domingo, 18 de novembro de 2012

sábado, 17 de novembro de 2012

outra chance


construa uma eficiente rede de esgoto e você terá
baratas e ratos proliferando

construa uma praça calma e verde para os velhos e
terá viciados

alimente um sistema orgânico e você terá
o câncer,

me dê outra chance e eu estragarei tudo.

crie empreendimentos e então você verá todo o tipo de
armações desonestas
cruéis, plenas
óbvias

coloque animais –
ratos ou cães ou humanos ou cavalos
em um quarto fechado e volte em
uma semana.
terá cadáveres mutilados, pútridos
e sobreviventes com olhos opacos
sobre a carniça.
num átimo você pensará nos olhos de
Klaus Kinski
mas esquecerá, quando um sobrevivente avançar em sua direção,
insaciável.

siga o roteiro:
pinte cartazes
vá para a rua
pinte o rosto
grite “liberdade”
exija mudanças
derrube o governo
então,
tudo começará outra vez.

coloque ternos em humanos e observe:
pescoços que inflam
frias mãos suadas
sorrisos de extrema cordialidade, extrema direita, extrema esquerda
gravatas
lenços
ópio

eleja um deles e você receberá tudo de volta:
redes de esgoto
praças
remédios para o câncer

outra chance.

nossa estria


nossa estria é um mosquito zunindo.

o poeta diria uma corda no pescoço
ou grilhões sobre os membros
mas não é assim tão vital.
é um cachorro mordendo o calcanhar
é tentar lembrar o que se esqueceu
e não lembrar
é rimar sem intenção

só me enxergo com seus olhos e o que vejo é cruel.
nossa estria são cupins roendo meu ego
quando a noite cala.

com maestria você rege a orquestra fúnebre
do silêncio –
seu rosto se transformou,
parece borracha.
nossa estria são cupins roendo minha cama
quando a noite seca.
                       
essa estria
(que embora às vezes quase suma)
                pode se tornar cicatriz coronária
quando peço doses,
e só na terceira percebo
que essa é a bebida do nosso
primeiro ritual –
                                 e já aqui você dissimulava.

                               as estrias que você tanto escondeu
                               não se parecem em nada com as que
                               mostro agora.


essas doem,
acredite.

Metaforando


Como caravela que resiste
ao impulso brando do vento
por pura resignação,
eu permanecesse aqui.

Há também a metáfora da flor
(particularmente não gosto dela),
que não cria raízes profundas
e o vento leva (o mesmo vento).

Tenho âncora.
Crio raízes, só não permito que os galhos me sufoquem.
Sossego, me estabeleço, absorvo, sugo,
compreendo e floresço;
a raiz fica.
O que voa são pétalas, pólen. Fragmentos de mim,
que novamente se fortalecem,
e os agentes polinizadores – singelos bichinhos
não são assim tão singelos.

É a angústia que me faz partir.
É a angústia que me parte em fragmentos que se dispersam,
mas usando a metáfora que você me impôs,
floreio a vida real.
Transformo problema em intempérie, lembrança em raiz,
eu – totalmente confuso e desnorteado – em pólen…

Ah, maldita poesia, que nubla a compreensão da vida!

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Partes


Existe uma parte em mim
que se tornou personagem da própria criação.
Outro pedaço quer desistir
da criação por achá-la inútil e frágil,
ao passo que uma outra parte evapora,
se perde.

Surge o embate.

Ambas se preocupam com a erosão da alma.
Uma argumenta,
a outra é desilusão.

Vejo minha parte mais nobre se perder
e por ser vapor, os dedos não agarram.
O texto agarra,
parte.
Esse texto…
letras de papel,
digitais,
flácidas, sensíveis demais.

Talvez minha alma não evaporasse,
não estivesse diluída –
solução aquosa de alma 
e lágrimas que também evaporam.

