sábado, 30 de janeiro de 2016

três noites



a casa deles é do outro
e enquanto eu viver vai sempre ser minha também.
       inevitavelmente.

posso deixar tudo que quiser lá.
posso voltar a qualquer momento
resgatar livros, rascunhos, mobília, instrumento.

a casa deles que é de outro é frequentada por todos,
   a casa é um caminho no tempo —
      pavimentado por fósseis de tudo.
                                                                   .
                                                                 .
(muda o tom)


tudo acontece ainda em outros mesmos lugares com outras mesmas palavras


em vão
eu vim.



                  vago






quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

A hora mais triste


Contemplo o crepúsculo com olhos turvos de cerveja e astigmatismo.
O comércio baixa as portas.
Motos e carros transitam lentos entre-sinais.

Percebo que não posso ser livre.
Não posso sequer querer ser livre.

Se me liberto, corro numa só direção.
(Fugir é ser livre?)

Como bússola — farol de quem se desprende —,
que aponta sempre o Norte — Útero do universo.

Nem mesmo o útero é livre!

la vita è bella


a vida é uma estria amarela bem no meio da cara. que a gente espera esbranquiçar.
é o café de ontem bebido e cuspido pela manhã.
é a pia entulhada de louça.

é a estria amarela que escurece bem no meio da cara.
é o gato correndo assustado quando a porta se abre.
é a furadeira do vizinho pela manhã.
a mesa alta demais. é tendinite no coração.

um silêncio enfim conquistado. breve demais.
o almoço gasoso duas horas depois.
encher os bolsos de moedas. é limpar a porra no próprio cartão de visita.

a vida é o pé do porco na feijoada.
é o cachorro da rodoviária.
burocracia na biblioteca.

são as prostitutas audazes às três da tarde na avenida principal reconhecendo seus clientes de terno.
é o patrão sádico.
o empregado explorado. servindo cerveja gelada pros funcionários do banco. 
happy hour.
é a testa suando abstinência.
vasculhar o bolso sem moedas. não ter um cartão de visita.

a vida é uma estria violenta no meio do peito
que a gente torce pra que exploda.


cactos


quando ela enfim desabrochou,
eu brochei

e munidos de palavras banguelas,
tornamo-nos cactos.



quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

VHS



o filme francês me comoveu
com toda sua melancolia
solidão e pílulas

então decidi escrever um poema comovente
que arrancasse do leitor
essa mesma melancolia que sinto agora.

tentei retratar o homem estrangeiro,
o suicida,
a moça catatônica na cama,
a jovem atriz que me remeteu ao passado esquecido...

o poema ia bem.
repleto de lirismo e uma estética VHS

mas quando notei
o estrangeiro em mim,
a solidão dessa noite morna,
meu passado incompleto
e as pílulas que ingeri para afastar pensamentos suicidas,
compreendi: o poema já estava escrito.
em mim.

na minha pele, meu trapézio
no meu estômago.

o poema era meu próprio corpo
catatônico
em minha cama impregnada
de suor
e letargia.