os postes e as placas e as pedras no chão. Caminha rumo ao ponto de ônibus, planejando a aula que seguirá.



V


Chega em casa às seis da tarde. A sala está apagada. Norberto vem recebê-lo. Hermes vai até a cozinha e acende a luz, nota os potes de comida. Vazios. Lambidos. O pote de água está seco a ponto de evidenciar pequenas rachaduras no fundo. Norberto mia, exigente. Em cinco segundos os potes estão cheios. Uma das gatas surge por debaixo do fogão, como um rato. A outra vem correndo de algum lugar da sala escura. Os três comem sem olhar para Hermes, que abre a geladeira e se frustra ao perceber que não tem água gelada. Bebe do filtro. Água morna. 
Não tenta ouvir ruídos, não tenta descobrir se Lígia está em casa. Vislumbra as duas garrafas vazias na pia. Isso o surpreende. As duas estavam praticamente cheias ontem à noite. Hermes vai até o quarto pisando forte o chão de madeira, que estala e range. A casa está toda escura, mas Hermes conhece cada polegada e chega facilmente à porta do quarto. Lígia está com fones no ouvido. Ele sente que interrompeu alguma coisa. Lígia olha sem expressão para Hermes, que sorri e diz oi. Lígia parece reconhecê-lo aos poucos, sorri um sorriso reconfortante, talvez piedoso. Retribui o oi e se vira para trás, acompanhando os passos de Hermes, que vai até a janela e abre. 

     Tá tudo bem? — ela pergunta.
     Agora sim. Eu quase morri hoje.
     Ressaca?
     Sim.
     Também, você matou o whisky e bebeu quase todo o saquê.
     Eu?! Eu bebi umas quatro doses de whisky só!
     Ha-ha-ha-ha. É piada, né? Você parecia um maluco ontem!
     Lá vem...
    ...Disse que bebia pra se vingar. Que nunca tinha sido amado. Que nenhuma mulher tinha sido sua parceira de verdade. Que só se sentia vivo quando tava bêbado, sem falar que...
     Para. Não quero ouvir. Tenho até medo.
     É, eu também teria se fosse você.
     É...
     Você realmente não lembra o que fez ontem?
     Se você soubesse quantas vezes eu já ouvi essa frase...
     Imagino que sim... É que eu nunca sei se devo acreditar nisso de amnésia alcoólica.
     Caralho! Por que eu mentiria? Eu simplesmente não lembro! É só isso!

Lígia insiste.

     Você fica muito estranho quando bebe. Parece outra pessoa. Sua voz muda, seu rosto muda, você fica falando super alto, dando risada, agindo como se tivesse num palco, cantando, até aí tudo bem, mas de repente parece que você vê alguma coisa e fecha a cara, fica nervoso, agitado, agressivo, paranóico. Você tem ideia do que me disse ontem? Eu vou falar! Você veio dizer que eu tinha clonado seu cartão! Que eu trabalhava pro Samuca. Eu nem sei quem é Samuca! Você mesmo já disse que nem tem cartão nem conta em banco! Eu te dizia isso e você só respondia "Aham, claro, aham". Era insuportável. Aí você foi até a cozinha, eu fiquei com medo. Achei que você ia pegar alguma faca, ou sei lá... Aí você voltou com a garrafa de whisky e começou a beber no gargalo. Quase vomitou, babou tudo no chão, ficou cuspindo, depois olhou pra mim e me chamou de ingrata! Disse que eu só queria o seu dinheiro e o seu prestígio. Que eu não tinha ideia de como era difícil ser um gênio...

Hermes caminha na direção da porta. Não diz nada.

     ...Que eu tinha que respeitar seu espaço e que eu não te levava a sério. Mas que você ia...

Hermes fecha a porta do quarto. Vai até o banheiro, tranca a porta e dá uma bela cagada. Não acende a luz. Tira o grosso da sujeira com papel higiênico e entra no banho. No escuro, deixa que a água limpe o cu e as palavras de Lígia.



VI


Ouvem Coltrane no escuro, em silêncio. O lençol cheira a virilha. Isso excita Hermes, que ensaia molestar Lígia, mas logo desiste prevendo a frustração. Ele não sabe se Lígia está realmente ali. O silêncio paira leve, nunca se sabe.
Choveu por horas. Agora faz uma noite clara e limpa lá fora. O frescor entra pela janela aberta. Hermes fixa os olhos num ponto luminoso no alto de um prédio.
Já se passaram três meses desde a mudança de Lígia, percebe. Sente uma melancolia incrivelmente boa.
Coltrane. Noite alta, clara. Silêncio e uma mulher ao seu lado. O cheiro humano.
Registra mentalmente a cena.
Lígia quebra a inércia bruscamente. Gira pra cima de Hermes, agarra seus punhos e o imobiliza. É impossível distinguir sua feição felina. Sente apenas o calor do hálito e do corpo, sobretudo na região pélvica.

O sexo flui surpreendentemente bem. Talvez o mais incrível até o momento. Ninguém diz nada. Não é necessário.
Permanecem o mais perto possível, sem encostar os corpos.
Hermes pega no sono, beirando a plenitude, mas acorda assustado com voz de Lígia.

     ...Pensei em nem falar nada, mas não seria justo.
     Hum?
     Tava dormindo?
     Tava quase... o que você disse?
     Ah, nada. Pode dormir. Amanhã eu falo.
     Não, agora que você me acordou, fala.

O silêncio muda de face.
Esquenta e pesa.

     Ligaram lá de São Paulo enquanto você tava fora.

Hermes nota a preocupação na voz de Lígia.

     Quem?
     Sua avó.
     Ela falou alguma coisa?  Hermes dissimula. Sabe que há algo errado.
     Falou... eu não sei como te dizer isso... e não queria ser a pessoa a ter que dizer... eu até pensei em ir embora pra não ter que dar a notícia...
     Porra, fala logo, você tá me assustando.

Hermes senta imediatamente no colchão. Vira o corpo na direção do vulto de Lígia.

     Sua mãe... — Lígia começa a chorar. — Sua mãe morreu.

O tom fúnebre de Alabama (John Coltrane Quartet) pincela de beleza a cena fatal. Hermes não diz nada. Seu corpo esfria por dentro e esquenta por fora. A pele se arrepia completamente. Os ombros de Hermes se erguem, armados. Ondas elétricas nascem no topo da cabeça semi-calva e percorrem todo o corpo até as canelas. Não chegam aos pés.

     Overdose?      
     Sim.
     Eu meio que já esperava...

O saxofone consola o contra-baixo.
Lígia tenta sem sucesso consolar Hermes, que nada diz o resto da noite.
Os dois deitam novamente em silêncio. A claridade do céu estrelado invade o quarto. Hermes distingue todos os seus livros, seu quadro em litografia, o interruptor, seu divã, os óculos sobre a mesa. Tenta sentir alguma coisa. Então percebe a TV do vizinho. O volume altíssimo.
Filme dublado. Aquela vinheta do trompete pincelando a solidão da madrugada.
Intercine? Supercine? Tela quente? Como era mesmo o nome?
Sente pena do vizinho. A cabeça esquenta e lateja.
Hermes solta um uivo áspero e grave que pode ser ouvido a dois quarteirões dali.
Lígia finge dormir.


VII


     O som leve do ventilador portátil não interrompe o silêncio tropical; pelo contrário: intensifica-o. Todas as janelas abertas não dão vazão ao calor dantesco e atípico. As moscas vagam fartas pela merda dos gatos que, exposta ao calor, fede o dobro. A cena é de dar inveja a qualquer escritor de sub-literatura policial. Não há mesa de escritório ou arma, é verdade. Sento-me sobre um travesseiro murcho, enrolado no chão, de costas apoiadas num sofá velho fedendo a vinagre. Nesse exato momento encontro-me suspenso na existência. Busco um tipo de paz interior, mas as gotas de suor me escorrendo pelas costas distanciam qualquer possibilidade. Esfrego as costas no sofá. O travesseiro se desenrola. Dou um impulso com os joelhos, o corpo salta um pouco e tento nesse ínterim arrumar o travesseiro, mas caio rapidamente sobre ele, ainda mais desfeito. Esmago os dedos com o peso do corpo. Meu saco vai parar embaixo do cu, todo empapado de suor. Um mosquito talvez cego tromba no meu nariz  desperto totalmente da paz que vislumbrava. Descolo o saco do cu, enrolo o travesseiro outra vez, ajeito a postura, fecho os olhos, respiro sentindo o diafragma cada vez mais relaxado, estico a coluna, giro o pescoço e tento encontrar um ponto de fuga no negrume dos olhos. O suor escorre. Muito. Tomo conhecimento de dobras até então ocultas no meu corpo. Estou gordo. Levanto bruscamente, vou até o banheiro lavar o rosto, cometo o erro crasso de olhar o topo da minha cabeça oleosa e calva. Ontem mesmo eu era um cara bonito, com certa elegância. Pra onde vai a vitalidade? Escorre como suor? Fede como merda de gato? Gira sem parar como o ventilador portátil?
     É impossível permanecer aqui. Visto uma bermuda limpa e uma camiseta fedendo a sovaco. Tudo bem. Recolho cinco sacolas de lixo antigo  uma delas furada, fazendo escorrer chorume pelo chão  e desço as escadas frias desse prédio pacato onde moro.
     A rua parece o inferno.Vago tentando encontrar o diabo que enfim me libertará.

Hermes fecha o caderno. Da sala consegue distinguir os barulhos que vêm do quarto.

Repete o ritual matinal.
Comida pros gatos, café, pão com manteiga, esquentar o leite, duas colheres de açúcar.
Bebe seu café de estômago vazio. Preto. Puro.
Ensaia levar o de Lígia até o quarto mas ao chegar no meio da sala encontra-a encostada na parede, os olhos enormes, interrogativos, reticentes.

     Bom dia!

Lígia, roendo a unha, não responde.

     Nem ouvi você levantar. Tava indo levar o café pra você na cama.
     Pode deixar aí na mesa, eu já tomo.
     Tá bom.

Lígia em silêncio e determinada anda rápido na direção de Hermes e dá um abraço muito apertado.
Hermes sente as lágrimas no seu ombro.

     Ei, que houve? Por que você tá chorando?

Ela não consegue responder. Desata a chorar e aperta ainda mais o abraço.
Hermes sabe o motivo. Piedade. Está chorando pela perda dele. E por ter sido testemunha e porta-voz da morte.
Lígia enfim soluça algumas palavras.

     Você já ligou lá?
     Já vou. Ainda não liguei porque eu tava escrevendo um conto. Acordei com uma ideia.

Lígia parece não acreditar no que escuta.

     Você tava escrevendo um conto?
     É. Baseado num filme que vi recentemente... — Nota a repulsa crescer no olhar dela. — Sobre um cara que sofre dessas pequenas maldições cotidianas, sabe?, essas coisas que todo mundo odeia em silêncio mas não comenta, por achar que... — CHEGA!, Lígia berra.

Empurra Hermes, dá meia-volta, entra correndo no quarto e bate a porta.
Ele finge não entender.
(De fato não compreende muito bem.)
Parado no meio da sala, sente-se oco, um pouco idiota. Sabe que deveria estar chorando ou algo do tipo. A mãe morreu e ele escrevendo um conto baseado num filme que assistiu.
Vai até o quarto e no caminho se vê de relance no espelho da sala. Sente vergonha. Julga patética sua figura. Um frango malcozido e sem tempero. Calvo. Órfão.
Abre a porta do quarto e encontra Lígia fazendo as malas.





Segunda parte



I



Mal havia amanhecido, o interfone não exigiu cerimônia para soar seu alarme já esquecido, agudo demais aos ouvidos dele. No ambiente opaco do apartamento quitinete, todo fechado, um fiapo de luz irrompe por uma fresta da grossa cortina vermelha.
A poeira parece dançar tango durante a luz.
Ele — deitado num colchão no chão, na extremidade oposta do apartamento, acordado há sabe-se lá quantas horas, cinco dias sem sair de casa — olha estático para o feixe de luz como quem não tem escolha.
Costuma imaginar que somente dentro do feixe há poeira, que o resto do apartamento está limpo.
Sabe que não, e apesar disso gosta de estar ali, refugiado naquela cidade. Sozinho. Outra vez.
Mas não consegue dançar tango na própria fantasia porque agora mesmo o som agudo inicia a segunda rodada.
O interfone está ao lado da janela. De seu colchão não consegue enxergar o aparelho que sequer cogita atender. Olha fixo pro teto. Repara numa pequena rachadura na tinta branca. O interfone insiste.
Calcula que seja terça ou quarta-feira, algo em torno das 7:00h. Faz esforço para se virar de lado e alcançar um bocado de papel que usou pra esboçar alguns poemas recentemente. Vasculha as páginas, ignora os poemas e só sossega quando encontra o desenho de uma mulher sendo currada por um homem de mandíbula muito projetada pra frente. Ele quem desenhou. Segura a folha em frente ao rosto com a mão esquerda, com a direita pega no pau e começa a bater. O interfone segue. Tenta se concentrar e imaginar que ela sente prazer. Projeta nessa mulher uma dúzia de mulheres que conheceu ao longo da vida e a cada mulher que se lembra, lembra também dos pesares, dos abismos, da maneira cruel com que todas as relações terminam, inevitavelmente.
Pensa em Lígia.
O pau vai amolecendo. Fecha os olhos com força, estica muito a pele do pau, bate com esmero, percebe que não vai gozar e desiste. Joga o desenho longe e torna a olhar para o teto. Demora pra encontrar a rachadura. O ar ali dentro é quase sólido, fede a virilha e peido. A hipótese de cruzar aquela porta lhe parece distante e terrível.
Apenas dois metros separam-no do mundo lá fora, no entanto, parecem árduos quilômetros. Tem do mundo o suficiente: a luz límpida e fresca que entra discreta por baixo da porta, os sons saudáveis do dia, os passos cordiais de seus vizinhos.
Não sabe ao certo quantos apartamentos se distribuem pelos quinze andares, mas supõe doze.
"15 x 12 = 180 apartamentos no prédio, vezes 8 blocos = 944 apartamentos, menos esse = 943 apartamentos ao redor. Média de três pessoas por apartamento... 2829 pessoas ao redor e ninguém capaz de me salvar."

O elevador se faz evidente — seu motor grave ecoa pelas paredes —, a porta se abre e alguém caminha pelo corredor. Ele se encolhe na cama, prende a respiração e se atenta ao menor ruído. Os passos se aproximam. Seus músculos paralisam. Evita mexer até mesmo o pescoço, com medo que o intruso ouça e invada o apartamento através desse som, como faz a poeira através da luz. Involuntariamente, sua boca emite um estalido muito alto. O coração se assusta e bombeia sangue demais. O corpo esquenta. Sua cabeça parece elétrica e vazia. Ele treme. O interfone torna a tocar, seu alarme faz com que Hermes desperte do transe, levante da cama num pulo, jogue a coberta pro lado e, de joelhos, vá até o interfone.
Vai engatinhando e mal percebe o carpete rude que esfola seus joelhos. Não sente nada, só calor e esperança. Levanta-se do chão e ao fazer isso a coluna estrala, também os pés e joelhos que agora sangram. Hermes num repente escancara a janela, a cortina, respira um ar azul que quase não interpreta, gira o pescoço lentamente e atende o interfone.

     Opa.
     Pois não, Seu Hermes?
     ...
     Alô?
     Oi. Você interfonou pra cá?
     Não, senhor, quem interfonou pra cá foi o senhor.
     Não... meu interfone tava tocando sem parar, mas... eu tava no banho e não deu pra atender... aí eu atendi agora.
     Olha, eu não sei. Eu acabei de chegar, mas quem tocou agora foi o senhor. Quem tava aqui era o Emanuel, eu vou perguntar pra ele, aí eu retorno, pode ser?
     Pode ser.
     Então tá bom.

Hermes ainda hesitou por alguns segundos antes de se virar na direção do cômodo. Era agora um cidadão-janela-aberta, seria difícil encarar aquele apartamento triste, minúsculo e imundo, sem espelho, mobília ou carisma. 
Um prazer diurno o invadiu; uma pureza, enfim. Na rua da frente estava montada uma feira. "Isso quer dizer que é sábado." Pelo modo como a luz está batendo na lona das barracas, pelo ruído e pela aparência das pessoas é possível perceber: são 9:00 da manhã. Deu de ombros e resolveu vestir uma roupa, encarar o dia. A geladeira estava vazia, também a despensa. 
“Pronto. Acordei. Sair da caverna e andar um pouco vai me fazer bem. Quem sabe até eu consigo fazer aquela maldita trilha sonora quando voltar.”
O interfone tocou.

     Oi.
     Oi, Seu Hermes, eu falei com o Emanuel e ele me disse que teve uma moça aqui procurando pelo senhor. Já faz três dias que ela vem aqui procurar pelo senhor. Ela disse que era importante e perguntou se podia subir, mas o senhor sabe que a gente não pode deixar ninguém subir sem autorização... Aí hoje ela deixou uma encomenda aqui pro senhor. Uma caixa...
     Uma caixa?
     Sim, senhor.
     Ela disse o nome?
     Luiza. Tá escrito aqui.
     Tudo bem. Daqui a pouco eu desço pra pegar.
     Então tá bom.
     Valeu.

“Quem, diabos, é Luiza?”, fecha a janela, as cortinas, lava o rosto, bebe água da pia e deita-se de novo.
Os joelhos sangram carpete, mas isso não o impede de usar o lençol branco para se cobrir. 
Fecha os olhos, tenta desviar de imagens sujas e indesejadas que recebe como tortas arremessadas num show cômico e se põe a imaginar quem poderá ser essa Luiza.
Lembra de uma Luiza com quem estudou na quarta série. Uma de suas muitas paixões de infância. Certamente não é a Luiza da encomenda.

     Uma caixa?  deixa escapar e se espanta com a própria voz.



Acorda num tranco, uma pesada chuva do lado de fora. Faz frio. O vento uiva.
Permanecer em casa lhe parece agora absurdo, mas com essa chuva fica impossível sair.
Vai até a janela e, mesmo sem abrir, constata um céu muito escuro e opressor.      
Sem relógio ou calendário em casa, encontra-se suspenso no tempo.

































II


Interfona pra portaria.

