terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

meio soneto do amor confuso

não confunda amor com saudade
não confunda amor com carência
não confunda amor com vontade
não confie em amor de vidência

não estrague o amor com cinismo
o que chamam de paixão é o verdadeiro amor
e o que sobra é o comodismo

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

poema sincero



este será um poema sincero.

e se o escrevo hoje
(cinco dias após o fato que o motivou)
é porque não havia encontrado ainda a sinceridade
necessária.

este poema é para uma prostituta.
uma prostituta que não tem orgulho
mas também não vergonha 
da profissão.

se escrevo pensando nela é porque captei algo extra
naquela mulher,
e não estou falando sobre sexo ou corpo ou carne ou abate.
ela foi sinceramente gentil
e mesmo quando avisei que não transaria naquela noite
ela disse “tudo bem, posso ficar aqui com você?”

sim.

conversamos francamente e eu disse que a admirava porque
ela tinha de ser tudo:
escrava, cadela, objeto, amiga, psicóloga,
e até mãe
de alguns homens que as frequentavam.

e tinham ainda aqueles cruéis
que revidavam nessas profissionalmente-desalmadas
a sua frustração:
empregos massacrantes, falta de talento ou sorte, 
a derrota do time,
parcelas do IPVA, 
um casamento fracassado, quatro filhos…

por fim ela se cansou e foi faturar.
mas não sem antes tentar se desculpar comigo.
“é o seu trabalho”, eu disse
e fiquei com o whisky.


este poema foi um expurgo.
este poema não teve rimas e nem deveria mesmo ter.

este poema é o esperma que não jorrou
aquela noite.


domingo, 24 de fevereiro de 2013

Casamento

Meu amigo vai se casar!
(Logo ele!)
Comemoraremos.

Velhos amigos se reencontram e mentem.
Seu casamento é um ritual absurdo!
(Todos são, mas apenas esse é o casamento do meu amigo.)
E no altar, já não parece o meu amigo.
Quando vou cumprimentá-lo, me trata com certa indiferença.
(Meu amigo agora é um homem e parece me desprezar.)
Está casando, grande merda!
Sustenta esse fato com nobreza. (De fato, não parece o meu amigo.)

Decido ficar totalmente bêbado.

Whisky, vinho e cerveja.
(Tendo no corpo a reminiscência de ansiolíticos.)
Talvez eu arme um pequeno show.
Tudo bem.
Muitos aqui já estão acostumados,
mas acredito que a burguesia ficará chocada.
Não quero estragar o casamento,
mas gostaria de ter meu amigo novamente.

Ele aperta mãos. Muitas mãos.
E sorri e fala baixo e parece atuar, maquiado.

Meu amigo está casado.
Logo ele!
Grande merda.

Qualquer um pode se casar
E dizer absurdos no altar, com centenas de testemunhas complacentes.
Todos sabem: ele está mentindo.
Até a noiva sabe. Mas se não for com ele, com quem será?
O mercado anda competitivo, é melhor garantir.
Além do mais, papai está tão contente. Até bancou essa festa caríssima!

Na festa gritam meu nome.
Sou Deus. Sou o centro.

Posso tudo.
Tento tudo e sou retirado pelos pés.

Me jogam na rua, alucinado e sozinho.
Falam algo sobre polícia.

Meu amigo está casado,
e eu não tenho ideia de
onde estou.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

álcool

os bêbados não consideram o dia
que sempre chega
e continuará chegando,
para a felicidade ou não
do bêbado.

é no dia que ele se redime,
se envergonha, se cala,
acerta ou não
suas dívidas recentes,
telefona, lava o rosto,
sente fome, raiva…
sobretudo vergonha.