(Agora mesmo:
uma parte vê esperanças nesse poema,
outra parte se agita, sua frio,
enojada por palavras tão imprestáveis como:
alma, dor, lágrimas, evaporar, desilusão…
Palavras tão ditas!
Nada aqui é novo;
o ego sensível camuflado em alma
que não quer dividir o brinquedo
e aí chora, esperneia, se agita.
Rouba palavras de uma baciada,
uma pechincha,
"escreva poemas instantâneos!"…)

Talvez exista ainda outra parte
que apenas assiste ao duelo,
em silêncio e impotente.
Essa parte já não tem voz.
Mas o suficiente pra sentir
vergonha e piedade.


Recebo uma visita inesperada.
Alguém está à minha porta.
É minha vizinha que me traz um pedaço de bolo
e lágrimas.
(Num relance, invejo suas lágrimas.)
Ela se acomoda em minha cama e fala durante uma hora e meia,
alternando momentos de choro e riso.

Seu choro não me comove,
seu riso não me encanta mais.
Só o que sinto é um estranho mal estar diante de tantas palavras.
(Chego a duvidar que ela esteja realmente ali.)
Parte de mim busca um meio de transformá-la em literatura,
outra parte pensa em pedir para que ela vá embora.
Todas as partes se agitam e se chocam, causando uma terrível tontura;
sinto minha cabeça esquentar, latejando.
Minha parte personagem se considera Meursalt, aturdido pelo Sol
que são essas palavras numa lamentação covarde, infantil, patética, conformada, constipada, ridícula
e sem qualquer sentido.

Já não absorvo nada do que ela diz,
apenas concordo educadamente e me preocupo por estar sem cuecas
Não encontro posição adequada.

Desde o momento em que parei de ouvi-la grudei num choro desesperado 
que frequentemente se mescla a uma melodia que minha cabeça lateja de modo repetitivo.
Quando penso ser a melodia, retorna o choro.

Todos os cães do morro parecem latir.

Então ela fala algo sobre querer ter coragem para viver como eu,
dou risada e penso que também gostaria dessa coragem…
Ela parece nem perceber, segue com um sorriso cansado – olheiras como varizes –
tentando disfarçar sua fraqueza escancarada.
Fala Fala Fala Fala                            Fala Fala Fala
                   Fala Fala Fala Fala             Fala   Fala
                               Fala Fala Fala     Fala
                Fala     Fala            Fala Fala
aí diz “Bom, então vou indo…”.
Levanto e a acompanho até a porta. Ela diz “então tá, boa noite”.
Boa noite. E volto ao meu silêncio, um pouco preocupado.
Estou sentindo aquilo. Mau sinal…
Me deito muito encolhido.
Afasto o violão e a folha em branco, visto um grosso casaco e me protejo da luz, que esqueci de apagar. 

Parte de mim se parte.

Sou todo uma só parte agora, mas já não sei qual… sinto um certo temor; me cubro.
Bloqueio qualquer palavra dita pela minha mente agitada, bloqueio a criação, bloqueio pensamentos obscuros, bloqueio a ideia de um longo dia de folga amanhã, para onde me projeto e posso já sofrer de tédio e fraqueza emocional.

Tento não existir, sem êxito.

Alguma coisa está realmente fora do lugar.
Isso me é óbvio.


domingo, 11 de novembro de 2012

noite e flor


terça-feira
dama ocre.

minha cabeça
numa bandeja,
minha bela
ocre tem
gosto de noite
e cheiro de flor.

dama da noite
dama insone
de raciocínio lúdico
e fala lânguida.

natureza
onde sou concreto, com olhos de farol oculto na noite que ela mesma cria.

essa minha
bela dama
ocre insone
lúdica lânguida
oculta e concreta
na noite que eu mesmo criei.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

academia (ou poema para Fernanda)


eu disse a ela:
para de perder tempo retificando os erros!
e ela me disse: desculpa!

eu disse: não se desculpa, isso não tem importância!
               chega logo ao ponto! chega logo ao ponto!
tudo bem, ela disse, eu vou tentar.

tentou tentou tentou
e não chegou a ponto algum.
tocou trinta teorias
topou em trinta filósofos
catou diversos movimentos
rememorou sessenta citações
e não disse nada!

tremeu um fonema:
ai, desculpa!

berrei,
ela riu.