Quinta-feira, duas da tarde.
Calça chinelos, abre a porta com certa estupidez e dirige-se ao elevador.
Desiste, vai de escada.
Nota o fedor que sobe do próprio corpo, o sangue nos joelhos.
No caminho à portaria toma um pouco de chuva. Detesta a sensação. Nunca compreendeu o misticismo em volta do tal banho de chuva. A água cria uma lama entre os dedos do pé. Sente que pisa em merda mole.
Não há ninguém na portaria. Tenta espiar pelo vidro escuro, não distingue nada lá dentro. Pelo contrário, acaba enxergando o próprio reflexo no vidro fumê.
Cabelo ensebado, uma barba que denota derrota, o bigode cobrindo a boca que fede estômago vazio.
O porteiro vem correndo. Aparentemente também não é adepto ao banho de chuva. Corre rápido como quem pede desculpa pela ausência. Entra na portaria sem falar com Hermes, parece empenhado em entregar a caixa.
Enfim clareia a expressão quando entrega a Hermes uma caixinha quadrada de papel grosso, revestida por um celofane preto brilhoso, a tampa presa com singelos pedaços de durex.
Hermes agradece sem tirar os olhos da caixa. Pensa em abrir ali mesmo mas decide fazê-lo no apartamento. Sobe correndo as escadas. O barulho dos chinelos ecoa no prédio todo. Abre a porta com arrogância, deixa os chinelos do lado de fora, raspa os pés na panturrilha e se joga no colchão com a caixa em mãos.
Analisa minuciosamente o exterior da caixa modesta. Por um momento não deseja abri-la. Sente prazer ao olhar a caixa.
O estômago ronca. Hermes sente uma tontura abrupta. Nota que está ofegante, sente o coração latejar no pescoço. Está sem comer há mais de 24 horas. Gastou as últimas energias descendo e subindo escadas, expondo-se ao mundo lá fora. Não ousa abrir a caixa nessas condições.
Vai até a cozinha conjugada e vasculha os armários. Encontra um pacote de açúcar fechado com pregador de roupa. Joga o açúcar na frigideira, acrescenta um pouco de água da torneira e vai mexendo até pegar consistência. Desliga o fogo mas segue mexendo pra não empedrar. Come o caramelo entre sopros e queimaduras. Sente ódio quando derrama o caramelo quente no pé. Vislumbra a frigideira sendo arremessada pela janela. Come mais algumas colheradas e joga a frigideira na pia, surpreendentemente limpa.
Hermes não consegue pensar. Sente a cabeça travada, poluída. Por um instante esquece a caixa. Faz uma série de alongamentos, estrala as costas, pernas, ombros, pescoço, pés. Uma sinfonia de estralos.
Uma eletricidade orgástica percorre o corpo todo. A mente clareia. Já não chove tão forte lá fora.
Decide abrir a janela outra vez, ventilar a toca.
Num relance pensa em Lígia e na efemeridade daquela relação que terminou em morte. A morte da mãe.
Lígia não suportou a frieza com que Hermes lidou com a situação. Chegou a chamá-lo de psicopata, doente. Fez suas malas (como sempre fazia em discussões), pediu um táxi e voltou pra casa da mãe.
Hermes seguiu sozinho por mais dois meses no apartamento em Curitiba, até que o contrato expirou. Sem perspectivas naquela cidade, decidiu voltar a São Paulo. Não foi ao velório da mãe. Não compreende velórios.
Pensa no velório de seu avô paterno. Aquele corpo absurdo no caixão pequeno demais. As flores cobrindo as pernas do morto. O cheiro do caixão que o persegue até hoje...
Enxerga a caixa negligenciada ao lado do colchão no chão. E sem teorizar sobre caixas e Luizas, retira cuidadosamente os pedaços de durex.



III


Marcaram pras 20h mas Hermes, ansioso demais, chegou às 19:20h. 
Pede uma cerveja e um Cynar. Tenta não beber rápido demais. Mata um copo de cerveja num só gole, deposita um pouco de Cynar no copo vazio, preenche com cerveja e vê nascer sua íntima criação: cerveja de alcachofra, coloração fascinante.
Dá um gole moderado e se dispõe a olhar seu redor. Homens se agrupam ao redor do balcão, botões de camisa abertos, pós-expediente. Muitos estão ali o dia inteiro, Hermes supõe. 
É o único nas mesas. Sente-se menos viril por isso. 
Dá mais um gole e nota um tipo curioso sentado sozinho na extremidade do balcão. Lendo um jornal que parece absurdamente grande, o homem bebe cerveja de uma lata. É jovem, tem olhos loucos. Hermes mata seu copo, levanta-se e vai até ele.

     Muito sangue no jornal?

O rapaz olha friamente para Hermes. Seus olhos são opacos.

     Não sei. Tô lendo a seção de economia.
     Sangue numérico.

O homem não vê graça. Tampouco Hermes, que se sente meio imbecil e volta à sua mesa.
Seu copo está cheio. Inexplicavelmente.
Agradece mentalmente e vira tudo num gole só. Sente-se muito agitado. Luiza pode chegar a qualquer momento. Não conhece sua aparência, julgou grosseiro e ultrapassado perguntar isso ao telefone. Pela voz, um baita mulherão. Pele tom de cobre, cabelo ruivo tingido, armado, lábios carnudos. Imagina uma foda incrível, ela com as pernas erguidas, olhando nos olhos de modo desafiador.
O homem do jornal surge num repente e senta-se à mesa com Hermes, que agora tem o poder e o olhar impessoal.

     Desculpa se eu fui escroto com você. Costumo adotar essa postura pra evitar bêbado chato. Mas eu tava te olhando e notei que você é um cara legal. Eu me chamo Rafael, se isso te interessa.
     Leonardo, prazer — Hermes sempre mente seu nome em bares e estradas.
     Prazer, Leo, posso te chamar de Leo?, tá esperando alguém ou é dos meus, que vem sozinho pro bar?
     Ambos. Hoje, especialmente, tô esperando uma mulher que eu nunca vi na vida.
     Acho que todos os bêbados de todos os bares do mundo esperam por essa mulher.
     Sem dúvidas. Mas hoje eu realmente tô esperando uma pessoa. É uma história complicada. Ela deve chegar a qualquer momento. Aliás, que horas são?

Rafael, o homem do jornal, olha de modo esquisito pro seu relógio de bolso e afirma: Sete e cinquenta.

     Ela deve tá quase aí. Marcamos pras oito.
     Já entendi, você quer que eu vá embora...
     Não é isso. Pode ficar até ela chegar. Prova isso aqui.

Hermes preparou sua cerveja de alcachofra, coloração surpreendente, e empurrou o copo na direção de seu mais novo amigo, que não fez questão de perguntar. Virou uma boa golada, com pinta de bêbado profissional.

     Gostou?
     Porra, demais. Cerveja com Cynar? Nunca teria pensado nisso.

Hermes notou o olhar de seu amigo perder o foco e acompanhar alguém que acabava de entrar pela porta.

     É essa a sua amiga?

Luiza se aproximava bastante da imagem que Hermes criara. Só um pouco mais velha e mais baixa.
Rafael se levantou e voltou ao seu canto, seu jornal.
Hermes, olhando para trás, por cima do ombro, não tinha dúvidas: era ela. Andava com firmeza e uma certa classe natural. Os olhares dialogaram. Ela sentou-se à mesa e, antes de falar qualquer coisa, chamou o garçom. "Uma dose de whisky sem gelo e uma garrafa de água com gás, por favor."
Então olhou frontalmente, sem pudor e com malícia para Hermes, desarmado mas com a guarda alta.

     Você não deve ter entendido nada, né?
     Na verdade eu entendi tudo. E achei surpreendente. É algo que eu faria com certeza.
     Com certeza?
     Sim. — Hermes responde sem desviar o olhar. Está sendo desafiado e gosta disso.
     Chegou faz tempo?
     Uns cinco minutos.
     E já acabou com uma garrafa de cerveja e uma dose?
     É... Calor... Cê sabe...
     Eu só sei que, ou você bebe desesperadamente, ou tá mentindo e chegou há mais tempo, só não quer admitir pra não parecer fraco.
     Eu pareceria fraco se dissesse que cheguei há quarenta minutos?
     Não sei. Pareceria? — O sarcasmo é quase sólido.
     Você é terapeuta?

Ela solta uma gargalhada pro alto, a garganta fica evidente, também um enorme par de brincos que Hermes não havia notado.
O garçom chega com o whisky e a água.
Ele pede mais uma cerveja e mais uma dose.

     Eu cheguei há quarenta minutos.

Luiza sorri de modo cortante e diz "Eu sei."



IV


Hermes acorda em casa. Sozinho, vestindo a roupa da noite anterior. Não sente ressaca, embora não lembre como chegou em casa. Nunca lembra, por isso não se espanta. Tem uma sensação latente de ter agido de modo idiota. A última coisa que lembra é dançar tango com Rafael, o homem do jornal, no meio do bar. Luiza não se encontra mais em cena. Foi embora logo após o inevitável beijo bêbado. Um beijo afoito, cheio de língua e batom. "Eu já sei onde isso termina", ela diz, "e hoje eu não posso."
Ao tirar a roupa pra entrar no banho, Hermes nota um papel dobrado no bolso.
No papel há um triângulo, reticências e dois olhos desenhados.
Ele se lembra: teve uma ideia genial, pediu papel e caneta ao garçom, anotou rapidamente a ideia de forma simbólica e voltou à jukebox e aos amigos bêbados.
Um triângulo, reticências e dois olhos.
Não faz ideia do que isso significa. Amassa o papel e joga no lixo.

     Eu preciso fazer aquela trilha sonora.

Liga o chuveiro e apaga a luz do banheiro. Deita-se no box de olhos fechados sob a água.
Que noite improvável. Um encontro às cegas com uma mulher que encontrou por acaso seu nome e endereço anotados num papel, em alguma calçada de São Paulo. As informações escritas a próprio punho por Hermes, dias antes, quando saiu pra beber e, temendo perder-se na volta, anotou nome e endereço num pedaço de papel, com os dizeres "SOFRO DE CONFUSÃO MENTAL QUANDO BEBO. FAVOR ME GUIAR A ESTE ENDEREÇO". Hermes também não sabe como chegou em casa nesse dia. Mas chegou. Sempre chega. 
De qualquer forma, o encontro não foi tudo isso. Não pretende encontrá-la outra vez. Precisa se concentrar na trilha sonora que aceitou fazer de graça pro curta-metragem de uma amiga de Minas Gerais.
"Por que ela se deu ao trabalho de escrever aquela carta enorme e entregar numa caixa? Por que insistiu três dias consecutivos?"
Hermes, no chão do box, de olhos fechados, lembra-se então de um fato curioso da noite anterior. Luiza falando sobre como Hermes lembrava um filho que ela havia perdido. Suicídio. Lembra agora com vivacidade da expressão desesperada nos olhos dessa mãe. "Meu filho era como você, pensava carregar um fardo maior do que podia aguentar. Por isso se matou. Promete pra mim que não vai fazer o mesmo!"
Foi então que aconteceu o beijo. Um beijo dramático. Um beijo alcoólatra, suicida. Um beijo cheio de língua e desespero.
Então o tango com o homem do jornal; então o dia de hoje. Simples assim.
Hermes agradece a sorte que tem. Surpreende-se por ainda estar vivo.
Desliga o chuveiro e volta à cama, decidido a fazer a trilha sonora.



V


Cheio de energia, Hermes ganha a rua. É a primeira vez em muito tempo que sai de casa durante o dia sem a intenção de ir ao bar.
Precisa ir ao banco. Normalmente essa obrigação o torturaria, mas hoje cumpre com alegria nos lábios. Faz sol mas não calor. Hermes se encanta com os detalhes do mundo, como alguém que volta a enxergar após uma cirurgia.
Caminha cantando, sorri pras pessoas, vê beleza numa conversa de senhoras do outro lado da rua. Traz em mãos um livro que não lerá pois está encantado demais com a vida real e saturado das páginas. No entanto carrega o livro por segurança.
A porta giratória do banco trava. Hermes se assusta. Morre de medo de portas de banco. O guarda do banco — essa pequena autoridade — manda Hermes voltar, depositar chaves e celular no compartimento da porta. "Não to com nada nos bolsos."
Tenta de novo e dessa vez consegue entrar. Sabe que foi barrado pela sua aparência. Sabe que é o guardinha quem controla a porra da porta. Encara o pequeno homem com ódio. O segurança ri pro outro guardinha, que retribui o sorriso como se fosse uma colegial tímida.
Hermes tem de ficar em pé, o banco está lotado. As pessoas falam. Todas ao mesmo tempo. Alto demais. O mundo já não parece mais tão belo assim.

     Isso é um absurdo! Onde já se viu, pra atender tudo isso de gente eles colocam só três funcionários. Tem mais dois caixas vazios, eles podiam colocar mais gente pra atender!  brada um homem de meia-idade.

Todos concordam.
É sexta-feira, dia de vencimento da conta. Hermes quer desistir, voltar pra toca. Mas permanece ali em pé, um pouco tonto. O gosto de alcachofra se sobrepõe à pasta de dente. Hermes vai até o filtro e bebe dois copos d'água. Sente que todos o observam. Todos cochicham sobre ele. Até o velho lastimoso. "Onde é que já se viu, esse cara chega aqui com essa barba de desempregado, essa cara de quem bebeu a noite inteira, ainda se acha no direito de beber a nossa água. A água paga com o nosso dinheiro! O dinheiro dos nossos impostos!"
Hermes se vira na direção das pessoas e percebe que ninguém olha pra ele. Num relance enxerga através da porta de vidro uma pessoa conhecida passando apressada pela calçada. Não reconhece, de fato, mas compreende a importância daquela pessoa. Num ímpeto vai atrás. Estanca no meio da agência. Olha o relógio: 15:57. Se sair agora não entra mais. Se não pagar hoje, a conta vai atrasar, gerar multa, toda essa merda. Hesita um pouco mas teme perder a pessoa de vista. Sai apressado do banco. A porta giratória trava outra vez. Hermes sente o ódio escorrer pela nuca. Olha pro guardinha, que ri de modo grosseiro. Dá um chute na porta, ganha a rua e se dispõe a correr atrás de alguém que já não sabe se conhece.
No caminho percebe que esqueceu o livro no banco. Não para de correr. Segue sua intuição e vira à esquerda numa rua onde nomeou todas as casas em uma de suas andanças pelo bairro. Certeiro. O homem perseguido está parado em frente ao portão da casinha amarela: "Gema".
Tenta disfarçar, mas não sabe o que fazer com as mãos. Nunca sabe. Cruza os braços? Põe as mãos no bolso? Atrás do corpo? Segue caminhando? Se ao menos tivesse um cigarro, sua presença ali deixaria de ser suspeita. Mas não tem, não fuma.
O homem misterioso troca algumas palavras com alguém através do portão da Gema. Acena e segue seu rumo. Hermes vai atrás. Mas sente alguém muito próximo, atrás de si. Checa a retaguarda. Não há ninguém.
   
     "Onde já se viu!" 

Quando se vira novamente, dá de cara com o homem perseguido, que olha pra ele e sorri. Os dentes podres, o bigode amarelado, a barba irregular, o cabelo branco ensebado, olhos de pescador, rugas fundas. De perto parece muito mais velho.

     Tá atrás de mim, campeão? — O tom de voz é sereno e ameaçador.
     Não! É que eu te vi passar e achei que era... — O homem nubla a expressão e vai pra cima de Hermes. Empurra com as duas mãos.

     Sai daqui, seu comédia! Desaparece da minha frente, seu filho da puta!

Hermes fica sem reação. O velho destila ódio.

     Seu viadinho! Some daqui, seu merda!

E sai correndo rua abaixo. Hermes vai atrás sem saber o motivo. Correm cerca de 20 metros, até que Hermes consegue alcançar o velho e dar um chute certeiro numa das pernas. O velho cai de cara no chão. Hermes pega no ombro do velho e o vira de barriga pra cima. Coloca o joelho no estômago do velho e dispara uma sequência de socos e cotoveladas até que o velho, jorrando sangue, desmaie. Ou morra. Hermes não sabe. Não consegue pensar. O coração bate no ouvido, a garganta fecha, os ombros se erguem, armados. Sente que alguém respira por ele. Esquece o próprio nome.
Algumas pessoas olham de longe, sem pudor. Grupos de curiosos surgem. O velho não se mexe. Hermes tem um lampejo de sanidade e sai correndo rua acima. Quase infarta quando chega novamente à avenida principal. A cabeça lateja, o corpo exala álcool. Pensa na mãe morta. Pensa em Lígia; no papel higiênico sujo com a merda dela. Passa em frente ao banco, ainda cheio mas já fechado. O segurança bebe café. O homem lastimoso parece vermelho. Fala com o dedo em riste, uma veia saltada na testa. 
Pensa no homem que acabou de matar. Ou desmaiar. Teme ser perseguido e linchado. Sente desespero quando nota que está perdido em plena luz do dia, perseguido por uma multidão furiosa. Por que o homem o insultara daquele jeito? "Eu agi em legítima defesa", Hermes ensaia. Soa falso. Sente uma mão no seu ombro. "Morri", pensa num relance, os ouvidos tomados por um zumbido ensurdecedor.

     Tá perdido? — Luiza pergunta, rindo.
     O que você tá fazendo aqui?
     Eu moro aqui, você sabe disso. Eu te falei ontem.
     Falou? Não, eu... Ah, sim, eu lembro — mentiu.
     Eu to indo ali na padaria comprar umas coisinhas pra lanchar, sobre pra comer comigo?

Hermes deseja dizer não. Está sem condições de manter uma conversa. Não quer ser objeto de fissura daquela mãe que projeta nele o filho morto. Odeia comer acompanhado, no entanto sabe que é o melhor a ser feito, tendo em vista que pode ser linchado a qualquer momento.

     Nossa! Você tá todo cheio de sangue, agora que eu vi!
     É... Eu caí.
     Vamos subir! Eu cuido disso. Depois eu vou na padaria.
     Tá bom.

Luiza adquire uma fisionomia completamente nova. Já não tem mais aquela cara de predadora sexual, mas a de uma mãe preocupada.
No elevador ele tenta pensar em algo que justifique o sangue e sua presença ali.
Nada vem à mente. A realidade lhe escorre como sangue entre os dedos.



VI


Hermes finge se interessar pelos porta-retratos expostos na sala. Passa os olhos por todos mas não fixa. Vai discretamente até a janela e tenta enxergar alguma coisa lá em baixo. Aparentemente nenhuma multidão raivosa por ali. Respira pela primeira vez em muito tempo. Dá meia-volta e repara em outros porta-retratos. Em um deles vê Luiza bem mais jovem com uma criança ao lado. A mãe sorri e canta parabéns. A criança olha fixamente para o bolo cuidadosamente confeitado, com uma vela "3" em cima.
Num outro porta retrato vê Luiza ainda mais jovem ao lado de um homem vestido de Chacrinha. Luiza parece fantasiada de paquita. Ou chacrete.

     Gostou das fotos? Essa é aquela que te falei, com o Chacrinha.
     Você conheceu o Chacrinha?
     Cê tá brincando com a minha cara, né? A gente falou disso durante horas, ontem. Eu era chacrete, esqueceu disso?

Ele tenta dissimular mas não consegue.

     Meu deus, você é pior do que eu imaginava! Agora senta aqui pra eu cuidar desses machucados. E me conta o que houve. Arranjou briga ontem?
     Não, eu caí agora há pouco subindo uma ladeira.
     Pra cima de mim? Você pode falar isso pra quem você quiser, mas não me tira de otária. Tá na cara que isso aqui foi briga. E pelo jeito não foi ontem, não. Que que aconteceu?
     Nada demais. Um cara mexeu comigo na rua...
     E você, valentão, encheu ele de porrada?
     É. Mais ou menos isso.

Luiza suspira como mãe. Cuida dos ferimentos como mãe. Hermes sente-se sufocado ali dentro. Deseja fugir o mais rápido possível.

     Eu preciso ir pra casa... Tô trabalhando numa trilha sonora...
     Você me contou ontem. Disse que não ia fazer porra de trilha nenhuma. Que não era homem de trabalhar de graça.
     Eu disse isso?

Luiza parece não acreditar. Encara Hermes com olhos de mãe.
Ele se levanta, agradece e diz que precisa ir.

     Abre a porta pra mim, por favor.
     Você não vai embora antes de me dizer o que veio fazer aqui.
     Como assim? Eu nem sabia que você morava aqui... Se sabia, não lembrava. Eu simplesmente saí correndo pra não ser linchado e acabei parando nessa rua e por acaso te encontrei.
     Por acaso? Não existe acaso. Você veio porque queria me ver mas tava com vergonha de dizer.
     Desculpa te decepcionar, mas não. Eu realmente não sabia que você morava aqui. E mesmo se soubesse e quisesse te ver, não conseguiria encontrar sua casa. Eu sou do tipo que se perde... — Que se perde até em elevador, eu sei. Você disse isso ontem.
     Então pronto. Eu disse isso ontem e agora to dizendo que eu preciso ir. Abre a porta, por favor.
     Seu inconsciente te trouxe aqui!
     Bom, então eu mesmo abro. Tchau.
     Você precisa de mim!