é durante o dia que o bêbado
(de ressaca)
se pergunta,
que diabos aconteceu ontem?
tenta juntar algumas peças
já sabendo que será impossível.

lembra da garota sem cabelo
e de seu namorado sem cabelo
uma jukebox
uma boca
cabelos
álcool
dança
(a dança é memória afetada)
e passos que levam embora
para o dia.

se soubesse o dia
o bêbado se manteria sóbrio
mas a ideia do dia é algo distante
porque o bêbado não deseja o dia
(jamais deseja o dia.)
o bêbado deseja que a noite se prolongue
(mas não também.)
o bêbado deseja encontrar cicuta
em seu copo.
e assim como não sabe o dia
o bêbado não compreende esses rostos
à sua frente.

todos
os
bêbados
num
pacto
quieto
improvável
se…

mas não.
logo em seguida o bêbado acorda em casa e se pergunta
eles só querem se esconder.
talvez no copo.
minúsculo
frágil
estúpido.

o bêbado troca de copo
mas não de veneno
aliás, acrescenta um mais forte.
sugestão da garota
que se senta ao seu lado,
o corpo dizendo “me fode”,
totalmente entregue ao bêbado
(ela também vai alta)
mas o bêbado não se importa.
se cansou.
está farto do jogo.
sabe que é melhor assim
e sente até um orgulho em ignorá-la.
bem, não totalmente, porque eles conversam
riem
beijam
dançam
(a dança é memória afetada)
pedem mais uma,
a garota com seu corpo dizendo
“me fode a noite inteira”
e nada foge – ainda – aos olhos do bêbado
e ele permanece seco
apoiado no balcão
de frente para a garrafa
e os copos
e a possibilidade de se embriagar até o fim.

a garota
segue tentando.

o bêbado sorri,
triste.
a garota pergunta “o que foi?”
e o bêbado diz
(ainda rindo)
que se lembrou
de um negócio absurdo.
a garota duvida,
errônea,
em vão...

a conta vai alta.
ele não tem dinheiro
e a garota sabe disso
e pergunta
“outra?”
os vermes alcoólatras se agitam dentro do bêbado,
que não esconde o sorriso quando diz “por mim…”
e a garota, com aval
pede mais uma ao garçom
que respeita o bêbado
e se lembra
(mas não fala)
da vez em que o bêbado esteve lá
e se envolveu numa briga homérica
onde voaram cadeiras, mesas,
garrafas vazias
e
o garçom bem que tentou cobrar os reparos
mas o bêbado
linchado
questionou e disse
“só vou pagar pelo que eu bebi.”
e pediu a calculadora
e somou
e pagou.

mas agora existe essa garota.
matéria-prima
obra-prima
que o bêbado – bêbado –
meio que despreza
e
em algum momento surgem os amigos dela
de surpresa
então dividem a mesa, espantados com a sede do bêbado
que tem sede de morte
e escancara isso pra fazer graça.

que diabos aconteceu ontem?


tenta juntar algumas peças,
já sabendo que será impossível...


Tanto


Tanto dejeto de mim: sangue, cera, merda
                                  poemas, saliva, pus
           Tanto que cristalizou.
           Tanto que cicatrizou.
Tanto desejo em mim: sangue, poemas, saliva
                         tratores que causem tremores
                              em tudo o que cristalizou
   .
         Tanto de você ainda em mim.


Sobre sobrancelhas e répteis

Suas sobrancelhas quicaram até mim e
Seus olhos me temiam.
Me temiam, frágeis
No entanto vieram.
Talvez confirmar que minha pele é cera
E que
Por trás da barba vive um
Bagre
Liso e frio.

Seus olhos vieram dizer
“vou embora”
E eu pergunto até quando
“talvez na segunda”, você diz.
Tentamos um cumprimento desajeitado – erramos a mira.
Disfarçamos.

É quarta-feira e a luz da sua casa
Continua apagada, mas as baratas estarão lá,
Prontas.
Os empecilhos seguem nos assombrando
E foi cruel demais que vocês duas trabalhassem juntas.
Répteis.

E vocês duas são como serpentes na cama.
Envolventes e precisas. Meio loucas.
Me envolvem sem quebrar os ossos,
São cobras mansas.
Sobrancelhas e corpos diferentes,
Cuidam de mim como podem, ainda que as sobrancelhas duvidem de tudo.

Já é quinta-feira e você não voltou.
Tudo bem.
Tenho o teto branco e minha TV permanece sem som.
Te ouvirei chegar
                        se...