“é que eu preciso de um aparato enorme de tranquilidade, gestos e citações.
  e a metodologia...”

minha amiga não percebia
a armadilha
em que havia se metido
com seu pensamento acadêmico.

tentou por mais quarenta minutos
me dizer sua opinião
mas, aparentemente, os autores, os gestos
as teorias, as citações e a forma
estavam muito além do seu
alcance
naquele momento.

foi embora
fazer prova.

torci para que os teóricos a iluminassem
nessa.

quase lá



não é só isso, amigo.

é já ter compreendido o filósofo,
é saber destrinchar uma intenção
perfeitamente,
é não encontrar dificuldades em levar uma mulher à cama e
conseguir prever todas as palavras que sairão daquela boca vil
é estar vivo, com pernas que funcionam e dedos que apontam.
é ter rompido a placenta e ainda assim não compreender
nada
quando ela sai pela porta levando sua toalha e
todas as outras tralhas que me faziam companhia em
noites como essa.

sua bicicleta atravancando a cozinha já tinha até conquistado seu espaço
e parecia não mais atrapalhar,
aliás,
sua bicicleta já fazia parte da minha mobília precária.
sua vermelha toalha pendurada era como uma charmosa cortina de sublime tecido.
seus cabelos como água-viva espalhados por toda a casa…

bem, ainda tenho o filósofo, a cama, a boca
e palavras que me salvam em
noites como essa,
onde já sei tudo e conquistei tudo
mas pareço um leproso ao espelho.

nessas noites de vinte e quatro horas e cupins.
nessas noites de comprimidos.
noites de faca afiada, noites de martírio, de auto-piedade,
noites que se parecem em muito com noites.

noites de tuberculose.
aneurismas.

de culta incompreensão dos fatos,
de sábias palavras inúteis, de podres metáforas pedantes,
noites de úmido frio e insônia.

noites sem ela ali,
desfilando sua nudez a pedido meu,
enquanto me espalho pela cama sentindo esse breve amor
que uma toalha vermelha
é capaz de enxugar.

Aquarela


Não peço um conselho.
Busco ouvir uma segunda voz,
Não-impregnada com meu perigoso tendencialismo,
Não coberta de dogmas.

Poderia ser resposta,
Não é.
Não peço o gabarito,
Apenas outra cor de giz na lousa.

A palavra limita, mas define.
Reconheço o cabresto – sou animal.
Reconhecê-lo me torna superior?
(Por favor, sem metafísica agora.)

O véu é instável,
A luz que o atravessa chega mística.
Mas por favor, sem misticismo
agora.

Preciso de carvão. Preciso definir.
Sorria para o meu auto-cabresto
que me faz andar, seguir...

Não é pedir nova cor,
Mas um novo ângulo de luz
Que poderei facilmente bloquear
Ao julgar necessário.
Posso obstruir com o véu instável.

Mas chega de mágica, misticismo.
Sou cético, sou cérebro.

Chega de racionalismo. Sou fogo,
Faísca, coração, magia.

Chega de véu, sou cego.
Preciso seguir. Sem metafísica.

Preciso alinhar a voz e o véu.

Preciso                           preciso
                  
                        Preciso                                                                   preciso
    Preciso   preciso   preciso   preciso 
                                                              
                                                             É preciso ser preciso!

Sem preciosismo.
Preciso ser humano. Errar, seguir, corar.
Reconhecer mágica no giz,
Pedir conselho à lousa,
Ouvir o misticismo da luz,
Definir o que é mágica, o que é necessário. Limitar.
É preciso dar forma.

           Concreto?
Cimento?   -   Neo-concreto?
           Abstrato?
  Metafísica? Cafeína?                                                                        

Depende da atadura dada
  ao cabresto.
    Que limita, define, ilumina, bloqueia, atravessa, manifesta,

mas jamais explica.


tantas palavras...



então
é por isso que as pessoas regam plantas
                    e levam seus lixos pra fora
                       e recorrem a um Deus
                                e têm filhos…
e é por isso que os pais abandonam seus filhos
e os filhos procuram os pais por toda a vida
                                        em outros rostos          
                                           e identidades
e ao encontrarem se decepcionam e choram.