Hermes abre a porta que julgava estar trancada e caminha na direção do elevador. A voz ecoa pelo corredor do prédio classe-média alta, "VOCÊ VEIO PORQUE QUIS. VOCÊ SABE QUE PRECISA DE MIM. VOCÊ DISSE QUE EU ERA SUA NOVA MÃE, QUE A GENTE IA FICAR JUNTO E UM IA PREENCHER O VAZIO DO OUTRO. VOCÊ SABE QUE DISSE ISSO! SEU COVARDE!"

Essas palavras perseguem Hermes até sua casa. Na ausência da multidão odiosa, palavras odiosas.
Será verdade? Ele teria dito aquilo na noite anterior?
Passa de cabeça baixa pela portaria e no elevador é obrigado a lidar com o olhar curioso de um casal de idosos. O sangue parece amedrontá-los. Hermes, sem jeito, sorri e diz boa tarde.
Não quer entrar em casa mas não sabe pra onde ir. Pensa em subir mais alguns andares e matar o tempo na casa do tio (dono do apartamento onde tem passado os últimos dias). Enxerga todo aquele sangue nas mãos e na roupa. Desiste. Entra em casa como quem entra numa cela de prisão. Vai até a parede, encosta a testa e permanece assim, de olhos fechados, por muito tempo.
No escuro dos olhos fechados enxerga o homem que o ofendeu. Em silêncio pisa na garganta do homem, esmaga sua cabeça contra o meio-fio, enche o corpo do velho de chutes. Sente o ódio crescer dentro de si, treme de arrepio. Abre os olhos, respira fundo e vai até o chuveiro, único lugar seguro da casa.



VII


Toma 30mg de Valium e deita. Não consegue ficar ali, a roupa de cama imunda ofende suas costas. 
Estende algumas peças de roupa sobre o colchão, ri da cena e deita novamente. Está mais calmo, o banho fez efeito. O Valium ainda não.
Questiona a própria sanidade por um instante. 
"VOCÊ DISSE QUE EU ERA SUA NOVA MÃE, QUE A GENTE IA FICAR JUNTO E UM IA PREENCHER O VAZIO DO OUTRO!"
Qual a probabilidade de sair correndo de uma agência bancária, perseguir um velho, espancá-lo até a morte, fugir por ruas desconhecidas e acabar em frente à casa de uma mulher que achou seu endereço num pedaço de papel na rua  mulher essa, aliás, com quem teve um encontro na noite passada... Qual a chance?
Não costuma mistificar o acaso: ele existe, como existem árvores e prédios.
No entanto, essa história é esquisita demais. Seu corpo amolece. Sente aquela cosquinha no cérebro. O Valium chegou. 
Pensa no homem do banco, o dedo em riste, a veia saltada na testa. 
"Onde é que já se viu?! Um assassino bebendo a nossa água!"
Ri.
"Eu beijei uma ex-chacrete ontem."
Sente-se envolto numa nuvem de bem-estar. Nada pode atingi-lo, nem mesmo essas batidas na porta. Ou o burburinho no corredor do prédio.


de fato
somos feitos
do que fomos
durante o sono


Desperta e escreve esses versos à caneta numa folha de caderno. O corpo está amortecido. Os versos saem ilegíveis. Não consegue fazer um movimento simples, no entanto não se desespera. Ri disso. Ri com vontade. Gosta do som que sua risada emite. Ri cada vez mais alto. Ouve vozes no corredor. As batidas na porta ecoam, graves. Ri efusivamente a risada de outra pessoa. Lembra de um bêbado sem sobrancelhas que viu no bar ontem. Pensa em Lígia. Como será que ela tá? A melancolia o invade. Sente vontade de chorar, não consegue. Tenta alcançar o celular, não consegue. Fica estendido no chão do apartamento; metade no colchão, metade no chão. Adormece assim.

Um homem absurdo dobra a esquina. É noite. Apesar disso, está sem camisa, descalço e veste um shorts minúsculo de tecido fino. Os óculos desse homem são tão grossos que reduzem seus olhos a pequenas bolinhas pretas, como olhos suínos. Ele caminha estranhamente rápido, olhos fixos no chão. Dobra outra esquina, some. O cenário é a rua onde Hermes passou boa parte da infância. A noite é quente e clara. O homem reaparece, inexpressivo, com jeito de coitado. Tem um disco em mãos. Rubber Soul. Chega em casa e presenteia sua esposa com o disco. Acoplado a ele, uma bomba. Os dois morrem, Hermes acorda assustado no chão, a luz acesa, ventilador de teto ligado no exaustor, televisão antiga sem som.
Alcança o celular, 00:18h, cinco mensagens de Lígia. Hermes levanta na hora. Quase cai pois está consideravelmente sedado. Se apoia na parede. Devora as longas mensagens de Lígia. Relê três vezes até assimilar tudo.
Ela anda muito mal, as crises de labirintite voltaram, ela não consegue esquecer "as pequenas coisinhas do dia a dia". Diz que estará em São Paulo dali a três dias. Hermes aceitaria encontrá-la?
"Óbvio!" responde mentalmente. Apaga a luz, desliga a TV e dorme o melhor sono dos últimos tempos.

Acorda sem conseguir separar sonho e realidade. Repassa mentalmente todos os fatos do dia anterior. 
"Tanto tempo enfurnado em casa. Quando decido sair, dá nisso."
Bem, as mãos estão mesmo machucadas.
As mensagens de Lígia realmente estão ali.
Alcança uma folha de caderno no chão:


de fato
somos feitos
do que fomos
durante o sono


Não lembra de ter escrito isso. É com dificuldade que decifra os versos escritos em letras flácidas.
Está ainda assustado pelo sonho que teve. 
Aquele homem costumava passar diariamente na rua da infância. Sentia pena dele. 
Já passa do meio-dia. Hermes sente-se dopado. Tem muito o que fazer, não sabe por onde começar.
Encontra um espaço na folha de caderno e faz uma lista:

arrumar a casa
comprar comida
lavar roupa
descobrir se eu matei aquele cara
fazer a trilha sonora
voltar a treinar boxe
me preparar pra reencontrar a Lígia

Abre a janela e lembra: é sábado. Lá está a feira outra vez. Ou o que restou dela.
Decide correr e pegar alguns legumes por uma pechincha de fim-de-feira. Tem apenas quinze reais e umas moedas. Comida suficiente pra uma semana. 
Risca um item da lista.
No corredor do prédio hesita. É arriscado botar a cara na rua.
Volta ao apartamento e faz a barba com uma gilete velha, daquelas amarelas, que está ali desde que chegou. Não tem creme de barbear, usa sabonete. Quer manter o bigode mas sabe que de nada adiantaria. Demora quarenta minutos pra tirar todo o bigode com aquela gilete velha.

Na feira não o reconhecem. 
Bom sinal.


VIII


Segunda-feira. Não dormiu à noite. Crise forte de ansiedade. Insônia.
Sente-se fraco, tonto e com olheira. Não vê as olheiras mas sabe que estão ali.
Está esperando Lígia. 
Ela disse que chegaria às quatro da tarde, são quinze pras onze da manhã e ele já está pronto. Arrumou a casa no dia anterior. Olha as horas a cada cinco minutos que valem por semanas inteiras.
Está sem café em casa. Cata as moedas e ensaia tomar café na padaria mas tem medo que ela chegue nesse meio tempo.
"Ela chega daqui a cinco horas. É matemática. Você consegue tomar café na padaria e voltar em menos de cinco horas."
Convence a si mesmo e vai.
Toma com pressa um café horrível, adoçado.
Volta correndo pra casa na esperança de encontrá-la na portaria.
Ela não está.
Sobe as escadas de dois em dois degraus, chega ofegante em casa.
Faz uma série de alongamentos, bebe água, lava o rosto, olha o relógio. 11:23.
Não suporta a espera, decide ler alguma coisa. Escolhe seis livros e deita-se com eles, tomando cuidado pra não bagunçar a roupa de cama.
Folheia todos, não se interessa por nenhum. Deixa os livros de lado e fecha os olhos. Enxerga um Pollock atrás das pálpebras.
Faz alguns exercícios físicos, bebe mais água, acaba cedendo e toma um Valium. Está absurdamente ansioso. Não sabe o que fazer até as quatro.
Decide treinar boxe. Risca mais um item da lista.
Durante o treino lembra do homem que matou (matou mesmo?).
Sente falta de ar, tontura, vergonha, culpa, vontade de cagar, frio, calor, angústia.
Dá um chute na porta do banheiro, que quebra.
Resolve sair de casa outra vez, andar pela rua. Ainda não é meio-dia.
Lembra um poema de Drummond:


"Tolera-se o minuto. A hora suporta-se.
Admite-se o dia, o mês, o ano, a vida,
a possível eternidade.
Mas o segundo é implacável."


A rua é implacável. Muita luz, carro, gente, barulho.
Lembra-se da conta que não pagou naquele dia. Sente-se extremamente feliz por ter encontrado uma atividade que anestesie a espera.
Volta correndo ao apartamento, perde uns bons minutos procurando o boleto e vai até o banco.
Fechado.
"Hoje é feriado."
Tenta pagar no caixa eletrônico mas não consegue, a conta está vencida. Só amanhã.
Segue andando sem rumo e vai parar outra vez na fatídica rua. Por sorte não encontra Luiza. Caminha a passos medidos, como alguém que teme acordar um vigia.
Não sabe ao certo a intenção de Lígia. Sabe que ela está para chegar e decide voltar à casa. No caminho, para num bar e pede uma cerveja. Quando o garçom abre a garrafa, lembra que está sem dinheiro. Faz uma cena, finge que esqueceu a carteira, pede desculpas ao garçom e sai envergonhado dali. "Hoje não é um bom dia pra encontrar a Lígia."
Pensa em desmarcar. Convence a si mesmo de que é a melhor escolha. Essa certeza o conforta.
Mas logo muda de ideia e ofende a si mesmo. "Covarde! Sempre fugindo!"
Já em casa olha fixo pro interfone. Tem medo de desviar o foco e o interfone tocar justo nessa hora. Sabe que morrerá se isso acontecer. Então permanece estático, suando frio, encarando o aparelho. Sente sede. Calcula que seja por volta das três da tarde. Faz um movimento arriscadíssimo: levanta num pulo e vai até a torneira beber água. De olhos fechados, numa esperança de burlar a regra caso o interfone toque. "O combinado é que eu não poderia estar olhando pra outro lugar quando ele tocasse. De olhos fechados eu ainda tô, tecnicamente, dentro do jogo!" 
Encontra a pia, tateando, e bebe água com pressa. Volta correndo pro quarto/sala. Senta-se no chão novamente e abre os olhos. Erra a mira, mas tudo bem, o interfone não toca. "Essa foi por pouco!"
Com a visão periférica enxerga o celular no chão. Estica-se pra pegá-lo, os olhos sempre no interfone.
Arrisca outra vez e olha a hora no aparelho: 13:07.
Tem ainda duas horas e cinquenta e três minutos pela frente. Pede um tempo no jogo. Concede esse tempo a si mesmo. Respira enfim.
Sente-se exausto. Decide cochilar, mas antes programa o despertador.
Acorda assustado de dez em dez minutos. Desiste de dormir. Levanta e começa a andar pela casa, o ombro encostado na parede fria, cobrindo todo o perímetro do apartamento de 27m². A textura fria da parede é agradável, acalma-o um pouco. Perde a noção do tempo enquanto segue andando em círculo, até que o despertador toca e ele quase infarta de susto. Percebe que está à beira de um ataque de nervos, como diria um personagem dum desenho animado da sua infância.
Percebe que vai enlouquecer ali dentro. Desce pra esperar Lígia na portaria. Aproveita pra jogar conversa fora com Emanuel, o porteiro.

Quatro horas e ela não chegou. Vai até a calçada, olha pros lados, forja naturalidade, se apoia num poste e percebe o quão ridícula é a cena. Volta pra dentro do prédio e já não tem mais assunto com Emanuel. O silêncio pesa. Cogita voltar ao apartamento. Senta-se numa mureta, atrás da portaria. Deseja ser uma pessoa normal. Lamenta profundamente por não ser.
16:07 e a espera é insustentável. Resolve voltar ao apartamento, talvez ela tenha mandado alguma mensagem, é claro!
Mas não. Nenhuma mensagem. Acende um incenso e resolve descer outra vez. No corredor ouve o interfone tocar. O coração vem à boca. Volta correndo e quando entra no apartamento percebe que não é o seu. Desiste. Ela não vem mais. Senta-se no chão outra vez, fingindo olhar pro teto. Prende a respiração sem perceber, à espera do som que enfim vai libertá-lo. Apaga.

Acorda com uma batida discreta na porta. A batida é tão delicada que o assusta.
Levanta nervoso e olha no olho mágico.
É ela.
"Quem é?" — dissimula enquanto arruma o cabelo (disfarça a calvície) e confere o cheiro do sovaco.

     Sou eu.

"É ela!"
Abre a porta de maneira espontaneamente forjada.

     Oi! Entra!

Ela permanece parada. Tem um olhar aflito.

     Fez a barba. (...) Vamos descer? Eu vou ficar pouco tempo. Só passei pra falar com você. Desculpa.
     Não precisa pedir desculpa! Tá bom, a gente desce, mas eu arrumei a casa, fiz até comida pra gente...
     Vamos? — Ela insiste, impaciente.
     Tá... Deixa só eu colocar alguma coisa no pé.

Vão até a padaria do café horrível, adoçado.

     Eu tô sem dinheiro.
     Tudo bem, eu tenho, pode pedir.
     Eu não quero nada, só quero você. Senti tanto a sua falta.

Ela sorri de forma nervosa, olhando pra baixo e dispara: Eu tô grávida.

     Oi?
     Eu tô grávida. 
     De mim?

O sorriso desaparece.

     Porra, é claro que é de você!
     Desculpa, foi uma pergunta automática... E por que você só me disse isso agora?! Já faz tanto tempo... — Hermes percebe a barriga evidente. Estava ali o tempo todo? — Você tá com o que?, seis meses? 
     Vinte e oito semanas.
     Caralho.
     Pois é. Eu não queria te falar. Minha ideia era tirar, mas o tempo foi passando e eu fui... me acovardando.
     E seus pais? Lidaram bem?
     No começo não, né, principalmente meu pai. Mas agora tão me apoiando.
     Não sei o que dizer. O que você sugere?
     Eu vim até aqui justamente perguntar o que você sugere.
     Bom, eu quero estar com você. Você sabe que eu sempre quis isso!
     Sei. Você queria e eu não.
     Sim.
     Como você tá? Voltou pra terapia? Tem bebido muito? Tá dando aula aqui em São Paulo?
     Minha vida tá um pântano. Minhas respostas são as piores possíveis, mas agora com essa notícia tudo muda. Eu vou voltar pra terapia, vou correr atrás de aula, volto a trabalhar em sub-emprego se for necessário. 
     E a bebida?
     Que que tem?
     Você vai parar? Eu não vim aqui te obrigar a casar, nem pedir pensão. Você sabe que minha família jamais me negaria ajuda. Eu só quero que você esteja presente.
     É o que eu mais quero! Você não tá entendendo. Na verdade nem eu to entendendo ainda... é uma notícia forte demais. E não é por nada, mas a gente tava junto, tava tudo se ajeitando, até que você resolveu ir embora...
     Você vai largar a bebida?
     Essa pergunta é complicada, você sabe...
     Essa é a única pergunta que me interessa. Eu não preciso de um marido, nem de um cara que me dê uma mixaria por mês. Eu quero um pai pra minha filha. Um pai sóbrio.
     Filha? É menina?
     Sim. Como você sempre disse que queria.

Os dois se abraçam e choram como crianças.

     Eu vou ser tudo isso. Eu quero ser seu marido, eu quero bancar todas as despesas com ela, eu vou ser um pai presente, você vai ver!
     Você vai largar a bebida?
     Vou.
     Promete?
     Prometo.

Lígia parece acreditar. Sorri plenamente pela primeira vez no dia.

     A propósito, você já escolheu um nome? — ele pergunta.
     Sim. O nome que você sempre me dizia: Luiza. Não é que é um nome bonito mesmo?



IX


Foram juntos à estação Sumaré. Hermes fez questão de acompanhá-la. Dali ela pegaria um ônibus e encontraria o pai. Seguiriam viagem. Ao se despedir, Hermes tentou um beijo na boca; Lígia, confusa, recusou. Pediu desculpa.
"Não precisa se desculpar."
No caminho de volta pra casa mal se mexeu. Estava imerso na própria fantasia. Eufórico, não sabia ao certo se sentia alegria ou medo. Então sorriu e chorou. Sentiu a lágrima escorrer pela cara limpa e chegar à boca. Limpou com o dorso da mão direita, viu-se no reflexo da janela e disse baixinho "Eu vou ser pai."
Sabia que agora teria de ajeitar sua vida. E era bom começar já. Fez toda a trilha sonora naquela tarde. Deu início às composições encomendadas há meses por uma amiga cantora de Belo Horizonte. Marcou exame de sangue e temeu em silêncio a hipótese de ter contaminado Lígia e a criança. Mas marcou. Enfim.
Teve a semana mais produtiva dos últimos anos. Finalizou pendências de todo o tipo, correu atrás de terapeuta, psiquiatra, voltou pro boxe, pra literatura, se alimentou bem, passou a fazer a barba dia sim, dia não, então sentiu que merecia uma bebedeira.
Surgiu o embate.
"Lígia não vai saber e a criança ainda não nasceu."
"Mas eu prometi a ela."
"E se esse filho não for meu?"
Pediu dinheiro ao tio. Odiava aquilo, no entanto era necessário. Mixaria. Separou a quantia suficiente pra comer durante a semana  — polenta, arroz e ovo — e foi ao bar de sempre.
Estava vazio. Provavelmente por ser terça. Ou quarta?
Rafael estava ali, no mesmo banco, com o mesmo jornal enorme e a mesma lata de cerveja.
Hermes colou no balcão, ao lado dele, e pediu uma cerveja e um Cynar. Rafael imediatamente baixou o jornal e contemplou Hermes com seus olhos opacos.

     O bom filho à casa torna.
     Eu vou ser pai.
     Opa! Se a notícia é boa, um brinde a ela; se não, um gole pra acalmar.
     A notícia é boa pra caralho! Um brinde a isso!
     Sabe que eu aderi à sua cerveja de alcachofra, né?

Hermes nota um copo de Cynar ao lado da lata.

     Gostei de ver! A propósito, por que você bebe cerveja em lata no bar?
     Costume. Não gosto de cerveja de garrafa.
     Eu falo que ele é doido — diz o homem atrás do balcão, rindo. — Um brinde pro seu filho. Essa é por conta da casa.
     Que isso? Whisky?
     Cavalo dado não se olha os dentes, rapaz.

Hermes sente o cheiro. É whisky. Whisky de qualidade.
Os três brindam.
Hermes vai ser pai.
Seguem bebendo em silêncio.
Há um bêbado sozinho no balcão. Imóvel. Os olhos absortos, derrotados. Uma dose de pinga intacta.
É o Carequinha, Hermes reconhece da época em que morou em São Paulo pela primeira vez.
Na ocasião, Carequinha era um homem comum, baixinho, um tanto cômico. Pedia uma dose de 51 e bebia fazendo careta, os olhos se retorciam dentro do crânio calvo. Tinha a pele rosada e estava sempre de camisa social muito bem passada.
Agora é um outro Carequinha que se senta ali, anos depois.
O homem ali sentado não tem cor. Parece ter tido seu sangue sugado. Os olhos são agora amarelos, com enormes bolsas vermelhas pendendo flácidas. A camisa social está aberta e amassada. Não há nenhuma vitalidade nesse homem, imóvel há quase uma hora.
Hermes chama o garçom discretamente.

     Opa, você trabalha aqui há quanto tempo?

O garçom estranha a pergunta.

