quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Essa dor



O desespero e a incompreensão me deixaram.
Assim como todos,
me deixaram.
(Ou fui eu quem os deixou?)

O que restou?
Uma tristeza calma.
É triste, sim.
Dói, sim.
Mas dói de modo sereno,
quieto.
Pela tranquilidade da tristeza, sei: será duradoura.
E quase sinto seu afago.
(Quase…)

Tristeza irremediável,
insubstituível,
tristeza límpida.
Mais digna que o ódio.
Mais pura que o amor.
Mais simples que a felicidade simples.

Dor que me acompanha por todo o caminho até em casa.
Se afasta do trânsito junto comigo, penetra na noite fria e clara,
dobra a esquina ao meu lado e sobe a ladeira admirando as casas.

Num relance, penso que a presença da dor é a de um amigo
e quando vou dizer “que casa linda, não?”, percebo que a dor
não tem ouvidos. E me calo.
Quase esboço um sorriso.
(Quase…)

E entro em casa pensando,
acho que vou tomar um longo
banho quente
hoje.


açougue


o açougueiro parece ser insensível.
tem de ser.
para suportar o mau cheiro, estúpidas donas de casa, o matrimônio, seu reflexo.

o açougueiro é incapaz de levitar;
mantém firme sua pegada encardida. mantém absorto seu olhar de homem-bege.
mantém calado tudo o que não pensa.

(não pensa.)

cá pra nós, tampouco é homem viril.
apenas veste seu uniforme asqueroso
e seleciona peças de cadáver.
                                             

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Espelho

                                                                 "Do outro lado da morte talvez saiba
                                                                                       se fui uma palavra ou fui alguém."
                                                                                                  J. L. B.

Gostaria de ser aquele homem
que se surpreendeu ao primeiro espelho —
fonte inesgotável de prediletas narrativas.
Ou então, já consciente do espaço que ocupo,
vislumbrar meu rosto árido numa poça ou rio
(talvez aqui acabasse como Narciso).
Mas essa utopia me escapa.
E me falta perceber que sou tão primitivo quanto o homem refletido no primeiro espelho e, portanto, passível de me enxergar num primeiro espelho do futuro.
Mas essa utopia provavelmente me escapará também.
Terei sido apenas (numa afetada memória afetiva do meu futuro) o próprio espelho
que projeta seu reflexo em grossas folhas de papel.

Essa utopia certamente me abraçará, enfim,
quando todos os braços estiverem enterrados.


                              Montes Claros/MG, 23 de janeiro de 2013

retorno

por que
tudo se
repete
tanto?


Diáfano ou Um poema sério

A racionalidade totalitarista —
Racista — faz do povo um pormenor do estado.
Então é mais fácil por menores no semáforo —
Diáfano — enquanto gênios diplomatas escrevem
aforismos e metáforas (suas canetas custam muitas vidas de semáforo)
com suas canetas e blocos imbatíveis.

Os blocos dos seres de ego pequeno e murcho —
Sem rejunte — não resistem à terceira tempestade.
E a cidade, infestada de antíteses, boceja.


                              Montes Claros/MG, 19 de janeiro de 2013

Clandestino

Furtivamente, pela fresta
gozo espiando pernas sem rosto.
Como clandestino, piso leve e tusso baixo.
Fecho a janela. Tranco a porta.
Clic.
Fatalmente, fui à festa.
Gozo expiando a culpa da falha.
Como sem destino, piso leve e tusso baixo.
Acendo a luz. Cubro o rosto.

E não adiantaria tentar descrever essa sensação de insetos me salpicando a pele,
o couro cabeludo, o corpo todo.
Em vão seria.
Resta dizer que, durante a pausa entre os versos acima, fui de clandestino a caixeiro-viajante.
E isso basta.