Eu, o mundo

O mundo não se importa com o meu sofrimento.
De que interessa se estou de luzes apagadas?
De que importa ao mundo que eu esteja aqui trancado?
De que vale saber que estou com o nariz impregnado desse mau cheiro?

O mundo não se importa com isso.
O mundo é tão maior que isso…

Meu sofrimento não comove o mundo,
porque agora mesmo alguém festeja.
Agora mesmo namorados se protegem.
Nesse exato momento alguém sofre mais que eu.

De que importa ao mundo o meu sofrimento?

Não iremos longe.
Meus vizinhos também sofrem no escuro.
O escuro também sofre com a luz dessa tela estúpida.
E a luz, que sofre por nascer e não ter onde refletir,
falecendo?

Não quero escrever meu drama.
Definitivamente não quero escrever meu drama.
A escrita é doença.
É a doença da esperança.
E a esperança é a doença dos covardes.
Não quero escrever meu drama.

De que importa se sofro?
De nada importa.

Rimbaud foi perfeito.
(A velha idolatria a Rimbaud.)
Soube escrever a plenitude
e foi além
quando desistiu da escrita.
Rimbaud deixou de escrever seu drama.

De que adianta?
De que importa?!

O mundo é tão maior que o ego ferido do poeta…
Ao mundo, definitivamente não importa que eu esteja no escuro.
Se importasse, o mundo acenderia minha luz, curaria minha dor, me escreveria esse poema.
Mas tudo isso depende de mim.
E hoje eu sou tão maior que o mundo.


quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

esse (leia devagar)

a morfina do cafuné
amor finalmente são.
são tolos os que medem
são tolos os qu'exigem
paisagem ou contravenção
qu'evitam a ampla metáfora
duma representação banal
sobre o que foi reeleito
e sempre será.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Praça (Trilogia abrupta, 2/3)

     Na praça Matriz, um homem poderia facilmente despertar olhares curiosos por preferir a mureta ao banco, mas talvez esteja ali imóvel há tanto tempo, a modo de ter mesclado-se à visão geral da praça. O sol massacra. O grande sino da igreja central bateu por doze vezes ainda há pouco. Apenas um alguém percebe esse homem que parece estar recebendo a energia do sol, como faria o lagarto. É alguém de fora. Talvez por isso não tenha fundido o homem à praça — porque agora mesmo esboça suas primeiras impressões à memória.
     O estranho homem tem o olhar fixo, mas o forasteiro não distingue o foco. Dez minutos, o forasteiro finalmente se levanta e some dali. O homem segue fixo.
     Uma garota exalando o frescor da juventude despede-se dos amigos e ruma para as ruas históricas. Almeja encontrar os pais no mercado municipal, três quadras abaixo. A garotinha em seu jeans leve e fone nos ouvidos não detecta seu perseguidor, que a agarra e a leva para uma estreita rua sem saída e arranca seu jeans e esmurra sua nuca até que ela desmaia tendo emitido apenas um abafado e ingênuo gemido e então o estranho homem consegue com facilidade penetrar seu fétido pau duro e roxo na vagininha virgem da garota que sequer reage às estocadas violentas que tocam e ferem seu colo do útero e seu ego pro resto da vida. O homem goza rapidamente. Dentro. Ergue a calça, mal fecha o zíper e ruma eufórico e vazio para longe dali.
     Nenhum pensamento lhe ocorre.

Padaria (Trilogia abrupta, 1/3)

Um homem entra numa padaria sem despertar grandes interesses. De olhar fixo, caminha até o balcão, apóia a parte inferior da palma direita e batuca inconscientemente um ritmo indefinido. O funcionário da padaria lavando a louça o ignora. O homem, ainda de pé, quebra o silêncio:

— Você me arranjaria um copo d'água pra eu tomar meu remédio?