     Algum tempo já, por quê?
     Esse cara vem sempre aqui?
     Tá interessado? Não sabia que você jogava nesse time.

Hermes finge rir.

     Não, é que esse cara frequentava esse bar há uns anos, quando eu vinha almoçar aqui no intervalo do trabalho, mas ele era bem diferente... Confesso que tô um pouco assustado.

O garçom não precisa olhar pra saber sobre quem Hermes fala.

     Ih, esse aí é figurinha conhecida aqui já. Vem todo dia, nunca falta. Pede uma branquinha e fica parado sem falar com ninguém, desse jeito mesmo que você tá vendo. Depois de uma ou duas horas ele dá um gole, faz cara feia, se baba inteiro e fica mais um tempo parado. Depois mata a dose, deixa o dinheiro e vai embora. Isso aí pra mim é alguma mulher que ferrou com a vida dele. A gente dá risada mas eu tenho é pena dele, se você quer saber.
     Eu também. Antigamente eu só dava risada mesmo, mas agora fiquei até deprimido de olhar.
     É... Essas coisas acontecem, ninguém sabe o dia de amanhã. Por isso eu digo que mulher é tudo igual. Não sobra uma.
     Mas você nem sabe se ele tá assim por causa de mulher...
     Eu aposto com você.
     A gente nunca vai saber.
     Eu aposto o que você quiser.
     Eu não aposto nada — interveio Rafael —, só sei que nesse exato momento quem tá fodido sou eu. E é por causa de mulher, sim. E foda-se o problema desses bêbados fracassados que se entregam pra pinga assim. Minha mulher me expulsou de casa. Disse que eu tinha vinte e quatro horas pra sumir dali. Ela só esqueceu que quem paga a porra das contas sou eu. Mas foda-se também. Eu já tô num estágio que eu pagaria o dobro só pra nunca mais ver a cara dela na minha frente. Vou sair de lá e parar de pagar o aluguel. Vamo vê se ela arruma um macho pra sustentar ela. Ou se finalmente vai arranjar a porra dum trabalho.

Hermes se espanta porque é a primeira vez que ouve Rafael falar sobre si. É a primeira vez que ouve Rafael falar alto. Mais de duas frases consecutivas. É a primeira vez que distingue cor em seus olhos.
O garçom se vira de costas e joga um hambúrguer na chapa. Depois cebola e ovos. Por fim o queijo.
O cheiro é delicioso mas Hermes não pode se dar ao luxo.

     Ei — Rafael diz baixinho por detrás do jornal.

Hermes olha automaticamente.
Ele mostra um pino. Cocaína. Hermes não cheira há quatro anos. Já está meio bêbado pela cerveja, cynar e whisky. Vai ser pai. Aceita o pó.

     Vai com calma que essa é forte — adverte Rafael.

Hermes vai até o banheiro. Despeja o pó na lateral da mão. Mete o nariz. Na volta, para na jukebox e coloca Facção Central. Rafael levanta desesperado e tira o som do aparelho.

     Cê tá louco?! Isso não é música pra ouvir aqui!

Rafael pede o que restou do pó.
Hermes devolve o pino quase cheio.

     Ué, não cheirou?
     Cheirei. Mas eu sou fraco pra pó. E faz tempo que não cheiro. E eu acho melhor não cheirar muito porque eu sempre fico mal quando cheiro, normalmente as pessoas tem o pico de euforia e depois vem a queda, eu não, parece que já vou direto pro fundo do abismo, sempre acabo me arrependendo, fazia quatro anos que eu não cheirava, daqui a pouco meu pé começa a se mexer sozinho e...

Hermes se vira pra voltar ao balcão e dá de cara com Carequinha. Poucos centímetros os separam. Hermes olha frontalmente para aqueles olhos. A cena é terrível, insustentável. O homem parece um cadáver em decomposição. Tem alguns machucados pequenos espalhados pela testa, supercílio. Alguns raros fios se enrolam muito compridos no topo da cabeça calva. O rosto derreteu. Hermes sente medo, pena, nojo. Carequinha não se mexe, não pisca, não fala nada. Segue olhando na direção de Hermes, esperando que ele desobstrua o caminho do banheiro.
Os pés de Hermes adquirem vida própria, refletem o desespero causado pela cocaína, levam-no até o caixa. Hermes agitado tenta chamar a atenção do garçom, que abastece o freezer com algumas garrafas. A angústia pesa demais, abre um rombo no peito. Hermes deixa o dinheiro ali, dá um tapa de mão cheia no balcão — não sente nada — e sai apressado do bar. A temperatura é bem mais baixa lá fora. A avenida está cheia. Muitos faróis, pontos luminosos. Lígia grávida. O rosto do Carequinha. Como é possível? Solidão aguda na cidade grande. O peito dói. Maldito pó.
Hermes sai correndo, não vê a hora de chegar em casa e tomar um banho quente.
Deseja pedir perdão, só não sabe a quem.
Ao chegar em frente à porta de casa, percebe que perdeu as chaves.
Não pode encarar o tio nesse estado. De jeito nenhum.
Então toma a atitude mais sábia: arromba a porta de casa com a sola do angustiado pé trêmulo.

Acorda numa ressaca terrível.
Ressaca de cocaína, você sabe como é?
Esqueceu de tomar o antidepressivo no dia anterior. Encheu a cara, cheirou pó.
Os nervos estão em frangalhos. Não consegue levantar, se mexer. "Eu vou ser pai."
Um peso estrondoso o sufoca, deita em posição fetal e deseja morrer. Lembra da porta arrombada. O chão todo sujo com pedaços da porta e da parede. Um rombo terrível no estômago.
"Eu tava indo tão bem..."
Sente-se patético. O interfone toca. Não tem forças. Fecha os olhos na esperança de sumir.
O elevador para no seu andar, a porta se abre bruscamente e passos duros ecoam e se aproximam pelo corredor. São os passos do tio. Três batidas furiosas na porta arrombada.
"Puta que pariu, que merda é essa..."
Sente o ódio atravessar a parede. O tio bate ainda mais forte na porta, fechada de modo improvisado — um pequeno móvel segurando.
"Abre essa merda, Hermes!"
O barulho é terrível, Hermes pressiona o travesseiro contra os ouvidos, mas não adianta. Fecha os olhos com força, tenta chorar mas não consegue. Deseja berrar mas não tem força. O tio segue batendo e gritando com sua voz áspera de fumante.
"Eu não tô passando bem, tio. Depois a gente se fala, eu vou pagar pela porta."
"Tá de ressaca, né, filho da puta. Vai pagar como a porra da porta se sou eu que tô te sustentando faz dois meses já? Cadê essas porra de aluno que toda hora você fala que surgiu mas que eu nunca vejo a grana no fim do mês?!"
"Eu vou pagar, eu juro. Me desculpa."
Apesar de tudo, o tio compreende. Ele foi também um alcoólatra. A vida toda. Se afundou ainda na cocaína, depois no crack. Certo dia, Hermes sempre lembra, foram juntos ao jogo do Santos e logo após a partida o tio subiu o morro de carro pra comprar pedra, julgando que o sobrinho não tinha ainda capacidade de entender aquilo. Mas Hermes entendeu exatamente o que era. E viu o traficante entregar as pedras pelo vidro do carro. E nessa hora o tio fez uma careta pra distraí-lo e fingiu roubar seu nariz. As pedras de crack se pareciam com grão de bico.
O tio dá meia-volta e some dali.
Hermes alcança com dificuldade a garrafa d'água ao lado da cama. Toma uma boa golada, nota que está tremendo, encolhe-se ao ponto de se tornar um zigoto e tenta em vão dormir mais um pouco.
Passa o dia assim, imóvel. Inútil.


Dois dias depois voltou ao bar para procurar as chaves de casa. Não encontrou.
O garçom disse que ele havia deixado mais dinheiro do que deveria, então fuçou no caixa e entregou cerca de cinco reais a Hermes, que agradeceu meio tímido.

     Quando o Rafael aparecer por aqui, entrega esse papel pra ele, é meu número. Fala que é importante.
     Pode deixar.

Hermes teve uma ótima ideia.
Mas, antes de colocar a ideia em prática, precisa encarar o tio.
No espelho do elevador nota que está mais calvo do que nunca.
"Eu tô me transformando no Carequinha."



X


A porta da casa do tio está aberta. Hermes se aproxima nervoso. O tio está sentado no sofá, atrás de sua barriga portuguesa, vendo TV.
"Fala, filho da puta."
A esposa do tio vem cumprimentar Hermes com um sorriso no rosto e uma placa colada na testa com os dizeres "Que merda você foi fazer, hein?"

     Eu vim aqui falar sobre a porta e sobre uma ideia que eu tive pra te recompensar pelo que você tem feito por mim.
     Fala.
     Eu mesmo vou consertar a porta e a parede. Tô pra receber de um aluno que ficou umas semanas sem fazer aula porque tava todo enrolado no trabalho, enfim... E sobre a questão da grana, eu tô pensando em sublocar o apartamento...
     Cê tá louco!? Sublocar aquele cubículo?
     Eu tenho um amigo que tá se separando da mulher e tá procurando lugar pra ficar. O cara tem grana, vai pagar direitinho, tenho certeza.
     A questão não é essa... Como você vai colocar mais uma pessoa ali dentro?
     Ué, não tem casais que moram em quitinete?
     Ah, o cara é seu marido?
     Não, é meu amigo, mas ele trabalha o dia todo — Hermes supõe — e só vai vir pra casa à noite. A gente improvisa uma divisória e fica tudo certo, eu não preciso de muito espaço mesmo. E aí eu te repasso o dinheiro que ele me der... Ou ele pode tratar direto com você.
     Se o cara tem grana, por que ele vai querer dividir um quitinete? Ele vai pegar um apartamento só pra ele...

Hermes não tinha pensado nisso. Sequer falou com Rafael sobre a ideia. Tem essa mania de contar com o ovo no cu da galinha.

     Ele me disse que não tem ninguém pra ser fiador dele, e tá meio com pressa pra se mudar — Hermes improvisa —, e é temporário, um mês ou dois, no máximo.
     E que amigo é esse? É cachaceiro também?
     Não. Não que eu saiba...

Após argumentar durante meia hora, o tio aceita. Só falta aguardar o contato. E convencer Rafael a se mudar pra lá.

Hermes arrumou a porta, munido das habilidades que adquiriu em seu primeiro emprego, numa marcenaria.
Falou com Lígia em duas ou três ocasiões. Conversas curtas. Aparentemente ela não tem intenção de reatar. Tudo bem. Hermes também não tem, mas anda se sentindo muito sozinho e têm depositado em Lígia certos sentimentos.
Nunca mais foi ao bar, nunca mais viu Luiza.
O curta-metragem ficou pronto. O resultado ficou aquém do esperado, mas Hermes sentiu orgulho da trilha que criou. Sentiu orgulho também em ver seu nome nos créditos, embora tenha usado "Lacerda", seu sobrenome, e não "Poliedo", seu nome de trabalho. Sem contar que "Hermes Lacerda" é nome de velho. E nada deve aos Lacerda, seus antepassados. Ao passo que "Hermes Poliedo" tem toda uma carga mítica e pessoal... Enfim.
Apesar da trilha, anda afastado da música — seu principal ofício. Dá algumas aulas pra sobreviver, mas há tempos não compõe ou cria arranjos.
Em compensação, anda lendo e escrevendo muito. É normal. Sempre foi cíclico. E o ciclo da literatura é sempre mais solitário e melancólico. Com o passar dos anos aprendeu a lidar.
Então percebe que estagnou novamente. Chegou a São Paulo cheio de novos conhecimentos e muito mais maturidade que da última vez em que esteve aqui. Imaginou que se inseriria logo na cena musical e produziria grandes obras e tocaria com grandes músicos e daria muitas aulas... No entanto seis meses já se passaram e nada aconteceu. Vive com cerca de meio salário mínimo no apartamento cedido pelo tio, mal sai de casa, anda tendo muitas crises de depressão e ansiedade, está mais brocha do que nunca, não tem mais paciência pros amigos — aliás, ninguém sabe que ele está em São Paulo novamente.
Decide sair dali, mudar de ares, voltar pra estrada. Talvez Minas Gerais, outra vez. Sabe que as respostas não estão lá fora. Mas sabe também que a estrada é o único lugar onde se sente bem. A falta de dinheiro não é problema. Em viagens passadas já dormiu em banco de praia, garagem de prédio, calçada, posto de gasolina, borracharia... Sabe se virar com pouco. E gosta disso.
Sente-se eufórico com a decisão recém-tomada.
Decide passar no bar e perguntar por Rafael uma última vez.
O garçom arregala os olhos quando Hermes entra. Rafael não está.
Hermes vai até o balcão com um sorriso no rosto, deseja apertar a mão do garçom que até hoje não sabe o nome porque não se importa com nomes.
Mas o garçom é frio. Mal olha na cara.
Hermes se afeta um pouco com aquilo mas age naturalmente. Deve estar num dia ruim.

     Opa, como cê tá? Se liga, o Rafael não veio mais aqui?

O garçom ignora sem pudor.
Carequinha está ali, na mesma posição. A mesma dose frente ao corpo.
Hermes sobe o tom de voz. O garçom responde imediatamente e com estupidez.

     Olha, eu não sou secretária de ninguém. Não sei de Rafael nenhum e se você puder me fazer o favor de ir embora... — diz enquanto se vira pra chapa — ... porque aqui a gente não serve assassino, não.
     Como é que é?! — Hermes responde sem pensar e com forte vertigem.

O homem segue manobrando a chapa. O chiado da fritura, a fumaça da carne, espátulas ágeis raspando a superfície. A cabeça gira, os pensamentos se desconectam. Volta pra casa decidido a cair fora dali. 
Quando chega na esquina diminui o passo e confere, atento, se está sendo seguido. Aparentemente não. Aperta o passo outra vez e tropeça num buraco da calçada. Ao cair no chão esfola as mãos e os joelhos. Dói pra caralho mas ele segue. Não consegue correr. Uma viatura vem na direção oposta. O estômago se contrai, a respiração corta na hora, o cu pisca. O joelho lateja. Mas a viatura passa reto e para no restaurante decadente na quadra seguinte.
Hermes coloca suas coisas numa mochila. Escolhe três livros sem pensar muito. Sobe até a casa do tio e avisa que precisa fazer uma viagem, que deixou algumas coisas no apartamento e que o tio pode tirar e alugar o imóvel. Pede dinheiro emprestado, diz que é urgente. O tio, confuso, diz que não tem. Hermes insiste, diz que qualquer cinquenta reais já ajuda. O tio, desconfiado e pão duro, mas preocupado, estende uma de cinquenta e uma de vinte. Hermes sente alívio e agradece. Já do elevador diz que em breve telefona; para o tio não se preocupar.
     "Ainda bem que eu não tenho mais conta em banco, nem nada no meu nome, senão eu já tava fodido."
Com essa constatação ganha a rua, em direção ao terminal rodoviário Tietê.



XI


Faz a escolha usual: Minas Gerais.
Lavras. Outra vez. Território ameno, já conhecido.
Vem trabalhando em silêncio num romance distópico. Ideia antiga. E está disposto a trabalhar nela.
Sem data estipulada, a história se passará numa época em que a humanidade excederá a marca dos 20 bilhões. Toda superfície terrestre está povoada.
Em certo ponto da história, um líder mundial implantará uma política de controle populacional baseado em dois tipos de gente: servidores e intelectuais. A intenção é reduzir a população em 35%. Haverá na história um El Dorado, único lugar ainda não povoado da Terra. Aventureiros passarão a história tentando encontrar.
Hermes lembra de Fando & Lis: "A Tar / a Tar / es imposible llegar".
Segue aflito dentro do metrô. Falta-lhe ar. Os pensamentos se agitam e se chocam. Sente-se muito fraco mas não há lugar vago. Pensa em berrar no meio do vagão lotado. Pensa em dizer algo completamente sem sentido, como "Eu assistia Kenan e Kel quando era criança", ou "Uma vez eu tropecei e ralei o joelho", ou ainda "Normalmente eu não coloco sal no tomate".
Lembra do velho.
Percebe que matou um homem. Com as próprias mãos.
Vê seu reflexo no vidro do metrô. Enxerga dos pés aos ombros. Não consegue ver o rosto. Lembra que está com barba novamente porque o ar condicionado do metrô refresca apenas metade da sua cara.
Uma mulher o encara sem cerimônia. Frontalmente. Encara-o com tanta clareza que torna-se óbvia sua culpa. Não cabe uma defesa ao réu, a sentença já foi dada.
Ele retribui com frieza o olhar da mulher, que não se abala.
Demora um pouco pra achar o guichê que faz São Paulo-Lavras.
O ônibus sai às 23:45. São agora 15:27.
Hermes pega seu caderno, senta-se e aceita esperar.



tenho tudo que sempre quis agora:
folha em branco
tempo
um banco de rodoviária
passagem no bolso
lápis
e a tela pálida do amanhã.

no entanto sigo tonto
tenso 
e
triste.


Vomita mais dois ou três poemas, sempre atento às mais diversas criaturas que circulam por ali. "Eu tô na rodoviária da maior cidade da América do Sul."
À sua frente encontra-se um jovem casal nipônico. A moça não faz cerimônia — dorme no banco da rodoviária com a intimidade de quem dorme na própria casa e "talvez ela se sinta mais confortável aqui do que no Japão."
Tanta gente chegando e partindo. Ininterruptamente.
A estrada é a morada da esperança, conclui.
Sente tédio e levanta. Circula por ali atrás de um copo d'água. Cruza com a delegação esportiva de algum país escandinavo, mulheres loiras e enormes em uniformes de atleta falando num idioma indecifrável.
Uma família nordestina carregando enormes sacolas espera ali também. Parecem ter trazido toda a parafernália acumulada ao longo de anos. Os pais, cansados, sentam e esperam; os dois filhos, magros e agitados, correm e brincam de pegar e comem fandangos.
Hermes encontra um local silencioso e se ajeita, ensaiando prosseguir seu romance distópico.
Em algum momento da história, a lei de controle populacional já anunciada, grupos de militantes farão protestos contra o que chamarão de genocídio. Haverá um protesto organizado por um forte grupo de esquerda exigindo diálogo com o líder político da ocasião, que agora mesmo discursa em praça pública. O político cederá o microfone à líder do movimento, desejando ouvir suas ideias e propostas. Surpresa, a militante pegará o microfone mas não dirá nada. Não estava preparada para expor ideias. Havia ensaiado apenas a primeira parte do protesto — fazer barulho. Uma microfonia muito aguda incomodará quase tanto quanto o silêncio da jovem, que descerá envergonhada do palanque.
Expedições seguirão procurando El Dorado.
Haverá uma prova, Hermes decide, como um vestibular. As pessoas poderão escolher a qual função desejam prestar, embora recebam uma sugestão prévia sobre qual grupo pertencem naturalmente. A população será formada por intelectuais (15%) e servidores (85%). O discurso será pautado no pensamento grego clássico, que dividia os homens em talentosos e escravos. O ideal de igualdade surgido na revolução francesa é muito bonito, mas não se sustenta na prática, é o que dirá o ministro da propaganda. Hermes decide que o protagonista, embora seja um intelectual, prestará a prova dos trabalhadores. E rirá dos universitários que prestarão sem êxito a prova dos intelectuais.
Sobre o oceano será construído um novo continente. Um enorme continente artificial, apresentado ao público como a solução para o problema de superlotação da Terra. Apenas os Selecionados poderão habitar o novo continente — maior que a Oceania. E os critérios serão tão rígidos que parte da população se revoltará e protestará, alegando elitismo e nepotismo e despotismo... 
Fora os servidores, apenas homens ricos e influentes poderão habitar esse continente de terra infértil e forte poder aquisitivo.
Hermes tem muitos trechos em mente mas não sabe ainda como costurar e conduzir a história. Acredita que conseguirá isso em MG.
O relógio marca 16:47.
"Sou uma pessoa a cada cidade", anota numa folha.
Depois emenda: "e na estrada posso ser quem eu quiser."