                              Montes Claros/MG, 22 de janeiro de 2013

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Hamster

Não seria como o porquinho-da-índia de Manuel Bandeira; mas se nego a semelhança, alego que ela existe.
Percorri árduos 1100km para perceber isso. E mais.
Para perceber a garota de riso leve (o leve positivo de Parmênides) e infindável.
Leve como hélio, flutua.
E essa leveza se torne talvez negativa enquanto nossos beijos rarefeitos,
feitos de dentes e hálito.
Negativo porque dúbio:
Ri de escárnio ou alegria?
Ri porque percorro outros árduos 1100km nos atalhos do seu corpo e me perco?
Ri por saber que sua leveza agora me sufoca?
Ri porque é bom?
Não pergunto.
Posso percorrer ainda outros árduos quilômetros atrás da resposta e compreender mais que os fatos:
  • Ela não é o porquinho-da-índia de Manuel Bandeira;
  • Ela não é minha primeira namorada.

                              Montes Claros/MG, 20 de janeiro de 2013

sábado, 19 de janeiro de 2013

costura

outra vez
à deriva:
estrada mar vento raiz
não importa.

numa cama alugada,
poetizando a mim mesmo
com lápis
e uma camisa branca abotoada até a metade.
encarando um espelho que reflita talvez a parede
ou não seja espelho.
encarando a antiga TV 10 polegadas que
conectada,
não diz.
ela está sobre uma antiga máquina de costura,
dando um tom realmente nostálgico à cena repetida:

outra vez
à deriva.


                               Montes Claros/MG, 18 de janeiro de 2013

Mudança


Bukowski me soando bucólico
J. Joyce me soando patético
Rimbaud, óbvio demais.

Bandeira me soando muito frágil e
João Ubaldo soando prosaico.

Dostoiévski desnecessário,
Turgueniev mal-traduzido.
Maupassant passou do ponto e
Allan Poe não quero ler.

Largo todos os livros e vou comer pão com linguiça.


                               Montes Claros/MG, 18 de janeiro de 2013

sábado, 5 de janeiro de 2013

ria!


esse mundo não merece o seu sorriso
de menina leve
          que leva em si tudo o que não mais existe nesse mundo

mas
mesmo assim
                     ria!


Poema noturno


Ordeno meu sono para que
jamais ocupe-se de toda a cama,
guardando assim, imaculado
seu lado preferido.

Ao meio-sono (pretenso sono profundo)
prevejo sua silhueta se libertar da bolsa
e o peso do seu corpo, antes tateando,
em seguida distribuíndo-se pelo
colchão seu canto ainda frio.

No meu sonho (pretensa realidade)
você não me encosta.
Deita de costas para mim, tal como no passado 
(pretensa lembrança) e então compreendo
o que minha memória obscurecia,
numa ordem de seleção natural:

não somos mais.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Oriental

Seus incríveis olhos orientais acreditariam em mim?
Ririam de mim?

Você é pontual.
E eu sei disso.
E você sabe que eu te espero e
você sorri
e
seus felinos olhos orientais me fitam
por de trás dos olhos.

"A propósito", você diz,
"Eu me chamo Patrícia. Como é mesmo o seu nome?"

Você escancara outras intenções quando
eu digo meu nome e sigo seu rastro,
calado.


vigilantes


os vigilantes da moral estarão
prontos para te delatar assim
que sua mão aberta atingir
a face do motivo pelo qual
você teve de esmurrar sua
garota sobre trilhos escuros
e os cassetetes da moral
arderão como cubos de gelo
sob a pele sem que haja uma
chance para explicações plausíveis
e eles estarão na verdade
defendendo as próprias mães
enquanto exalam uma jornada
de doze horas pelos poros
mas as algemas desistirão quando notarem que o trem acaba de chegar
à estação final.

Poeta pedante

O poeta parece brincar de trava-língua


                                                            pedante


o poeta é um fantoche conduzido por si mesmo
com um diploma na escrivaninha
contente
se queixa e janta
e parece que na mesa
o poeta não usa
seu cavanhaque postiço.


emoção

descrever uma emoção
não é senti-la

de modo que acabo de perder
o que estava sentindo



Poesia

Voltei a ser poeta.
Não sei se é divino
Se é místico
Não sei se é inspiração
Mas voltei a ser poeta.

Me falta agora um filho pra velar
Outro amor perdido
Um exílio sujo, ou retornar sujo do exílio
Me falta uma nova fome
Ou me surpreender com uma nova sinfonia.
(Me falta argila.)

Vivo a descrever uma temporada que se encerrou.
Não posso querer saber o que me espera
Mas disso eu sei:
Voltei a ser poeta.