O atendente levanta os olhos e estende um copo de 300ml, cheio até a boca.
Sem dizer palavra, o homem tira do bolso um frasco. Rompe o lacre, abre a tampa e despeja todos os comprimidos na palma da mão direita. Sempre calmo, leva todos os comprimidos à boca e os engole com ajuda da água e certa dificuldade. O atendente observa tudo isso com espanto. A padaria está cheia.
O suicida finalmente senta-se num tamborete e, sempre calmo, morre ali mesmo, diante de todos.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

nocivo


repentinamente me tornei sujo,
nocivo,
algo a ser evitado
uma ameaça
vírus,
            de que se foge e não se comenta.

repentinamente me permiti sonhar
e por sonhar demais,
por vezes não vivi.

repentinamente,
(sobretudo) me condenei à vida
e por viver demais,
repentinamente me tornei nocivo
uma ameaça,
                       vírus


terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

O manuscrito

     No quarto do suspeito não foi encontrado nada relevante, com exceção desse manuscrito aparentemente incompleto. Não pretendo influenciar suas opiniões. Pouco vou dizer. Usem o bom discernimento que lhes foi dado para julgar esse delicado caso.
     Sem mais, o manuscrito:

     "Meu deus, que noite! Finalmente o sol está acordando, para meu alívio e conforto. Amigo, talvez você pense que sou um louco ou — na pior das hipóteses — que tomo seu tempo para contar uma mentira, mas lhe garanto: tudo o que vou (tentar) descrever agora acaba de me acontecer, nessa noite que se encerra com esses primeiros raios de sol e que já me parece tão distante — graças!
     Bem, estou hospedado numa humilde pensão. Bastante receptiva, agradável e, principalmente, barata. Realmente barata! Pago a quantia de R$200 por mês, com direito a quarto individual, café da manhã, sala de TV (que não frequento) e um maravilhoso quintal com uma goiabeira que nunca deixa de exalar seu forte perfume acre-podre.
     Mas essa pensão tem algo de curioso. Não existe forro! As paredes sobem — muito altas —, então há um espaço vazio e só mais acima está o telhado, com suas telhas e vigas de sustentação. A sensação é boa. Costumava me deitar e fitar esse teto longínquo, como se eu fosse uma pequena barata debaixo da cama e as vigas de sustentação fossem o estrado da cama e as telhas fossem a própria cama de algum ser muito maior que eu. Era agradável pensar que eu também era um inseto desimportante; me tirava do ombro todo esse peso que jogam(os) em nós.
     Tudo bem, tive momentos prazerosos graças à falta de forro sobre as paredes, mas nessa noite que acaba de passar, isso me trouxe consequências atrozes. Como de costume, deitei cedo. (Costume recente, é verdade.) Apaguei a luz — seu fio pende desde uma das vigas de sustentação até o meio do quarto — e me acomodei sem sono na estreita cama. Cruzei os braços, levando as mãos ao peito, como defunto, mas não em tom fúnebre; realmente me apetece essa posição. Dobrei a perna direita, erguendo uma montanha na sombra do quarto. Uma pequena fresta de luz invadia o quarto através de um furo na janela, então logo percebi  — através da dilatação das pupilas — que a montanha era apenas a minha perna dobrada e me decepcionei, como se não soubesse tal fato. O sono não vinha. Questionei a atitude de ter deitado cedo, pensei que poderia estar caminhando pelas ruas, mergulhado na fascinante surpresa de estar numa cidade de mulheres incríveis; pensei que poderia estar lendo ou escrevendo; pensei que poderia estar celebrando, bêbado... até que isso aconteceu.
     (Chego a um momento decisivo desse relato. Até agora creio que você não tenha levantado suspeitas acerca do que relatei. E creio nem ter dado motivos. Mas o que vou contar agora vai dividir opiniões. Os que acreditarem, me julgarão louco ou criminoso; outros me considerarão um farsante. Mas preciso transmitir esse peso a alguém e sei que não aguentaria fazer como os fortes — guardar o fato por toda uma vida e, então, na velhice retratá-lo.)