XII


Engole três diazepam com cynar e cerveja. Só assim consegue encarar a estrada à noite.
O atendente do buteco é sírio e fica muito contente ao servir cynar a Hermes, que se aproveita da situação para pedir um chorinho. "Lá no meu país a gente faz bebida muito parecida cynar. Um monte de erva fermentada. O gosto muito parecido".
Mas o sírio desaprova quando Hermes mistura cerveja e cynar, coloração surpreendente.
O ônibus está para sair, Hermes paga a conta com uns trocados que ainda lhe restam, vai mijar, confere mais uma vez se a passagem está no bolso posterior direito, prende a respiração ao mijar no banheiro imundo e sem porta.
Há um certo atrito com o motorista, que protesta ao receber o RG maltrapilho de Hermes. Quase não o deixa embarcar mas diz que "dessa vez passa".
Hermes caminha meio torto e encontra sua poltrona: 36, corredor.

     Pode escolher uma das poltronas em amarelo — teria dito a moça do guichê, mostrando um monitor.
     36.
     A 36 é corredor, moço.
     Eu sei. 36.
     Eita, dois anos que eu trabalho aqui e nunca vi ninguém preferir o corredor!
     É que eu sou fã de maratona.

A moça não entende a piada e nubla a expressão ao preencher a passagem com os dados presentes no RG surrado.
Os remédios começam a fazer efeito. Hermes sente-se abraçado pelo álcool, ansiolíticos, e quase não nota que ao seu lado senta uma ruiva sensacional.

     Oi, me dá uma licencinha, por favor!
     Claro.

Num repente perde o sono. Decide ficar atento e preparado para o mínimo sinal de investida por parte da ruiva, que coloca fones no ouvido e não parece muito interessada nele.
O sono vem sem pedir permissão, Hermes reluta mas acaba cedendo e só acorda num trecho escuro da estrada com a ruiva pedindo licença pra ir ao banheiro.
Hermes fica atento ao tempo que ela leva. Tempo demais pra uma mijada. "Talvez tenha ido se masturbar."
A ideia excita e desperta Hermes, que decide puxar algum assunto assim que a ruiva voltar aliviada do banheiro.
Na volta, Hermes já está atento e dá passagem antes mesmo que ela peça. Respira bem fundo quando o corpo dela passa rente a seu rosto, e o escuro do ônibus permite que Hermes feche os olhos tentando sentir o cheiro da buceta. A ruiva sorri, agradece.

     Você é muito simpática. Mineira?
     Ai, brigada! Eu sou de São Paulo mas faço faculdade em Lavras, e você?
     Eu? Não, eu não sou simpático.
     Ah, que besta! Claro que é! Mas eu quis dizer, você é mineiro? Pelo sotaque não parece!
     Como é meu sotaque?
     Você parece ser do Sul.
     Já morei lá, mas sou cidadão do mundo. Ou pelo menos gosto de pensar que sou.

E o papo flui surpreendentemente bem. Hermes escolhe os pontos mais interessantes de sua biografia. Sabe o que desperta interesse nas pessoas. Frisa seu lado nômade, aventureiro. A ruiva parece encantada. "Corajoso", ela diz num dado momento.
A ruiva baixa ainda mais o tom de voz ao dizer que notou cheiro de bebida no hálito de Hermes, "mas isso não é uma coisa ruim!", e saca da mochila uma garrafinha com whisky. Daquelas bem classudas mesmo. Fininhas, em formato côncavo.
Seria justo dizer que beberam com certo pudor, esse pudor de primeiro encontro, mas logo acabou-se o whisky.
"Por sorte o ônibus vai parar daqui a pouco", ela diz, habituada a esse trajeto, "a gente compra mais na parada."
Hermes explica sua situação financeira, temendo desanimá-la, mas para sua surpresa ela parece ainda mais eufórica.
"Cara, você é muito corajoso! A propósito, você já tem lugar pra dormir lá?"
"Sabe que eu ainda nem tinha pensado nisso?"
"Nem precisa mais pensar. Você vai pra minha casa. Eu faço questão!"
De humor forçadamente controlado, Hermes esboça um sorriso e agradece por educação. Quer demonstrar efusividade mas não consegue.
"Tá vendo, agora o ônibus vai parar! Vamos descer que esse whisky me abriu o apetite. E não é de comida que eu tô falando."
"Eu matei um homem", Hermes pensa.
Ou diz?
O whisky reativou o efeito dos ansiolíticos, Hermes sente-se confuso e mole. Torce para que não tenha deixado escapar seu segredo. A julgar pelo semblante tranquilo da ruiva, ele nada disse.
Aliás, ela está corada e muito vivaz. Agora, sob essa luz elétrica que ofusca em vez de revelar, que oprime e confunde, a ruiva já não parece tão bonita. Na lanchonete beira-de-estrada, puxa Hermes pela mão na direção do setor de bebidas. Ele não quer beber, tampouco fazer desfeita e ser estraga-prazeres.
Compram uma garrafa de cachaça mineira. Ela paga, recusando umas notas amassadas que lhe são oferecidas por uma mão fraca e trêmula.
Hermes concentra-se. Não se sente nada bem e o mal-estar aumenta ao não poder ser demonstrado.
Vai ao banheiro, lava o rosto, a nunca e sente-se um pouco melhor. Respira fundo, lentamente, de olhos fechados, encostado na pia, de costas pro espelho.
Um homem lava o sovaco na pia ao lado. Alguém peida alto enquanto caga uma merda fétida, com forte odor de carne de panela. Hermes sai dali.
Não encontra a ruiva, supõe que ela já esteja no ônibus. Respira o ar fresco da madrugada no meio de alguma estrada escura, arrodeada de montanhas e árvores.
A ruiva já está sentada e parece ansiosa pela chegada de Hermes.

     Tava te esperando pra abrir a garrafa!

Começam a beber com o ônibus ainda parado. Uma velha no banco ao lado resmunga qualquer coisa. A ruiva ri um riso de criança arteira e afunda a cabeça entre os ombros enquanto passa a garrafa pra ele, que bebe um longo gole.
Passam a garrafa durante alguns minutos, em silêncio.
O ônibus volta à estrada e, sem perceber, Hermes cai no sono.

Lígia com um barrigão enorme diz que quer abortar. Diz em voz alta. Grita mesmo. Hermes tenta acalmá-la, mas não há jeito, diz que já comprou o Cytotec. Há ódio nos olhos de Lígia, que só olha pro chão e anda de um lado pro outro, aflita.
Sob o chuveiro ela toma os comprimidos. Hermes observa.
Um médico de jaleco faz massagem na barriga de Lígia sob o chuveiro e recomenda repouso absoluto.
Lígia não acata as indicações. Diz que quer ir embora imediatamente.
Estão num quartinho escuro de hotel à beira da estrada. Hermes acaba cedendo e acompanha Lígia até a rodoviária. A passagem é pras 21:40, são agora 20:50. Lígia quer jogar fliperama enquanto espera. Quer jogar um jogo de tiro que custa três moedas de um real. Estão num shopping muito colorido e iluminado. Acabam jogando um jogo de luta, que Hermes deixa Lígia vencer. Ele olha em seu relógio de prata e nota que já são 21:42. Lígia arma um escândalo, sempre olhando pro chão, exige que a passagem seja trocada, diz que só sai dali dentro de um ônibus em direção à sua casa.
A ruiva acorda Hermes, que se assusta ao notar dia claro. Ainda não consegue separar sonho e realidade e isso deve transparecer porque a ruiva pergunta agora se tá tudo bem.
Olhando para os lados, tentando assimilar a realidade, balança a cabeça afirmativamente. Todos os passageiros se agitam nas cadeiras, alguns já se levantam.
"Chegamos!", diz a ruiva, estranhamente bela na luz natural da manhã.
Ele simula um sorriso amarelo e pergunta pela garrafa. Ela sorri com malícia e estende a garrafa pela metade. O gole é firme e duradouro. Modo encontrado para tentar fugir da sensação horrível deixada pelo sonho.
Em silêncio, descem na rodoviária de Lavras.
A ruiva mora perto dali, divide o apartamento com a irmã, que dorme quando eles chegam. A ruiva vai direto pro seu quarto e Hermes fica plantado no meio da sala se sentindo meio idiota. Não sabe se cruza os braços, põe a mão no bolso, pra trás do corpo... Está ainda muito afetado pelo sonho. Não consegue esquecer a imagem de Lígia aflita andando como barata apavorada, sempre de olhos no chão. Agora percebe, Lígia usava peruca no sonho.
A ruiva surge na sala, uma roupa de ficar em casa e meias. "Deixa a mochila ali no meu quarto! Quer tomar um banho?, comer alguma coisa?"
Hermes não consegue formular uma resposta decente. Emite uns ruídos indecifráveis, desafina a voz.

     Tá tudo bem mesmo?
     Não. Eu tive um sonho terrível no ônibus e ainda não me recuperei.

A resposta sai um tanto ríspida e o clima fica pesado.

     Olha, eu preciso ir. Agradeço o convite, mas não posso aceitar. Tenho umas coisas pra resolver.

A ruiva parece confusa, surpresa. Talvez até com o ego ferido.

     Resolver o que a essa hora? Deita um pouco, toma um banho. Foi só um sonho. Se quiser conversar...
     Não, valeu. Vai passar. Só me dá um copo d'água. Eu realmente preciso ir.
     Vai se foder, então! Some daqui!

E sem dizer mais nada, ele abre a porta atrás de si e ganha a rua.
Sente-se bem. Muito bem. Como se respirasse pela primeira vez em horas.
O comércio levanta as portas lentamente, no ritmo mineiro.
Da janela do terceiro andar a ruiva parece gritar, "Seu maluco do caralho!"
Hermes ignora. Esboça até um sorriso de canto de boca. Tem dinheiro para apenas uma ou duas refeições e mais nada. No entanto não se aflige. Sente-se livre, na verdade. Por pouco tempo, sabe disso.
Pensa em Lígia outra vez. Pensa no homem que matou, na polícia atrás dele. A essa altura é considerado um foragido. O título o espanta. E evita pensar a respeito.
Para em frente a um pequeno hortifruti, entra por impulso, compra duas cenouras e pergunta se estão precisando de mão-de-obra.
O homem no caixa é o dono do lugar. Um velho baixinho que olha desconfiado, de baixo a cima. Hermes sorri. O velho pergunta se "o moço já descarregou depósito?".
A resposta é um sim sincero. O velho não parece acreditar. Analisa Hermes mais uma vez, franze a testa, coça a têmpora com uma caneta bic e diz "Eu tenho umas caixas no depósito. Ocê repõe tudo que tá faltando aqui na loja, o que sobrar ocê empilha outra vez e desmonta as caixa vazia. Eu te dou almoço e um teto pra dormir essa noite. Sem pagamento em dinheiro. Pegar ou largar."
Hermes surpreende-se com a resposta e, tomado de felicidade, aceita de prontidão.
O velho então sorri e emenda, "eu também já fui assim que nem ocê."
"Duvido que já tenha matado um homem com as próprias mãos."

     Quando eu começo?
     Inda é cedo. Encosta suas coisa ali. As caixa num vai fugir. Aceita um gole pra abrir o apetite?



XIII


É noite.
Faróis brilham excessivamente na avenida principal.
A viatura vem devagar pela contramão. O policial carona desce primeiro. Tenta manter uma postura firme apesar do sorriso na cara. Dá alguns passos na direção de Hermes e estanca, esperando seu parceiro que desce também rindo. Eles se entreolham com sorrisos nas sobrancelhas. O policial motorista vai até Hermes e pergunta sarcástico se ele precisa de ajuda pra vestir a roupa.
Hermes para de berrar quando percebe os policiais. Sai do transe.
Diz que roubaram suas roupas.

     Suas roupa tá ali — aponta o primeiro policial.

Hermes recobrando os sentidos vai até as roupas e se veste. Todos os bêbados do pequeno bar estão do lado de fora contemplando a cena. Pessoas espiam pelas janelas das casas.

     Eu preciso te algemar ou você vai colaborar com a gente?
     Vou colaborar.

Um carro passa lentamente pela avenida e alguém grita de dentro "Peladão!".
Hermes berra ofensas e é repreendido.
O segundo policial vai até o bar e conversa com algumas pessoas. Seleciona duas testemunhas. Uma segunda viatura passará pra pegá-los.
No banco de trás da viatura, já recomposto, Hermes ignora as perguntas que os policiais fazem em tom de troça. "Tava com calor, amigão?", "Bebeu e achou que tava numa praia de nudice?", "Tá querendo arranjar namorada? Ou namorado?".
A delegacia em nada se parece com o que Hermes havia imaginado. Muito mais se parece com uma pobre repartição kafkiana. A bebida no sangue, mais a luz branca e impessoal, dão um tom onírico à cena.
O policial conduz Hermes até uma divisória da repartição. Senta-se em frente a um velho computador, um silêncio longo, e então começa as perguntas oficiais.
Hermes, bêbado, enfim percebe a cilada que se meteu.
Está sendo procurado por homicídio.
Basta uma busca rápida e descobrirão.
Uma busca rápida e está preso.
Lígia grávida de um filho seu. E ele preso.
"Eu tava indo tão bem..."
As testemunhas chegam.
Hermes nervoso e fora de si faz gestos obscenos e ofende as testemunhas — dois homens baixos e negros, vestidos com a mesma roupa e boné. Os homens a princípio não reagem, mas logo respondem com ameaças de morte — sinais de garganta cortada.
Hermes mostra o pau mole pros homens.
Então surge sem explicação numa outra sala e agora o policial que o detém é rude e não usa farda. As testemunhas sumiram. O homem impaciente manda Hermes ir embora e voltar ali sem falta no dia seguinte, alegando que hoje já não há mais ninguém para redigir os autos.
Ele se vê sozinho, ainda bêbado, à noite, num lugar que desconhece.
Teme que os homens reapareçam e cumpram suas ameaças. Volta à delegacia e exige uma escolta. Diz estar sendo coagido pelas testemunhas.
O homem no balcão berra, exaltado, uma veia saltada na testa.
É mais temível que os homens negros.
Hermes tem um lampejo de lucidez e vaza dali.
Do lado de fora da delegacia se arma de duas grandes pedras, olhando aflito ao seu redor à espera do som derradeiro.
Só a noite o acompanha.



XIV


Acorda  numa cama que desconhece.
"A velha cena."
Como se quisesse não estar ali, fecha os olhos e tenta voltar ao sono.
Aflito, não consegue. Nota uma pessoa na cama. De costas, coberta.
Uma luz matinal entra pelas frestas da janela e ele supõe seis e meia. Sempre acorda cedo na ressaca. Precisa entender onde está. Levanta devagar, tonto, enjoado, a cabeça latejando. Abre a porta do quarto e logo reconhece o ambiente. Sente certo alívio. Está só com a roupa do corpo; a mochila, deixou na casa do velho que o empregou ontem. Pretende furtar um café da manhã e sair corrido dali. Não lembra como chegou, nunca lembra. Surpreende-se que a ruiva tenha cedido o teto depois daquela despedida. Não quer encará-la porque sabe que ouvirá sermão.
Usa o banheiro silenciosamente. Ao mijar ajoelha-se no chão para que o barulho do mijo na privada seja sutil. Nota algumas calcinhas sujas. Deseja cheirá-las, esfregar o pau nelas, mas a cabeça lateja e ele desiste. Sente que é feito de algodão, está estranhamente leve. Oco. Como o silêncio que precede um berro.
Lava o rosto em água abundante, evita se olhar no espelho. Respira fundo, pelo diafragma, segura o ar no pulmão para dilatá-lo, percebe que fumou muitos cigarros no dia anterior, solta o ar em curtos e fortes ts, ts, ts. Sente-se um pouco melhor.
Quando abre a porta vê a ruiva de camisola e meia, cabelo despenteado, cara de quem ainda não acordou.

     Tomei um susto quando não te vi no quarto, achei que tinha ido embora.
     Não fui. Ainda... Tava saindo já.
     Mas já? Não são nem seis da manhã! — diz numa voz manhosa, encolhendo os ombros.
     Eu preciso resolver umas coisas...
     Você precisa ir na delegacia, eu sei...
     ...
     Você me contou ontem. Vai dizer que não lembra...?
     Lembro — mente.
   
A ruiva o encara com olhos espremidos de sono e curiosidade, como quem tenta ler através da imagem escancarada. Tem o olhar atento e desconfiado.

     Você realmente não lembra, né?
     Do quê? Claro que lembro...
     Não lembra. Dá pra ver que não lembra.
   
Hermes suspira como não aguentasse mais a mesma ladainha.

     Não, não lembro. Não tenho a mínima ideia de como cheguei aqui, nem do que aconteceu, nem do que eu te disse. Tá feliz?
   
De olhos arregalados que dizem "Uau, você tá sendo muito ingrato", a ruiva rebate:

     Se eu tô feliz? Eu tô tranquila. Quem tinha que se preocupar é você. Você lembra, pelo menos, que foi parar na delegacia ontem porque ficou gritando pelado no meio da rua, né?
     Sim... Que mais eu disse?
     Um monte de coisa. A maioria sem sentido. Não sei até agora o que é real, o que é loucura sua.
     Não leva a sério nada do que eu disse ontem, eu tava bêbado... — desconversa, enquanto vai na direção da porta.

A ruiva permanece ali, observando-o se afastar.

     Você disse que me amava, ontem... E que tinha matado um cara em São Paulo. — as palavras saem num tom trivial, inabalado.

Hermes sente os olhos quentes da ruiva penetrando suas costas. Lembra que transaram no sofá da sala. Permanece de frente pra porta. Enxerga formas geométricas flutuando pela casa. Enxerga corpos disformes com cabeças cômicas. Rostos enrugados que crescem à medida que dizem palavras banais. Enxerga um homem de terno, sem rosto, em estética televisiva. Penas de aves flutuam frente à retina. Fecha os olhos e mergulha no fluxo de carros que corre na escuridão das pálpebras. Faróis brilham excessivamente na avenida principal. Enxerga-se nu, o corpo branco como o de um frango mal-cozido. Enxerga-se com longos cabelos vermelhos nas laterais da cabeça. Um calafrio percorre, invade, dilacera sua nuca. Ele abre os olhos, treme inteiro. Vai até a ruiva, dá um abraço muito apertado e desata a chorar sem dizer palavra. Ajoelha-se lentamente sem largar o corpo gelado dessa mulher que ele sequer sabe o nome. Chora como quem pede ajuda. Um choro que se multiplica ao encontrar solidez no lado externo do corpo. Um choro guardado, preso durante muitos anos. Um choro condenado à morte, que teve sua pena anulada no momento em que as armas já miravam o alvo. Desespero e alívio. A ruiva não compreende. Ele não compreende. Chora e sente prazer em chorar. Uiva. Quer ser salvo.

     Vem aqui comigo, eu vou te colocar na cama.

Hermes segue o comando sem questionar.
Deita no colo da ruiva e dorme rapidamente.
Ela afaga sua cabeça com cuidado e olhos distantes. Parece preocupada. Mais com a saúde mental dele do que com a lei. Mas não deixa de pensar que no seu colo repousa um possível assassino.
Pretende colocar tudo em panos limpos assim que ele acordar.
Quando percebe que Hermes caiu em sono profundo, se desvencilha silenciosa, vai até o banheiro e caga tranquilamente. Bate uma siririca ali mesmo, na privada, sem se limpar ou dar descarga.
Depois do orgasmo, fica cerca de um minuto parada, olhando pra cima, cabeça encostada na parede. Venera o cheiro que sobe. O cheiro da merda e da própria buceta intumescida de menstruação e gozo.
Vai até o espelho e examina a própria pele, tira alguns cravos, analisa as olheiras, o buço, a oleosidade da testa... Tem o ar tranquilo.
Pega, com os pés, a calcinha suja do chão. Cheira uma vez pra conferir, outra por prazer. Vê de relance seu reflexo no espelho e sorri. Prende o cabelo esvoaçado e entra no banho quente.
Hermes surge de repente — a porta estava entreaberta.
"Já acordou?", pergunta, retórica. Ele vai até a privada e desvia o olhar quando nota aquela merda estranhamente grossa e comprida. Mija olhando pra frente, respirando o mínimo possível.