é exatamente por isso que alguns cometem
suicídio e fogem, enlouquecem, erguem prédios
e escrevem poemas se queixando disso
frequentam puteiros, enchem a cara de valium
ganham estradas, perdem o orgulho,
brocham.

é por você que homens tacam fogo em seus próprios olhos
e transtornam avenidas, nus, e passam a noite em cana
e sustentam as têmporas com um gole de vinho
e enxergam afluentes nascendo da pele frágil
martirizada por canivetes cegos que foram úteis na estrada quando a única opção era manga verde do pé.

é por isso que homens marcam obras-primas.
e comemoram a taça ou festejam recordes

é por isso que as mulheres tomam anti-gases e compram revistas descartáveis
e alisam o cabelo descartável e disputam o amor descartável com uma faca sob a saia…

por isso existem tantos documentários tendenciosos
e por isso existe a depressão, incompreendida pelos que nunca sentiram isso, então seguem
regando plantas,
confortáveis, vivendo em consignação, à espera da extrema unção que redimirá
seus pecados secretos que sequer são interessantes.

é disso que as baratas se alimentam.
é por essa fresta que entram vagabundas com sorrisos injustos,
roubados de homens ensandecidos que não queriam o aborto
e que tiveram sua sorte abortada por mulheres aparentemente frágeis e
doces.

por isso as pontes são tão altas
e os esgotos tão escuros.

por isso tantos idiomas, tantas crenças, tantos mantras, tantos filmes, tantas palavras…
por isso a incompreensão absurda sobre um fato simples, o choro,
o aborto…
por isso os filhos seguem buscando seus pais por toda a vida;
em corpos, copos, cabelos loucos, olhos estranhos,
peles insípidas, putas que forjam em alemão,
rodoviárias, borracharias, bares,
músicas, quartos de hotel, o susto de um alce em meio à paz suspeita da floresta.

por isso estou aqui,
por isso tantas palavras…

para espantar isso
que insiste em chegar,
mesmo quando o equilíbrio acena como um velho camarada…
e foi justamente isso que estiou a tempestade de lágrimas
por tempo indeterminado.

bom.
sem lágrimas.
é mais fácil assim.

enfrentando isso com os olhos brutos e
prontos.

Um banho quente


Ah, um banho quente!
Suficiente pra afastar 
tudo o que me é mau.

Poeta,
pra lá com a sua dor!
Procure outra porta hoje!

Molho as costas,
os braços,
a virilha,
os pêlos,
a nuca.
Por fim o cabelo.

Sinto toda a água quente me proteger
e livrar de mágoas e incertezas.
Um delicioso e demorado banho quente
e que se dane o mundo e que se dane a conta!

Que sensação!

(...)

É verdade que não a sinto agora  
Apenas rememoro   afinal,
como poderia escrevê-la 
sob o chuveiro?

Além do quê, 
descrever é não sentir.

E eu sinto.
Ah, sim!


sim, o amor



tudo bem, amei.
agora vou falar do amor –
efêmero como um gás que alucina
e logo dispersa,
danificando.

amei e dói.
agora posso entrar pro clube –
clube dos que se lamentam
como frágeis cães em noite de
inverno.

sim, é bom.
e conheci a perfeita sinfonia –
gemidos em uníssono, tapas que marcam o tempo
violinos solando promessas quietas,
sustentados por contra-baixos de salário e porra, 
maravilhados com a suavidade
do discreto cello de cafunés e…
ah!
o sopro,
como dizer?

foi tão sublime!

como se chama mesmo aquilo?
digo, aqueles silêncios ofegantes, cheios de quase…
quase premeditados.
a selvageria de dentes que mordem escancarando o escárnio –
mais excitante que flerte proibido
de longe.

sim, o amor existe.
mas também se acaba.
sempre.
e é sempre assim.
dói.
sim, dói.
e é dor física. metafísica. metafórica. fantasmagórica. escura e densa.
dor que caminha como aquele estranho homem de um sonho antigo
que você projeta no espelho todos os dias.
até nos dias em que não enfrenta o espelho.