     Não passava de meia-noite. O sono não vinha, então passei a imaginar coisas. Sim, coisas. Coisas desimportantes, aleatórias, infantis, pervertidas... coisas. Eis que, no mesmo instante em que pensava coisas, sem sequer ter bocejado ou fechado os olhos por mais de dois segundos, comecei a levitar. Pois é. Levitar. Estava sóbrio há vários dias e com a certeza de que aquilo não era um sonho... Não era um sonho! Mas comecei a levitar, levitar, pude ouvir a cama estalar sob meu corpo flutuante, senti que meu corpo estava menor, como se comprimido por uma pressão diferente. Senti um certo arrepio pelo corpo todo, mas não frio ou pânico; aquele arrepio de expectativa, como se nossos poros estivessem abertos demais; arrepio que afeta, sobretudo, a região do cóxis. Me entende?
     Levitei até ultrapassar o limite invisível do forro e cheguei perto do telhado. Não tentei — poderia facilmente dizer que tentei —, mas sei que poderia ter tocado as telhas. Lá de cima, meio sem equilíbrio, meio sem entender nada, enxerguei toda a pensão. Toda a parte interna, naturalmente. Enxerguei dentro dos quartos e enxerguei o corredor que dava para a sala de TV e o corredor entre os quartos e a própria sala de TV. A garrafa térmica ainda estava sobre a mesa de café. Então reparei no quarto 2 (o meu era o 6). O quarto 2 estava ao lado esquerdo do corredor, como o meu, e entre nós estava o quarto 4. A luz estava acesa. Do quarto 2, digo. Notei que lá estava uma mulher e que a mulher estava nua da cintura para cima. Eu via facilmente seus seios. Sem esforço aparente e não sei de que modo, voei até o quarto 2. 
     A mulher estava sentada numa cadeira, de frente para a janela, de costas para a porta e o corredor, em frente à sua cama que estava abarrotada de bolsas, roupas, brincos, cremes e produtos de beleza. A mulher de firmes seios à mostra passava, lentamente e com a ponta dos dedos, um creme nas costas. Estava de cabelos molhados, acabara de sair do banho. (Aqui na pensão o banho é frio.) Passava o creme com uma suavidade incomum, como se soubesse que estava sendo observada e pretendesse seduzir seu observador. Despejou mais creme na mão direita e espalhou o creme no ombro esquerdo e no resto das costas. Trazia ainda aquela suavidade. Eu observava tudo lá do alto. Ainda me sentia pequeno, mas ciente da parte física do meu corpo. Meu sangue fervia e circulava, meu coração estava acelerado e eu estava tomado por um fervor cego e burro. Não por estar levitando, mas por estar espionando essa incrível cena! A mulher não era bonita... Não era bonita, tinha cara de empregada doméstica ninfomaníaca. Ou melhor... sem conceitos, sem nomes... Apenas uma mulher que precisa de sexo para sobreviver, como os outros que precisam de água e teto. Então os humanos são hidromaníacos ou tetomaníacos? A mulher exalava sexo. Tinha aparência grosseira, por isso mesmo disse que sua suavidade ao passar o creme me era estranha.
     Desviei o foco e notei um envelope pardo, tamanho A3, sobre a mesinha de canto. A curiosidade que me acometeu transpassava infinitamente a excitação pelo ritual do creme e pela sensação de voar. Era como se pressentisse que naquele envelope estava guardado...
     Sem escolha, fui levado de volta ao meu quarto, passando antes por sobre o quarto 4 — onde dormia um alcoólatra. Deitei novamente, não mais na posição de defunto. Sorri espontaneamente. Um riso audível mas discreto. Não questionei a natureza do fato, não pensava no mistério da levitação, estava apenas sexualmente excitado pela imagem da mulher. Me masturbei imaginando aquela cena fresca, adicionando algumas predileções e taras.
     Me levantei para limpar a mão. Tirei o armário da frente da porta — sim, adotei essa medida de segurança, a porta não tranca por dentro — e fui até o banheiro coletivo. Limpei a mão, lavei o rosto, bebi um copo d'água e conferi se ainda tinha café na garrafa térmica. Não tinha. Voltei para o quarto e, ao chegar à porta, estanquei. Olhei na direção do quarto 2 e notei, pela claridade de certa área do teto, que a luz estava acesa. Fiquei novamente excitado, cego e burro. O coração me rasgando o peito e o corpo arrepiado como se em alta expectativa. Você me entende?