     Entra aqui comigo! Tá tão quentinha a água!

Hermes dá a descarga, lava o rosto e vai até o box.

     Eu vi você batendo.
     Viu, é?
     Vi e fiquei morrendo de tesão.
     Que delícia... — diz entre-dentes e olha pro pau meio-duro à sua frente.
     Eu me toquei enquanto te olhava.
     Ah, seu safado! — aperta com força o pau duro de Hermes, sob o chuveiro.

Faz um boquete faminto e desesperado. Chupa com vontade, de olhos fechados, concentrada no pau.
Hermes fecha os olhos e se esforça pra gozar. Contrai todo o corpo. Apesar do tesão excessivo, sempre tem dificuldade pra gozar na ressaca.
A ruiva aperta o saco com a mão direita. Com a esquerda bate uma punheta perfeita, o pau sempre dentro da boca.

     Mete o dedo no meu cu — ele diz num impulso.
   
A ruiva gosta daquilo. Geme e ri um riso safado. Aumenta a velocidade da punheta. Ainda segurando o saco com a palma da mão, enfia a ponta do dedo no cu de Hermes, que urra.

     Não para, eu to quase!
     Goza! Goza pra mim! Goza na minha cara!

Hermes sente o orgasmo se aproximar. Está quase lá. Já entrou na reta final. Não há mais volta. Ergue a ruiva pelos braços e a joga contra a parede, de costas pra ele. Com a mão afoita, pega o pau e mete na buceta pulsante da ruiva. Mete fundo e forte. Segura ela pelos quadris. Mete, geme, grita, ela grita junto, ele goza, jorra dentro. Não para de meter. A ruiva percebe que ele gozou e geme ainda mais, a cara toda vermelha, pressionada contra a parede.
Ele então para, não sem antes enfiar até o talo mais uma vez e permanecer lá dentro, pressionando o pau contra o útero da ruiva, que agora mesmo pulsa a buceta contra o pau quente e ainda meio duro.
A tontura vem de repente. A cabeça dói e lateja, o estômago se contrai, ele sente-se muito fraco e deixa-se cair no chão. Vomita no ralo, sem escolha. A ruiva pula por cima dele, fugindo do vômito. Enrola-se na toalha e sai do banheiro sem dizer palavra. Tem o semblante aborrecido.
A água segue caindo e lavando o vômito e todos os outros excrementos ao redor do corpo no chão.




XV


Na delegacia ignoram sua presença. 
Tonto, sentindo aquela fraqueza elétrica, esforça-se para ser atendido.
Ocorre a ideia de sumir dali sem dar satisfações. O processo ainda não foi consumado, ele sabe. É possível que suma em meio a tantos outros casos no limbo da lei.
No entanto segue pela ordem. Percebe que deseja ser preso. Vê nisso um sinal de fraqueza e supõe ser culpa da ressaca. Sente vergonha.
Lembra da cena que protagonizou de manhã, o choro covarde aos pés da ruiva. Sente raiva. Falta de ar. Deseja berrar e chutar a cabeça de todas as pessoas presentes no recinto. Todas essas pessoas que optaram por trabalhar pela lei. Que abdicaram da sua natureza animal para servir a uma lei que já não foi e um dia não mais será. Essa lei que está sempre atrasada e em desacordo. Decide não mais se apresentar. Burlar a lei. Foda-se. Deslizar por entre os dedos gordurosos do Estado.
Mas é tarde.
Ao virar-se pra tomar o caminho da rua, bloqueia a passagem de um policial fardado que o aborda e pergunta ríspido "Tá procurando o quê?"
Hermes não pensa em nada e acaba cedendo. Diz a que veio.
O policial o encaminha para uma semi-sala e ordena que espere ali. Ele obedece.
Logo é atendido por outro fardado. Detalha sua contravenção, estipula o horário da ocorrência. O policial ri. Logo encontra nos arquivos o relato parcial, escrito pelo PM que o abordou na noite anterior. "ATO OBSCENO" é o artigo. De longe, por cima do ombro fardado, enxerga uma e outra palavra no monitor, um texto muito mal-escrito, todo em maiúsculas, quase sem pontuação.  

     No momento a gente tá sem funcionário pra registrar o seu B.O. A qualquer momento você vai receber uma intimação nesse endereço que você passou. Confirma o endereço?
     Confirmo — responde, após notar que deu o endereço da avó materna.
     Até lá, evita arrumar problema por aí. E não some no mundo. Se você sumir vai ser pior pra você. Entendeu?
     Sim, senhor.

Sente vergonha outra vez. 
Não pelo ATO OBSCENO ou pela estranha condição em que se encontra, mas por ter chamado o policial de "Senhor".
Sai apressado dali, em direção à casa da ruiva. O sol castiga, seco. 
No caminho cruza com alguém que lhe parece familiar. Sente-se ameaçado por aquele encontro. Estaca. Hesita um pouco antes de se virar na direção do homem que passou inabalável. 
Olha com cuidado. Teme que os olhos se cruzem.
Na multidão do centro em horário de almoço ainda consegue distinguir o homem, que segue seu rumo sem olhar pra trás.
Tem pressa de chegar em casa. Mas antes precisa passar no hortifruti e pegar sua mochila. 
Percebe que nada o obriga a voltar à casa da ruiva, mas, sem dinheiro, não tem pra onde ir. Cogita perambular pelas ruas, mas logo desiste. Não pode se expor. A qualquer momento pode cruzar com alguém cheio de motivos para matá-lo. 
"Esse é o grande problema do alcoolismo: ser responsabilizado por atos que não se cometeu à lucidez. Essa eterna sensação de culpa e vigília."
Apressa o passo, aflito, vulnerável.
"Eu preciso parar de beber."
O velho está atendendo quando ele chega. Traz a mesma caneta atrás da mesma orelha.
É com olhos aterrorizados que reconhece Hermes.
"Fiz merda aqui também", deduz.
A cabeça do velho fica vermelha e parece inchar, dobrar de tamanho. As sobrancelhas crescem desenfreadamente, misturam-se ao bigode numa fração de segundos. O velho berra insultos num idioma indecifrável, como um filme que passasse em velocidade duplicada, no entanto a voz é grave e áspera. Hermes encolhe. Seu corpo físico encolhe, ele nota. O velho está muito próximo e Hermes tem de olhar pra cima se quiser mirar os olhos amarelos e pulsantes do homem odioso. 

     Eu vim buscar minhas coisas — arrisca numa voz que sai trêmula e fina.
   
A cabeça do velho segue crescendo. Hermes não compreende; sente medo e vê graça nisso. O velho treme inteiro. Grossas gotas de saliva escorrem pelos cantos da boca. Os caninos inferiores estão enormes e pontiagudos. A mandíbula projeta-se muito para frente, fazendo Hermes lembrar de um sonho que teve na infância. Como se estivesse acuado, sem saber o que fazer, Hermes mete um soco de baixo pra cima na mandíbula do velho. Um belo gancho. Right on the button, diriam os comentaristas. Mas, em vez de cair, o velho fica imóvel, os olhos põem-se a girar repetidas vezes, a cabeça começa a encolher. Também as sobrancelhas — que já quase tocavam o chão — e os dentes e o bigode. Os olhos adquirem novamente a cor natural. Tudo parece voltar ao normal dentro do pequeno horti-fruti. 

     Olha só quem apareceu!

Hermes não diz nada; espera o próximo movimento.
O velho abre um sorriso sagaz, malicioso. Inclina o rosto, sem desviar os olhos. Ergue o indicador, que balança no ar, em movimentos repetidos, diagonais. 
É possível ler complacência e até certa admiração nessa postura. O velho já não parece mineiro.

     Veio buscar suas coisas, é? Tá aqui, onde você deixou ontem. Mas espera aí um pouquinho, eu separei um negócio procê, vou ali buscar e já volto... Se entrar alguém, manda esperar!

Um mal pressentimento acomete Hermes, que desconfia de tudo ao seu redor.
Decide não esperar. Não quer arriscar, pode ter também vacilado com o velho. A última coisa que lembra é virar uma dose de cachaça, já depois do expediente, na casa do velho, com sua esposa e a filha. Não lembra dos rostos, mas da sensação de estar bebendo com a família do velho. Houve até um jantar, que ele recusou a princípio por estar sem fome. "Não misturo", disse em tom de troça, sobre comer enquanto bebe. Lembra que todos riram. Depois de um tempo e muitas doses, aceitou a janta (lentilha), que comeu desesperadamente.
Agora, repassando as lembranças, sente que também aqui deu mancada. Aquela pontada aflita. O velho estava estranho.
Age rápido. Entra no caixa e pega a mala. Num ímpeto, mete a mão na prateleira de doces em frente ao caixa. Forra os bolsos com chocolates e barras de cereal. Na geladeira ao lado, pega duas garrafas d'água e foge dali. Ao cruzar a porta, ouve a voz do velho. Não distingue o que ele diz. Sai correndo em direção à casa da ruiva. Ou o que julga ser.
Está perdido. Correu na direção errada. Olha pra trás e vê o velho parado, uma sacola em mãos. O velho acena. Ele torna a correr em qualquer direção e chega a um beco vazio, com cheiro de mijo. O beco é compreendido pela lateral de um prédio e um muro alto e áspero. No final, há uma escada, que ele decide subir. Tropeça num dos degraus e rala o joelho. O mesmo joelho que machucou ao voltar correndo pra casa, logo após saber que estava sendo procurado. Uma das garrafas rola escada abaixo. No impulso ele olha e dá de cara com o estranho homem que cruzou mais cedo no centro. O homem pega a garrafa e vem até ele, com mãos amistosas. Hermes sente pânico. Quase reconhece o homem de rosto pálido e olhos de jabuticaba. 

     Que mundo pequeno! — diz o homem, cabelo muito preto e liso.

Ele não tem boca. Isso não é real.

     Não lembra de mim? — pergunta suavemente. — Eu sou sua aflição.

Hermes, ainda caído, chuta o joelho do homem, que grita e cai pra trás.
Sai correndo dali. A cidade está ampla e silenciosa. 
O céu nublado. 
O dia tornou-se domingo.
Corre até perder-se totalmente.
Olha ao redor e não vê viv'alma.
Devora os doces que traz no bolso, sentado num banco frio. 
Então caminha lentamente até o cinema de rua que avista no quarteirão da frente.


XVI


Frustrando suas expectativas, o cinema está desativado. Não há bilheteria, as portas escancaradas levam direto à sala, que fede a morte e mijo. Bastante escura, tem poltronas acolchoadas e grossas cortinas vermelhas que pendem de um teto infinitamente alto. 
Senta-se numa poltrona distante da porta, num canto escuro da sala. Sente-se seguro ali. Fecha os olhos, repousa a nuca no encosto da poltrona e respira fundo. O cheiro de morte invade suas narinas. É o cheiro do caixão de seu avô.
Permanece de olhos fechados, evocando imagens e cheiros da infância. Perde-se nesses devaneios até cair no sono. 
Acorda assustado com um barulho na sala. Um homem surge por uma porta que ele não havia notado. Supõe ser a sala de projeção. A essa altura sua pupila já se acostumou com a escuridão e é possível notar certos detalhes no pequeno homem que vem do fundo da sala. 
O estranho homem caminha determinado, olhando para o chão, como se o escalasse com suas pernas curtas, num short de atleta. O homem parece não compreender o chão, tem o cenho franzido e olhos preocupados, perfeitamente envoltos por grossas sobrancelhas negras. Uma pequena bolinha cômica. Vem na direção de Hermes, sem olhá-lo. Hermes abaixa-se na poltrona, como se afundasse. O homem passa reto, no entanto detém-se alguns passos depois. Fica cinco segundos parado, então vira na direção de Hermes e, sempre olhando pro chão, diz firme "O cinema tá fechado há oitenta anos."
Hermes julga ter entendido mal. Pergunta pois não, mas o homem vira-se outra vez e segue seu rumo, em direção a uma porta ao lado da tela desativada.
Como se sentisse observado, Hermes decide sair dali. No caminho nota um folhetim numa poltrona e decide pegá-lo. 
"Decide" não; pega por impulso. Dobra ao meio e sai corrido dali. Ao cruzar a porta, estanca. Vira-se em direção à sala outra vez e tira uma foto mental, registrando o ambiente que tanto o atraiu.
Faz sol e há muita gente na rua, inexplicavelmente. Hermes consegue se situar e vai direto para a casa da ruiva.
Ela demora pra atender a campainha e é com uma expressão esquisita que abre a porta.
Hermes sente que incomoda. 
Entra, fecha a porta e fica parado ali, como da primeira vez em que esteve.

     Foi na delegacia? — pergunta a ruiva, sentando no sofá com certa pompa.
     Fui...
     A gente precisa conversar.
     
Ele não responde, fica ali, com as mãos na nuca, olhando para ela.

     Senta...
     Tô bem aqui.
     Senta, eu quero falar com você.
     Pode falar, tô ouvindo.
     Eu não quero que você ouça, eu quero que você fale... Me explique o que tá acontecendo...
     
Pensa em dizer "Eu não te devo explicação", mas julga grosseiro. 
Joga a cabeça pra trás, alongando a musculatura do pescoço, respira fundo e resolve sentar. 
No entanto fica quieto, olha vagamente prum ponto no chão. 
Sente-se observado.
Ficam nesse silêncio até que ele vira-se rapidamente na direção dela e diz: Eu matei um homem, aparentemente... com as minhas próprias mãos.
Ela não altera a expressão. Parece esperar por mais informações.
Hermes torna a olhar pro chão, uma pequena rachadura no azulejo, e prossegue:

     E já sabem que fui eu, e estão atrás de mim. E é basicamente isso. Meu problema com a polícia daqui não vai dar em nada, eu acho. Eles estão sem funcionário pra finalizar o B.O., eu não entendi direito. Só sei que meu caso tá num tipo de limbo e provavelmente vai ficar... O que mais você quer que eu fale? — isso ele diz olhando nos olhos aflitos da ruiva.
     Por que você matou uma pessoa?
     Tava muito quente. E eu tava de ressaca. E ele me ofendeu gratuitamente... Não sei, acabou acontecendo, ele veio pra cima de mim, eu reagi, ele caiu, deve ter batido a cabeça... Eu saí correndo, não fiquei pra ver. Só sei que me descobriram — nesse momento Hermes pensa em Luiza, algo incendeia seus olhos.
     Que foi...?
     Uma pessoa me dedurou.
     Quem?
     Você não conhece. E o pior é que essa pessoa tem como provar. Eu deixei sangue meu na casa dela. E o sangue do velho, com certeza... Eu tava todo ensanguentado e ela me acolheu... — as frases vão saindo desconexas, como se formuladas tardiamente.
     Você matou um velho...?
     
Hermes não diz nada. Balança a cabeça afirmativamente, como se não percebesse. 
Permanece nesse movimento, olha fixo e de olhos vagos pro azulejo rachado.

     Eu tô tentando entender porque eu te abriguei na minha casa ontem. Eu devia ter te expulsado quando você me disse isso... Mas na hora achei que era loucura sua, você tava transtornado...
     Não tiro sua razão. Pra falar a verdade, também não sei porque você fez isso. Eu nem fui tão legal assim... Por que você tá me ajudando desse jeito? 

Parece não compreender a pergunta, cuja resposta lhe parece óbvia.

     Enfim, eu tô indo embora, fica tranquila. Ainda é capaz de sujar pra você.

Hermes vai até o quarto da ruiva pegar sua mochila. 
Nota que há alguém no outro quarto. Isso o preocupa.

     Você se sente culpado?... Arrependido?
     Tem alguém naquele quarto?
     Responde minha pergunta.
     Não sei... Acho que sim. Tem mais alguém em casa?
     Acha que sim?
     É... Não consegui ainda sentir a culpa. É mais uma aflição... Como se fosse uma pendência... um compromisso marcado...

A ruiva, estática, tem os olhos esbugalhados.

     Desculpa... Você perguntou, eu respondi. 
     Cara, qual é o seu problema? Eu te achei tão doce e gentil quando te conheci. Você parecia uma pessoa pura, não sei... De repente você se revela esse cara meio bizarro e frio.
     Pois é. Esse sou eu. Ou melhor, isso sou eu. Isso foi o que eu me tornei... Eu sei, pode parecer ladainha, eu matei uma pessoa e em vez de assumir a culpa fico aqui com esse papo, mas tudo isso tá interligado; é como se eu tivesse virado uma testemunha de mim mesmo. Eu nunca sei como vou agir ou como devo agir, no entanto eu ajo... ou melhor, meu corpo age e eu testemunho.

Um barulho altíssimo vem do quarto ao lado. Como algo quebrando ao cair.

     Quem tá aí? — ele pergunta em tom baixo, pra ruiva.
     Minha irmã. Esse é o quarto dela, ela mora aqui. — a resposta é impaciente.
     Bom saber que tinha alguém aí ouvindo tudo. Como eu vou saber que ela não vai me entregar pra polícia?
     Ela não vai... Eu acho.
     Ah, você acha? Eu preciso ter certeza!
     Não tenho como te garantir nada...
     Eu vou embora antes que suje pra mim. Obrigado pelo teto e por tudo que você fez. Desculpa...

A ruiva, encolhida no sofá, tem os braços cruzados como quem se protege do frio, olhos perdidos no chão.

     Se quiser, pode ficar.
     Como assim? 
     Ué, é isso... Se quiser pode ficar mais uns dias, até resolver suas coisas, sei lá. Você me disse que tava escrevendo um livro, que precisava de tempo e espaço pra escrever... Pode ficar e escrever aqui. Apesar de tudo, eu gosto de você. Eu também sou meio louca, você ainda não percebeu?

Hermes ensaiava uma resposta, a porta do quarto se abre bruscamente e de dentro sai uma adolescente de óculos redondo. 
Berra:

     Ele não vai ficar aqui! Ele é um bandido, Clara! Manda esse cara embora ou eu vou chamar a polícia! — e correu até o banheiro, no fim do corredor.

Clara e Hermes se olharam sem dizer palavra. 
A ruiva levantou do sofá e foi até o banheiro tentar acalmar a irmã.
Hermes ensaiou esperar, mas decidiu ir embora.
Seu tempo naquela cidade já havia se esgotado. 
O cerco estava se fechando:
A polícia, as testemunhas, o velho do hortifruti, o homem sem boca. Agora essa adolescente.
Mochila nas costas, saiu dali tentando não fazer barulho.


XVII



No minúsculo apartamento classe-média-alta, três universitários conversam sobre as recentes medidas tomadas pelo conglomerado de autoridades mundiais. Trata-se do controle populacional, proposto em decorrência da recente marca de 20 bilhões de habitantes no planeta.
Sobre a mesa nota-se um cinzeiro abarrotado de bitucas, um exemplar de Marx, outro de Rosseau, Bakunin, Kant...
As paredes são tão finas e há tantos vizinhos, que os universitários tem de cochichar, visto que o teor da conversa pode ser considerado subversivo. Também por esse motivo — as paredes muito finas —, o encanamento passará por dentro do apartamento, tornando visível toda espécie de excremento depositado nos ralos e vasos sanitários.
Os três debatem há horas sobre a natureza da medida populacional. Todos condenam a medida. Ainda assim, sob ideologias distintas, discordam entre si no que diz respeito ao embasamento teórico da defesa humanista. Encontraram-se para planejar um ato contra as medidas, no entanto já se passaram horas e tudo o que fizeram foi debater sobre dialética e iluminismo e o caralho a quatro.
Há um rapaz e duas moças em cena. 