é, não é para qualquer um.
é preciso muita coragem,
sobretudo
na hora de assumir:
“bom, acabou.”
“é, parece que sim. então tchau.”
“tchau, se cuida.”
“você também.”

“qualquer coisa liga.” e termina aqui.

sim, ninguém ligará.

sim, nos resta o poema.
e só.

um dos últimos


lhe mostrei um dos últimos poemas e
ela ironizou
uau, profundo hein...
bom, não é profundo, mas é preciso.

           “às vezes você fala demais.”

decidi encerrar.

ficamos num silêncio leve até que
eu me vesti e nos
despedimos.


Vi, vi


Vi vinte e cinco elas,
mas nenhum elo que me ligasse a eles.
Vi todos eles.

Vi faces de amendoim, cabelos de assunto,
vi Fortunato, o poeta Ariano, vi infortúnio.
Vi trinta e cinco elas.

Saí cedo demais, não trágico: doloroso apenas.
Na viela improvisada não vi ela.
Vi tratores – objeto do meu prazer –
asfalto removido, uma lâmpada, jaquetas.

Vi bela donzela.
(Seu cabelo me roçou o braço)
Vi cadernetas em branco,
sorrisos brancos em brancos rostos de amendoim,
ai de mim, encontrá-los!

Vi sobretudo a prostituição da poesia.
Assistida por sorrisos nervosos de perfeita barba,
estudantes “sim” e seu ininterrupto aplauso.
Na palestra do poeta vi setenta e cinco elas,
mas não a encontrei por lá.

sempre quase


é como o incenso que tem melhor cheiro quando lacrado
ou
a igreja que por foto é mais atraente.
é como aquilo, aquilo, aquilo, ou aquilo e isso e
aquilo outro.
é como uma trilha já desbravada que o guia-turístico ilustra
inseguramente.
é subir até o monumento do Cristo com a caravana;
expectativa
suor
fome
ansiedade,
crendo calado e egoistamente num milagre iminente
e ao chegar lá ouvir alguém dizer
“bom, vamos descer, pessoal?”
e o milagre não aconteceu, e o monumento do Cristo é só uma estátua
e você foi logrado e além de tudo roubaram sua câmera fotográfica
com fotos óbvias de sorrisos de papel e fraternidade plástica.

é como andar pela estrada imaginando o próximo destino.
é chegar numa nova rodoviária e enxergar as mesmas pessoas,
nas mesmas situações e semblantes e sonhos
e até os cães que rondam por ali têm alguma esperança.
é como retornar à sua cidade natal com uma inquietação ímpar;
rever amigos, rever lugares, rever a praia e
os amigos estão no mesmo lugar, contando as mesmas piadas e
os prédios não mudaram, a praia ainda é feita de areia e mar,
os semáforos seguem orientando um trânsito brocha e
você enfim se lembra da última vez em que esteve aqui e prometeu
não voltar tão cedo
justamente por isso;
por tudo estar sempre igual, por tudo ser sempre frustrante e falso e insuficiente
e sempre quase.
é como fazer faculdade para ter um diploma e perceber que algo está errado.
é como fazer terapia e não entender nada.
é tentar suicídio semanalmente e fracassar semanalmente.
é como um circo. é como um apático show de fantoches.
é como a morte.