Hermes empaca. Apaga boa parte do que escreveu, apóia os cotovelos na mesa, leva as mãos à testa e fecha os olhos, tentando encontrar solução para sua história. Pretende ridicularizar o comportamento dos universitários mas teme, com isso, jogar o jogo errado. Do lado errado. Do modo errado.
Há dois dias que está nesse quarto de pensão. Uma pensão da pior categoria, no centro de Três Corações. O quarto é todo de madeira: chão, paredes, teto. E há buracos terríveis em todos os cantos, dando vazão ao vento que vez em quando dá o ar da graça.
Apesar disso, o quarto é agradável. Tem uma cama, uma cadeira, uma pia, um espelho e um pequeno armário. Hermes sente-se bem. Costuma escrever sentado na cadeira, apoiando-se na cama. Parece ter encontrado a paz aqui. Sente que a ruiva e todo o resto fazem parte de um passado já distante.
Quase não pensa em seu crime ou na mãe morta. No entanto pensa bastante em Lígia e na filha. Tentou contato no dia em que chegou a Três Corações. Sem sucesso. Uma preocupação tomou-o de assalto. Mas logo desencanou trancou-se nesse quarto onde agora se encontra, decidido a escrever a maldita história que o persegue.
Pensa bastante nos viajantes, que inutilmente buscarão o tal Éden — único local ainda não povoado da Terra. Vê nisso uma forte imagem. Uma perfeita metáfora para sua própria situação, vagando sempre em busca de um lugar que o aceitará como nenhum outro, que curará suas mazelas, que será, enfim, seu lar. E embora saiba de antemão que esse lugar não existe — os desbravadores morrerão na estrada —, segue buscando. Como segue buscando um ponto de partida para seu romance distópico.
Tem muitos trechos em mente. Outros tantos já anotados e espalhados, como peças de quebra-cabeça. 
Sabe que seu protagonista (autobiográfico?) estará muito alheio às notícias e comoções populares. Viverá isolado num pequeno cubículo sem janelas. Odiará universitários, não prestará o exame de aptidão — o que na história será equivalente a não apresentar-se ao exército. Seu protagonista será um cínico aristotélico. Passará fome e viverá maltrapilho. No entanto, será dotado de uma inteligência ácida e aguda, desarmando os poucos amigos que ainda insistem em visitá-lo. 
Mas agora pensa na cena dos universitários reunidos em torno de livros e cinzeiros.

Num dado momento, aproveitando o silêncio oco de uma discussão já esgarçada, o rapaz pedirá licença para ir ao banheiro. As duas moças buscarão algum assunto porque sentirão-se obrigadas a isso. 
A tentativa será frustrada e, no meio de um silêncio ainda mais pesado, interrompido pelo som da descarga, elas notarão uma merda muito vivaz passando pelo encanamento acima de suas cabeças (os encanamentos serão transparentes, de um material muito fino e econômico). 
Hermes supõe que com isso ilustrará muito bem o espírito daquela reunião universitária.
Sente-se satisfeito com o material recém-escrito. Larga o texto, sempre muito organizado, e ganha a rua pela primeira vez em dois dias, decidido a observar as pessoas e o movimento mineiro. Num átimo sente que ama a humanidade, que poderia abraçar todas essas pessoas que agora passam por ele. 
Ah, se a vida fosse sempre assim!, diz seu espírito, cheio de calor. Sente-se bem em Minas Gerais. 
Caminha sem rumo ou preocupações. Cruza com a estátua do Pelé, sobre a qual já tinha ouvido falar. Surpreende-se com a displicência do artista. É uma imagem realmente terrível, que de uma certa forma fere seu espírito inflamado de amabilidade. Não a ponto de tirá-lo do transe, mas suficiente para acrescentar uma ruga de hesitação na sua testa, sobre a sobrancelha peculiar.
Em uma rua do centro, percebe uma pequena escola de música e sente-se muito alegre. Decide apresentar-se imediatamente, oferecendo seus serviços, afinal, está completamente falido e já não sabe como pagará suas próximas estadias. Mas nesse momento está mal-vestido e precisando de um banho. Decide voltar à pensão, dar um jeito nisso e retornar ali na sequência.
No caminho, para num raro telefone público e tenta contato com Lígia. 
Mais uma vez sem sucesso.
O humor piora consideravelmente e, ao retornar à pensão, já sente aquela aflição elétrica que tanto o incomoda, desde que parou com os antidepressivos.
Retornar ao quarto é como atrofiar-se. Hesita à porta, não deseja entrar ali. 
O corredor da pensão é também de madeira e cada passo faz toda a estrutura ranger.
E agora mesmo range porque o hóspede ao lado acaba de sair do quarto e andar corredor a dentro, na direção do banheiro comunitário.
Hermes nota que o homem não trancou a porta de madeira — que abre-se ao meio, em duas —, inclusive deixou uma boa fresta aberta.
A tentação é grande e Hermes cede a ela.
Vai na ponta dos pés, lentamente, encostado à parede como uma barata. Espia pela fresta e surpreende-se ao notar a presença de uma mulher, deitada na cama modesta, olhando pro teto. A mulher não pisca e parece não respirar. A bem da verdade, a mulher parece feita de cera. Hermes cogita entrar ali, mas nesse instante ouve um barulho grave e imediatamente se põe a andar na direção do banheiro, como quem só estivesse de passagem. 
No caminho cruza com o homem que o ignora, cheio de pêlos nas orelhas. Hermes olha para trás quando o homem passa. Nota vincos muito fundos numa nuca que parece feita de borracha. O pescoço é grosseiramente largo e Hermes percebe que o homem lembra muito a figura de um anfíbio.
Antes de entrar no quarto, o homem olha na direção de Hermes, que o encara sem pudor. Os olhos se cruzam, embora o homem use um óculos de lentes marrons, muito grossas, que atuam como um escudo nesse pequeno duelo que parece durar uma eternidade.
Ninguém diz nada, ninguém se move. O homem realmente parece um anfíbio. É todo largo: tórax, membros, pescoço. Usa uma camisa aberta até o meio da barriga, toda coberta de pêlos e correntes de ouro.
O homem finalmente sorri, cheio de malícia, mostrando dentes podres. Um deles é de ouro e é justamente nesse dente que o homem esfrega a língua, emitindo um som agudo, como quem tira um fiapo de carne.
Hermes vira-se e segue seu rumo.
No banheiro, já nu, percebe que esqueceu roupa e toalha. Veste-se outra vez e vai até seu quarto. Ao passar pelo quarto do homem-sapo, nota que já não há mais nada dentro. Nem mala, nem roupa de cama, nem a mulher de cera.
Num ímpeto vai até a portaria e pergunta pelo hóspede. O rapaz de bigode ralo na recepção alega que não pode fornecer informações sobre os hóspedes.
Hermes limita-se a perguntar: ele saiu sozinho ou acompanhado?
"Sozinho", é a resposta.
Hermes corre até a rua e vê o homem entrando num carro velho, um terço pendurado no espelho. O cabelo é tingido, Hermes agora percebe à luz do sol.
O homem sorri com escárnio antes de engatar a primeira e sumir dali. De fato, não há ninguém com ele.
Volta ao quarto decidido a escrever para Lígia. Resolve escrever em formato de carta, talvez influenciado pelo curta-metragem para o qual compôs a trilha-sonora.
Percebe que não sabe escrever uma carta.
Assim como parece não saber escrever uma história. 
Não sabe mais fazer música. Sempre que tenta, se frustra. 
Logo ele, que sempre se considerou um gênio. 
Hoje em dia, a cada nota que tira do instrumento, sente sua vitalidade escapar, como se o som produzido ferisse seus órgãos internos.
Já não tem a mesma coragem de outrora, ir pra beira da estrada sem nenhum dinheiro e pedir carona. Tanto que veio de ônibus a Três Corações, com um dinheiro que a ruiva insistiu em emprestar. 
É como se tivesse morrido. Apenas o corpo segue, biológico. 

Quando dá por si, está deitado em posição fetal, sentindo-se comprimido por uma tristeza muito aguda. Pensa obsessivamente em Lígia. Imagina-se em seus braços, sendo cuidado. Tenta perceber onde foi que tudo desandou.
Dessa vez parecia diferente. Não havia sentimento de posse ou cobrança, ambos doavam apenas o necessário, guardando um pouco de si. Mesmo assim o amor passou. Um caminhão que cruza a paisagem estática de uma estrada esquecida por deus no meio do cerrado, deixando só poeira no ar. 
Cobre parte do corpo com o lençol e pega no sono assim, de luz acesa.
Sonhará com o velho que matou.


XVIII


Alguém bate à porta e ele se assusta. Não espera ninguém. O visitante tenta espiar pela janela, ele nota. Encosta a cara no vidro da janela e traz as mãos em conchas em volta dos olhos, tentando enxergar o interior da casa. Bate no vidro. Chama seu nome.
Acuado na sua caverna, reconhece a voz do amigo. Não deseja abrir a porta, mas abre.
O amigo entra e repara imediatamente na quantidade de latas de cerveja amassadas dentro de uma grande caixa de papelão, sob a pia.
Passam pela cozinha e instalam-se no cômodo que resta. O amigo permanece de pé, suando, agitado como sempre.
Ele senta-se no colchão no chão.
O amigo veio chamá-lo para a manifestação marcada para dali a pouco. Ele finge não saber nada sobre a manifestação. Isso irrita o amigo, que protesta. O amigo tenta convencê-lo a ir, com uma postura não muito democrática. Ele aponta certa tirania no comportamento do amigo, que enxuga o suor da testa com esmero. Reclama da falta de ventilação ali.
Entram num debate sobre liberdade e soberania popular. O cinismo é ligeiramente cruel. O amigo parece decepcionado. 

Hermes gosta da cena, embora insatisfeito com as palavras. Decide guardar o trecho, pretende fazer disso o gancho para a cena da manifestação onde a liderança estudantil pegará o microfone e não saberá o que dizer.
É uma boa cena, confessa a si mesmo.
Ainda não sabe se a história terá tom realista ou onírico. 
Pensa em Kafka.
Sente-se Gregor Samsa, ali naquele quarto de madeira, estranho à sociedade.
Nota a forte semelhança entre si e seu protagonista que ainda não sabe se terá nome.
A casa do protagonista — esse cubículo abafado — será cópia exata de uma casa onde Hermes morou em SP, anos atrás. Uma casa fria e sem mobília, inundada de baratas. 
Ainda está meio abalado pelo sonho que teve. Via a cara do velho muito de perto. Que sorria debilmente, não possuía dentes ou olhos. Em nada se parecia com o velho que matou, na verdade. Da cama, olha para o pequeno espelho e vê o reflexo opaco do teto. Volta ao texto.
Não consegue prosseguir. No entanto, está embebido por palavras que imploram para nascer. Deixa o romance de lado e vomita um poema:



ir-se.
andar até o pé esfolar.
andar até que a sola sem escolha se funda ao céu no asfalto.

ir-se.
andar por andar.
andar e só.
andar andar andar andar

partir-se:
ir sem despedir-se.
partir sem aceno
(as mãos pálidas do aceno)

andar até sentir saudade do imóvel.
andar até arder o crânio.
andar até que a vegetação se canse
e mude.

andar mudo.
andar até sumir na curva azul do mundo.




XIX


É noite — diz a luz que entra pela janela.
Madrugada — diz o som tipicamente marginal de um centro de cidade.
Deseja sair, confraternizar com seus semelhantes. Estar no meio dos bêbados, marginais, batedores de carteiras, estelionatários bebendo conhaque, prostitutas entre um cliente e outro. Talvez até ser um dos clientes. 
Sente que a madrugada o agarra com suas mãos fluorescentes. Pode já sentir o gosto da cerveja, a sensação inigualável do primeiro gole. Enxerga-se em comunhão com mendigos, nóias, pequenos traficantes. Permanece deitado, cheio de euforia, penetrando na noite através da luz que penetra em seu quarto barato. Ouve passos que vem e vão, em chinelos que arrastam e solapam o chão; motos que arrancam cheias de más intenções; músicas populares tocadas em rádios de baixa qualidade; sons de copos e garrafas celebrando mais uma noite cheia de possibilidades.
Levanta-se de uma vez, enérgico, quase fora de si. Fuça na mochila, nos bolsos; junta uma quantia necessária para algumas cervejas — a ruiva foi generosa. No entanto, se beber o dinheiro, não terá para mais uma estadia. Tenta convencer a si mesmo de ficar quieto por hoje. É difícil. O corpo já entrou no processo do alcoolismo. Um predador faminto que sentiu o cheiro da presa mas a perdeu de vista.
Decide sair sem dinheiro. Só pra ver o movimento, presenciar o quadro que tanto imaginou. Se tiver sorte, bebe com algum novo amigo.
Mas a sorte não está ao seu lado.
Descalço, acaba pisando num copo de vidro, que se quebra e dilacera a sola do pé. No momento em que o vidro atravessou sua sola, apesar da penumbra, pôde ver num relance todo o quarto iluminado de uma luz muito pálida e viscosa. 
Pulando num só pé, alcança o interruptor. 
A pequena lâmpada incandescente pendendo ridícula de um comprido fio mal-ilumina o quarto. Senta-se na cama e analisa o estrago. Um corte curto mas profundo — deduz pela quantidade de sangue quente que jorra do pé, já espalhado pelo chão do quarto.
Vai como um patético Saci até a recepção, pede esparadrapo ou gaze. O homem velho e negro, recém-saído de um cochilo, demora a entender. Levanta preguiçosamente, põe os óculos, aumenta o volume da pequena televisão que transmite um filme dublado. Sai da recepção, a fim de buscar a gaze numa sala onde é "PROIBIDA A ENTRADA DE HÓSPEDES", nota o chão manchado de sangue. Faz cara feia, bufa, e ao bufar revela enormes bochechas, até então escondidas. Hermes pensa em Dizzy Gillepsie. Olha o rastro macabro que deixou no chão e sente orgulho. O pé lateja.
Na ausência do velho, passa a prestar atenção no filme. A pequena TV possui uma estética meio super-8, com seus contornos esfumaçados e coloração saturada. 
Lembra da infância. 
Sente nostalgia. 
Evoca uma cena recorrente dessa fase: há dois sofás em L numa sala grande, de casa antiga. O tecido do sofá é áspero. Seu avô, já muito doente, está no canto esquerdo do quadro, à frente há um armário com portas de vidro e um grande vão central que abriga uma TV de tubo, transmitindo um filme dublado. 
Ao lado esquerdo do móvel há um corredor de azulejos brancos que leva a uma cozinha. Ao lado direito, uma porta que dará para uma área externa da casa.
É possível ouvir a tosse grave e moribunda advinda de um quarto próximo mas não presente em cena. É o tio materno de Hermes, que veio a falecer pouco tempo depois, de tuberculose — sendo essa a única lembrança que Hermes tem do tio.
O velho reaparece com uma caixinha de primeiros-socorros. Com os óculos apoiados na ponta do nariz largo, tenta ler as instruções demonstrando extrema dificuldade. Há bolsas gordas pendendo sob seus olhos semi-abertos de negro-sábio-cansado. 
"Pode ser só um pedaço de gaze", Hermes diz em tom um tanto submisso.

     Isso aí tá sangrando demais, moço. Tem que limpar bem, passar alguma coisa primeiro... — encontra um frasco de Iodo, aparência milenar. 

Entrega o frasco, esparadrapo e gaze. Olha com certa desconfiança para Hermes, que aceita o medicamento e volta ao quarto, deixando novo rastro no chão.



XX


Acorda disposto no dia seguinte. Enérgico e motivado. Disposto a escrever. Teve algumas ideias durante o sono. Esqueceu todas. 
Ainda assim, permanece o resquício físico em sua imaginação.
O dia parece muito claro. Promissor.
Decide levantar de uma vez, sem moleza. Tem muito trabalho pela frente. Ao mover as pernas, sente o pé esquerdo colado no lençol. O sangue atravessou a gaze durante a noite. A cama está cheia de sangue, assim como o chão do quarto. Arranca a gaze com firmeza, imaginando que assim sentirá menos dor.
O corte está preto e com aparência nada saudável. A sola do pé está amarela de iodo. 
"Vou ser obrigado a começar o dia com o pé direito", ri.
Vai até suas folhas, encontra algumas em branco.
Volta à cama e se posiciona para escrever. É preciso desviar do sangue no lençol.
A cena o empolga. Um tom visceral, por que não?
Abandona tudo que escreveu até agora. A história será narrada em primeira pessoa. Assim poderá enfiar nas entrelinhas alguns de seus próprios pensamentos, sem que soe forçado ou moralista.
Decide que o protagonista será uma cópia fiel de si mesmo. Pra disfarçar, em vez de músico, será ator. E terá outro nome, naturalmente. Ou talvez não tenha nome. Talvez nenhum personagem tenha nome. Gosta disso.
Seu coração acelera de repente. Uma horrível taquicardia. A postura começa a incomodar.
Levanta da cama e faz alguns alongamentos, exercícios de respiração.
Quando deita novamente, não encontra posição confortável. Já não será possível escrever. Arremessa a caneta contra a parede, dá um berro rasgado e sai do quarto mancando, em busca do café da manhã, supondo que acordou cedo o suficiente.
Na pequena sala, o funcionário recolhe pratos e xícaras com um zelo impressionante. Tem o sorriso satisfeito de um anfitrião que promoveu uma excelente festa. 

     Bom dia, o café ainda tá sendo servido?

O homenzinho de sorriso brilhante larga as louças na mesa, endireita sua postura, pigarreia discretamente, como quem prepara a voz para um pronunciamento, ajeita seu uniformezinho e proclama: "O café da manhã é servido das sete às dez!"
Hermes julgou ter ouvido uma risadinha logo após a frase.

     E que horas são, por favor?
     Sinto muito ter de lhe informar: são dez e cinco, senhor! Hihihi... Hihihi...
     Ah, mas será que eu poderia tomar pelo menos um café puro? Só se passaram cinco minutos...
     Oh!, mas é claro que não! Aqui no nosso hotel a pontualidade é levada muito a sério! - dessa vez não soltou sua risadinha, falou num tom grave e solene, quase preocupado.

Hermes voltou ao quarto, aliviado por não ter bebido o dinheiro na noite anterior.
Catou uns trocados e saiu da pensão, rumo à padaria da esquina. Alguma coisa naquele homem o afetou profundamente. 
Sentiu até certo alívio ao ser mal-atendido pelo balconista da padaria, que seguiu lavando a louça sem nenhum pudor enquanto Hermes comia seu pão na chapa. Algumas gotas com sabão voavam na direção do prato. 
Pediu pimenta ao homem, na intenção de ganhar moral, mas não surtiu efeito. O homem bufou ao ser incomodado e sequer levantou os olhos ao entregar os potes encardidos de condimentos. 
Ao sair da padaria, não sentiu vontade de voltar à pensão. Caminhou na direção oposta, lentamente, mancando, disposto a encontrar estímulo para sua história.

Eu estava numa cidade que não conhecia mas a sensação é de que aquela rua habitava os confins da minha memória.