é a vida…

o preço



“a cada vez que eu te vejo fico mais preocupada”, me dizem.

não se preocupem, eu digo.
é verdade que ando sofrendo de insônia, crises de paranóia,
as lutas têm me deixado rastros e ando mal alimentado, sem dinheiro –
                                                                    gastei excessos com álcool e sexo –
minhas mãos andam trêmulas, o pau já foi bem melhor, tentei suicídio,
minha porta está arrombada (eu mesmo o fiz), fundas olheiras, magro demais,
estou carente e frágil – sei disso –, querem meu pescoço, clonaram meu cartão,
enxergo o que não está ali, meu gás acabou, minhas roupas estão apodrecendo
                                                                                                                   [na umidade,
minha casa está imunda, ando estressado, ansioso, mal humorado, sem créditos na praça, odiado…
meu cerco está realmente se fechando,
e sei que estou me tornando um clichê.
é inevitável.
eu escolhi ser sozinho.
eu escolhi não estar sóbrio.
eu escolhi pensar até a exaustão mental e física.
eu decidi abdicar da tradicional felicidade – estúpida – para ter argumentos.
eu decidi colocar meu corpo à prova para conhecer meus limites – nunca os encontrei.

estou onde decidi estar, agora pago o preço.
                              
                               é alto,
                mas enquanto o poema e a música seguirem dispostos
                e elas seguirem entrando e saindo por aquela porta,
                estará tudo bem
                comigo.

mas agradeço a preocupação.


Homicídio


Sim, é verdade que a matei.
E falo do modo mais franco.
É como se não tivesse acontecido,
foi ontem
mas parece já uma lembrança apagada…

Comecei pelo pescoço.
Ela era forte e foi difícil.
Tive que soltar seu pescoço.
Esmurrei seu colo,
esmurrei a garganta

não lembro se ela gritava
ou o que dizia
enquanto eu espremia sua traquéia
dizendo “fala a verdade!”
por fim
ela desmaiou.
Peguei uma pedra e amassei seu crânio
e ela morreu sem dizer a verdade
que eu tanto cavei.

Ela está morta agora
e eu já não tenho tanta certeza de minhas suspeitas.
O que sei é que a matei, que ela morreu, que está morta.
(Seu velório terá o caixão fechado.)
Eu a matei
e as crianças brincando na rua sequer imaginam,
sequer reparam no assassino que passa
e as nuvens não deporão contra mim
ou a mulher que corta as unhas na calçada
muito à vontade – é domingo.
Por qual motivo a matei?
Parece que não aconteceu
não sinto culpa.
Sou culpado.

Ela morta, o que mais dói –
só o que dói –
é não ter certeza se fui justo,
digo, não sei se aquilo tudo realmente acontecia
ou era só insegurança, impressão, paranóia
culpa.
Penso que a matei para enterrar a dúvida:
“está morta, pronto.”

O que farei agora?
O vazio acabará, eu sei.
Hora ou outra
acabarei me punindo
e a lei chegará
e nada ofuscará a possível certeza que terei
ao perceber que sua morte brutal
de nada adiantou.

a segunda pessoa


não és bela
nem és doce.
(não és flor,
não és doce.)
és grosseira
és obtusa
és rameira
és medusa
(medusa cacheada)

és ingrata,
das malditas
“és Gabriela”,
digo, e te irritas.
não compreendes:
tens cor de amêndoa
apenas isso.

tu nas camas
és enguia
sei, não me amas
(teu mel me guia)

teu mel amargo
me enxarca os dedos
lambo-os.
e em seguida te sugo.
pra dentro do estômago
pra dentro do âmago

teu mel amargo
me corrói os dentes.
encontro teu útero
finges que sentes

feito o teatro
finges que sonhas
sonho. (finjo que sonho)
vou trabalhar,
tu me abandonas.

então sou obrigado a recorrer
à segunda pessoa.
que singular!

Ver


Você que vê
pode observar esse objeto.

“É amarelo”, dirá.
Em seguida compreenderá:
“É retangular.”

Force os olhos.
“Bem, é um livro.”
Sim…?
“Um livro grosso. Tigres no espelho.”

Já o cego dirá “É liso, frio e emborrachado.”

Doutos dirão:
“Uma janela mágica. Passaporte celeste.
Pedaço de alma. Milagre encadernado.”

Uns outros: “Apenas palavras. Opiniões.”

Mas só aqueles que trazem um holofote na alma poderão compreender:
"É absolutamente nada.”