Esboça um início mas logo descarta.
Pensa num sonho que teve. Decide criar algo baseado no sonho.
Lembra dum céu roxo e um letreiro pixelado, estética televisiva. Nada mais.
Talvez uma sensação táctil. Um sólido esponjoso, frio.
Pensa a respeito dos tantos sonhos desinteressantes que já ouviu pela manhã, contados por bocas femininas com gosto de hálito. Olhos inchados, o corpo ainda curvo. 
As pessoas supervalorizam a importância dos sonhos, percebe.
Entrelaça os dedos, estica os braços, sentindo os nervos estralarem. Ergue os braços unidos e joga a cabeça pra trás, estrala as costas.
Estrala os joelhos, os dedos das mãos.
Gira o pescoço, pra lá, pra cá.
Pressiona a nuca.
Todo o ritual pós-diazepam.
Volta ao texto.
Tenta.
Imagina uma placenta, Lígia grávida, desaparecida.
Larga o texto. A ideia já germinou no papel, pode descansar.
Levanta atordoado da cama. Calça os chinelos e vai outra vez até o telefone da recepção. O preço é abusivo, mas ainda não utilizou um segundo sequer - Lígia não atende há quatro dias.
Pagou a primeira diária e está já há três evitando os porteiros. 
Bolou um plano.
Pegará algumas sacolas no mercado. Colocará, aos poucos e ao longo dos dias, itens pessoais nas sacolas. Sairá discretamente até a biblioteca municipal, onde deixará as sacolas, uma por uma, no porta-volumes. Enfim cruzará a recepção com uma única sacola plástica em mãos para nunca mais voltar àquele lugar. Perderá apenas a mala. Tudo bem.
Passa direto pelo telefone. Vai ao mercadinho da frente. Pede algumas sacolas à moça do caixa, que olha desconfiada. Como se ela perguntasse "Vai fazer o que com as sacolas?", emenda: Vou usar pra juntar todas as garrafas que comprei aqui ontem, devolver pro rapaz das bebidas.

     Que rapaz das bebidas?
     Não lembro o nome dele, mas prometi que devolveria as garrafas hoje... Ele me deu um desconto ontem... — decide parar. 

Ela acredita. 
Ou finge.
Entrega sacolas o suficiente.
Ao cruzar a recepção é surpreendido pela presença opaca e sólida do porteiro.

     O chefe tá querendo falar com o senhor.
     Chefe?
     É, o patrão aqui. O dono.
     Falar sobre o que?
     Isso eu não sei não, mas ele pediu pra avisar o senhor pro senhor encontrar com ele amanhã às nove na saleta do café.
     Ah, tudo bem. Valeu.
     Tem de quê não.

Me pegaram, é só o que pensa.





XXI




Passou o resto da tarde no quarto, aflito. Estavam de olho nele, não poderia sair carregando sacolas. Desconfiariam.
Nenhuma grande ideia lhe ocorreu. Sentia algo físico bloqueando o fluxo de pensamentos. Uma trava no cérebro.
Pela primeira vez parece sentir totalmente o peso que o sufoca. Todos os pesos. Não há escapatória. Será preso, não conhecerá o filho, é provável que na cadeia vicie-se em alguma droga pesada, contraia dívidas, arranje inimigos, morra sem direito a um advogado ou ao perdão a que tanto anseia.
Apesar da constatação, não parece sentir medo. É como uma paralisia, acoplada a um conformismo e certo alívio ainda obscuro. 
O que o dono da pensão já saberá sobre ele? Do ATO OBSCENO é certo. Do homicídio, muito provável. Saberá também da fuga planejada? A essa altura já não importa. Encerra-se um ciclo na sua vida. Aos 27 anos de idade encontrou a morte com quem tanto flertou.
Saberá renascer? 
Passa o fim de tarde e quase toda a noite nessa estranha vigília, um tanto amortecido, estático, mal emite ruídos.
Decide encontrar o dono da pensão. Talvez seu último ato de coragem antes da prisão. 
Esboça até um sorriso sempre que se imagina encarcerado. Pega-se fantasiando com dias na solitária. A solidão absoluta, perfeita. O isolamento que nunca obteve totalmente à luz da liberdade.
Tentará falar com Lígia uma última vez, antes de se entregar. Antes do encontro marcado pras nove da manhã na saleta do café.
E então amanhece. Sem grande alarde o sol penetra pelas fendas na parede e janelas. Um sol frio e úmido, um tanto impessoal, sereno.
Hermes cogita um último passeio matinal, mas teme com isso levantar suspeitas de uma fuga que já não mais cometerá.
Aguarda pacientemente a hora marcada. Deita-se um pouco, grato pela textura simples do lençol. Encolhe-se com certa ternura, talvez um amor-próprio. Sorri de tudo isso. 
A trilha sonora do curta-metragem roda na cabeça. É uma boa trilha, sabe. Melancolia e alívio. 
Mais especificamente, o alívio pós-melancolia.
Pensa na mãe morta. 
Não se despediram. 
Tanta pendência não resolvida, perdões por dar e receber.



se eu não fosse eu mesmo
gostaria de ser, mas
ao me ser padeço



Silêncio.




XXII


O Chefe estava lá. 
8:43.
Sentado muito ereto, imóvel, mãos calmas sobre os joelhos paralelos.
Vi seu meio-perfil quando entrei.
Tamborilou com os dedos da mão esquerda sobre o tampo modesto da mesinha. E como se já me tivesse visto sem olhar, iniciou o cumprimento antes mesmo - pouquíssimo tempo antes - de virar a cabeça de uma vez e acertar os olhos diretamente nos meus.

Cerca de 60 anos, magro, calvo, lábio inferior sobreposto, cabeça em formato de lâmpada e um óculos de grau amarronzado que sugeria DISFARCE.


Hermes sentou-se quieto e curioso, em sua cabeça já elaborava a versão fictícia do encontro.

A princípio imaginou que tudo não passava de uma armação da polícia militar em conluio com o verdadeiro e obscuro dono do hotel.

Descartou a hipótese após perceber que seu processo não era relevante a esse ponto. Prenderiam-no sem cerimônia.

Então deduziu que o assunto fosse financeiro. Descontente com o estranho hóspede inadimplente, teriam vasculhado o quarto, encontrado em algum papel seu plano de sair aos poucos com pequenas sacolas...
Aquela seria uma conversa dura e séria. Com requintes de subliteratura noir. O homem que aniquila seu alvo sob o manto da conversa cordial. Que faz o mal com classe.

Mas descartou a hipótese assim que entrou na pequena saleta e notou o aspecto apagado do dono do hotel. Alguém para quem se pode mirar o rosto durante horas e no dia seguinte já não será possível evocar a imagem.

O funcionário submisso surgiu. Baixinho, ereto, olhar que vislumbra um ponto cego à frente, como um soldado que, em postura de continência, olha através do seu superior  aqui não tanto por medo, mas pura e sólida submissão.

Usava luvinhas brancas. Usava até um chapeuzinho preto aveludado, brilhoso.

E foi ele quem rompeu o silêncio, tom de voz dum pequeno palanque ou picadeiro.

Bom dia, senhores!  o corpo do homem treme de cima a baixo.

Hermes sente todos os nervos ao mesmo tempo. Sente-os estralar, ranger, secos.

O funcionário do hotel segue imóvel, sorrisinho orgulhoso e fixo.

Olham-se de frente pela primeira vez, Hermes e o dono do hotel.

Hermes, distraído ou concentrado demais, repara na família que se senta à frente. E depois, como se para equilibrar o peso dos olhos, baixa-os para a cesta de pão no centro da mesinha. Sem fome, apanha um pão e parte ao meio com as mãos. Morde sem vontade um pedaço seco e olha para o lado direito buscando alcançar algo com a visão.





XXIII





     Seu Hermes, por que eu chamei o senhor aqui? Bom, vou falar de uma vez. O senhor deve estar curioso.

Hermes aceita o olhar seco e apático daquele homem bege. Repara na linha reta formada pelas sobrancelhas desprovidas de inteligência. É duro olhar agora de frente e tão de perto pra cara desse homem. Os rostos a uma distância de sessenta centímetros.

     Eu gostaria de te fazer uma proposta, disse o dono.

O homem parece ter a curiosidade curta de uma ave engaiolada. Se esforça pra parecer ambicioso mas não possui a inteligência necessária para perceber e superar suas limitações.


     Você já pensou em trabalhar como vendedor? 


O olhar aviário e pegajoso do homem causa repulsa em Hermes, que tem dificuldade em ler a situação.


     Acho que você leva jeito. Alto, fala bem. Inteligente. Você é do sul?

     Não.

Hermes responde desatento, pousando a visão na família que se senta à frente:
Nenhum dos três está feliz. Todos olham para lados opostos.
O pai notando o inevitável afastamento da filha busca na memória algum assunto em comum.
A filha, entediada, pensa nos amigos da escola.
A mãe, percebendo tudo, busca com os olhos algum funcionário do hotel.

     Não é do sul ou não pensou em trabalhar como vendedor?
     Nenhum dos dois. Ou melhor, eu já trabalhei como vendedor e posso te garantir que sou péssimo nisso. Por quê?

O cheiro de café novo invade a saleta. A família à frente está agitada, agora todos olham pra todos os lados e mexem os braços desordenadamente, em silêncio.

     Você já ouviu falar em Herbalife?

Hermes encurta a conversa ali mesmo. Levanta-se, levando consigo pães nos bolsos, passa pela recepção e sai pela porta da frente, pra nunca mais voltar.





XXIV





Só na rodoviária é que processa todas as informações. Sente-se aliviado. Sente vontade de rir. Rir alto, gritar. Está salvo. Livre. Cai na real: ninguém o persegue! A polícia está ocupada demais para lidar com seu caso.
Não conversam entre si as polícias de SP e MG. No Brasil,  92% dos homicídios sequer começam a ser investigados. 
Sua situação atual é a própria definição que tem de liberdade. Sozinho, num banco de rodoviária, sem planos ou compromissos.
Sem dinheiro também, é verdade. E sem roupa. Sem os textos, abandonados no quarto do hotel. Sem documentos.
É preciso pensar bem. Não conseguirá pegar um ônibus. No máximo uma carona. Estar sem dinheiro e sem os textos, tudo bem. O foda é estar sem RG. Nada mais implacável que a burocracia.
Pode ir à delegacia e registrar um B.O. Dizer que foi assaltado, levaram sua carteira, etc.
A polícia de Três Corações nada sabe sobre seu ATO OBSCENO.
Os pensamentos subitamente estão muito claros. Sente-se lúcido pela primeira vez em meses.
Lúcido, firme e unificado. Determinado a retomar as rédeas da sua vida. 
Há a filha. Está tentando contato, mas Lígia sumiu. Está fazendo sua parte. Não precisa sentir culpa. Vai continuar tentando.
Será um pai de verdade, sabe desde o começo. Já não resta angústia sobre isso.
Percebe que deve voltar a São Paulo. Claro! A essa altura a poeira já baixou.
Tantos outros assassinatos já foram cometidos desde que fugiu. Seu caso lá também já foi esquecido, conclui otimista.
Será mesmo que matou aquele velho? A lembrança agora está mais para sonho. Um sonho distante, de infância. Não sente que matou um homem. Será assim mesmo? O peso do homicídio é apenas uma questão ética, jurídica?
Talvez a vida não tenha tanta importância, no fim das contas. Nasce-se, morre-se. Bilhões. Milênios. Gente surgindo e sumindo em algum instantinho dessa história. Menos importantes e eternos do que gostaríamos. Tão ignorantes quanto os que passaram; não menos sábios que os próximos, sempre cheios de si.
Assassinatos, filhos não-planejados, problemas conjugais, rotinas absurdas, doenças incuráveis, prodígios de alguma arte ou ciência, dilemas, conclusões que enfim explicam tudo!
O velho, se morto, não fez diferença no balanço dos dias. Não há porque sentir culpa. Além do quê, é bem provável que tenha sido mesmo um delírio. Foram dias estranhos aqueles. Muito álcool e muito valium. Pouco alimento e muita crise. Aquela porta quebrada representando a própria fase. Inércia, falta de grana ou ânimo. Aquele prédio. Luiza. O Carequinha.
Um cachorro vem cheirar seu saco e ele se assusta. Não gosta de cachorro, mas jamais confessou. Esse crime sim, seria hediondo demais. 
Espanta o cachorro magro, que aprendeu um olhar triste pra conseguir mais sobras. E já que não há outra opção, dirige-se até o guichê de informações a fim de descobrir onde fica a delegacia mais próxima.




XXV




Nota pelo canto do olho, num banco da rodoviária, uma garota se contorcer. A imagem é estranha demais para que ele não olhe frontalmente. Olha e percebe que a garota está convulsionando. A cara torcida de dor, o corpo magro afundando no próprio corpo, a mão na cabeça, tentando bloquear a dor evidente. Os olhos orientais já sem foco, nos poucos momentos em que são abertos. Hermes quer ajudar, não sabe como, sua própria mente trava por um instante. Olha pros lados, ninguém parece notar a garota.
Vai até ela. Você precisa de ajuda? Ela não responde. Sequer ouve a pergunta. É tão bonita, ele enxerga agora. Uma cabeça grande, larga, meio quadrada mas delicada. Tipo uma porcelana oriental pintada por mãos pequenas. O contraste entre a delicadeza e a dor é insustentável. Hermes grita por ajuda, olhando desesperado ao redor. Demora um pouco até que comecem a oferecer ajuda. A multidão vai chegando. Alguns dispostos, outros apenas curiosos.
Logo a moça desaparece em meio à multidão, que se entrepõe entre eles. Um homem de pescoço largo carrega a garota no ombro enquanto alguns chamam a ambulância.
A ambulância vai demorar demais, concluem, é melhor levá-la direto ao hospital.
Alguém se habilita a levá-la de carro? Hermes não tem carro. Não sabe dirigir. Algum voluntário surge com uma chave na mão e diz "Eu levo".
O homem de pescoço largo coloca a garota no chão - Hermes vê de longe - e faz massagem cardíaca. Parece empenhado e aflito. Enxuga o suor da testa com o dorso de seu braço largo. Olha desesperado ao redor, como se procurasse uma saída. Volta a pressionar o peito delicado da moça, já morta.
Um silêncio sepulcral se derrama sobre a cena. A rodoviária inteira se cala, até os motores, ambulantes, cães magros, crianças de pais cansados, a voz do falante. Hermes imóvel sente os ombros relaxarem, o corpo vai arqueando. Sente os pés fincados no chão. Um desfoque no olho. Uma tristeza estranha e aguda.
A bagagem da garota ainda está no banco. Ele vai sem elaborar motivo. A moça trazia pouca coisa. Uma mochila e um livro. Demian, Herman Hesse.
Pega o livro e esconde sob a camiseta, entre as costas e a cintura da calça. Olha pros lados. Ninguém o observa. Pega a mochila e sai rápido dali. Encosta no muro externo da rodoviária e fuça a mochila. Logo encontra a carteira, os documentos da garota. Diane Santana, nascida a 22 de janeiro de 1990, registrada em São José dos Campos/SP. Uma assinatura infantil, manuscrita, o nome por extenso. A foto 3x4 data de uns 10 anos atrás, quando a adolescente Diane ainda usava maquiagem escura e uma mecha verde no cabelo. A típica adolescente com necessidade de ser alguém e afirmar isso. Mas em Diane essa afirmação soava natural. A beleza delicada já era evidente, apesar do excesso de cores e informações, brincos e piercings.
Imagina a garota indo tirar a foto pro documento vestida daquele jeito e a mãe protestando. Talvez uma cena de briga, uma porta batendo. A mãe aflita, sentindo culpa por julgar demais a filha, calculando se essa briga levaria Diane para longe dela, longe de casa. Diane, que escrevia poemas e sonhava em ser escritora. Que nos anos seguintes entraria em Letras na Federal e sobreviveria dando algumas aulas e corrigindo textos, TCCs, dissertações. Que arriscaria algumas traduções Espanhol/Português. Que moraria num apartamento em São Paulo, dividido com outras estudantes e seus namorados que a princípio as visitavam mas após alguns meses já moravam ali, tirando sua privacidade. Que partiria sozinha numa viagem rumo a São Thomé das Letras e na volta morreria sozinha na rodoviária de Três Corações. Que deixaria incompreensão e saudade. Palavras não ditas. Livros emprestados. Um bilhete e uma calcinha num envelope, na gaveta de algum amante antigo, descartado como uma roupa que perdeu a forma do corpo. Um amante que talvez ainda pense em Diane, com certa culpa pela forma como tudo terminou. Que talvez até guarde consigo um livro que fosse dela.
Hermes esconde a mochila num cantinho e volta ao banco para deixar o RG. Para facilitar os registros e possíveis contatos com a família da garota.
Depois pega novamente a mochila e sai pra caminhar.




XXVI




Para num banco de praça e abre a mochila. Fuça os bolsos, encontra um fone de ouvido, papéis amassados, tampas de caneta, um elástico, remédios para dor de cabeça, a passagem da garota, rumo a São Paulo dali a duas horas. Na carteira encontra duas notas de cinquenta e alguns trocados. $132 ao todo. Mal acredita na própria sorte.
Come um baita prato de comida no restaurante popular. Toma café e come uma cocada escura. Cogita beber uma dose, mas não há desejo real, apenas o hábito. Paga a refeição para uma moça gorda e desanimada, que o informa o horário.
Ainda tem algum tempo até a partida do ônibus.
Tentará embarcar, mesmo sem documento. A passagem, por sorte, não tem nome impresso. Diane, por sorte, ainda não havia escrito o próprio nome na passagem.
É sua chance de voltar pra casa!
Sente alegria e espanto. Vai até a delegacia, pedindo informações que nunca se concretizam. Encontra a delegacia quase por acaso. Registra um B.O. Diz que foi furtado na rodoviária. Que roubaram sua carteira, que estava na lateral da mochila. A funcionária que registra o B.O. parece pensar "Como você pode ser tão estúpido de deixar a carteira à mostra, na lateral da mochila, numa rodoviária?"
Hermes lamenta por ser visto como ingênuo. Mas no fundo sente orgulho de sua manobra arriscada. A burocracia corre surpreendentemente bem. Sai dali com um papel em mãos, declarando o ocorrido, seu nome e documento impressos. Aparentemente nenhuma queixa oficial consta em seu nome, ou a funcionária teria dito. Não faria o B.O. Não entregaria assim tão facilmente o bilhete premiado que tiraria Hermes dessa situação absurda em que se meteu.
Tem algum dinheiro, mais dois livros na mala, peças de roupa feminina que ainda pretende examinar e cheirar. Torce pra que tenha alguma calcinha usada escondida em algum canto da mala. Tem acima de tudo uma baita história pra contar, pra assimilar.
Diane morreu para salvá-lo?
Não. Mas morreu e salvou-o. Hermes ri, enquanto caminha de volta à rodoviária.
Pensa com carinho em Lígia. Mal pode esperar para reencontrá-la. Quer saber sobre a filha. Quer aproveitar essa terceira chance que recebeu. Acha espantoso como a vida sempre se resolve por caminhos imprevisíveis, quando tudo parece já fadado a um fim cruel. Agradece a sorte que tem. Pensa em Diane convulsionando. O rosto como uma pedra milenar que contasse a história de séculos de guerra, navegações, dinastias, samurais, imigração, solidão e morte na cidade grande.
Sente amor pela mulher que conheceu morrendo de dor. Que salvou sua vida fadada ao suicídio, cedo ou tarde.

Tento mas não consigo sentir melancolia pela morte da garota. Sinto apenas a dor daquele rosto. Sinto piedade, sinto amor. Gostaria de cuidar da jovem Diane, dizer para que ela não abuse dos antidepressivos na vida adulta. Sobretudo que não os misture com álcool. Dizer para que tome cuidado em sua viagem a São Thomé das Letras. Que repare no homem sem bagagem que passará por ela num dado momento, e que vá ao encontro daquele homem, abraçá-lo, mesmo que isso não faça sentido na hora...
Abro um dos livros que encontro na mala: Poética, de Ana Cristina Cesar.
Mergulho na leitura enquanto aguardo minha partida rumo a São Paulo.
Outra vez.







FIM