     Fiz o que qualquer um faria, garanto. Com muito cuidado para não provocar ruídos com as solas dos pés, fui até o quarto 2, ao fim do corredor. Ela estava lá. A porta tinha um pequeno buraco e eu olhei. Eu lhe garanto, amigo leitor, garanto como garanto que nasci no Brasil, ando sobre duas pernas, enxergo com dois olhos e amo como amam os abutres. Eu lhe juro, a mulher estava nua da cintura para cima, de costas para a porta, passava creme no ombro direito, usando a mão esquerda, e fazia isso no mesmo ritmo delicado e sensual. Não acreditei quando vi. Tirei os olhos do buraco da porta, ajeitei o cabelo por algum motivo, mexi as pernas e, estupidamente, provoquei um ruído altíssimo. Altíssimo para o silêncio do horário. Congelei. Em seguida senti meu corpo ferver, o calor subiu às têmporas e senti que não tinha cérebro, senti que era feito de algodão. Quis voltar para o quarto antes que fosse tarde, mas só o que consegui fazer foi olhar novamente pelo buraco da porta e nesse momento a mulher usava a mão direita para passar o creme de modo sensual no seu ombro esquerdo. 
     Não me ouviu. Logo, pegou um espelho portátil e passou a espalhar um creme pelo rosto. Num relance vi seus olhos pelo espelho e parece que me olhava. Nossos olhos certamente se cruzaram, mas não sei se ela me notou através do pequeno buraco da porta. É provável que não. Mas olhou como se olha para algo específico e logo voltou os olhos ao rosto refletido. Repousou o espelho na cama, largou os cremes e pegou um folheto. Provavelmente um catálogo de novos cremes e cosméticos. Segurava o folheto com a mão direita e com a esquerda mexia lentamente no cabelo, naquele mesmo ritmo instigante. Então tive uma ideia brilhante! Pensei algo que me tiraria a breve dúvida sobre a levitação; agora que estava sobre minhas duas pernas — uma das poucas certezas que tenho — e certamente lúcido, busquei através da fresta o tal envelope pardo que havia me chamado a atenção. Foi difícil. A fresta era muito pequena, não me revelava um grande campo, mas para minha surpresa, estranha surpresa, o envelope estava lá! Exatamente no mesmo lugar que estava anteriormente. Surpreso, senti medo. Como se até agora eu estivesse encarando o episódio da levitação como um incomum sonho lúcido, mas ao perceber que o envelope realmente estava lá, isso caía por terra. Mas na verdade, como já devo ter dito, era impossível encarar como um sonho, porque eu estava acordado, então percebi que ainda não tinha realmente pensado sobre isso.
     Eu estava ali, diante daquela porta. Diante daquela mulher diante do espelho. Diante de uma dúvida absurda e de um corpo semi-nu. Agi por impulso e empurrei a porta. Cedeu facilmente. A mulher seguia ali de costas, lendo o folheto e mexendo no cabelo. Encostei a porta que, mesmo tendo emitido aquele ruído comum a portas, não despertou a atenção da mulher. Dei dois passos curtos e estava quase roçando suas costas nuas, quando ela me notou pelo espelho que estava na cama. Deu um pulo, literalmente um pulo, e se virou. Foi da cadeira à cama, tendo quase derrubado a cadeira. Eu impedi que a cadeira caísse provocando um estrondo que acordaria os hóspedes. Olhei para ela, que me olhava não sem demonstrar medo. Estava inclinada, os braços paralelos para trás, sustentando o peso do corpo. Então seu semblante mudou. Me olhava como um animal. Inclinou mais ainda seu corpo, quase deitando, e me olhou de modo ainda mais desafiador. Queria sexo. E queria ali mesmo, naquele momento. 
     É verdade que eu havia acabado de me masturbar e gozar pensando nela, mas me senti excitado outra vez. Estranhamente, hesitei. Não fui em sua direção. Tive medo. Medo que ela gritasse, medo de passar por estuprador, medo de cair em alguma cilada da minha mente...
     Ela se sentou na cama e logo desabotoou o shorts que vestia, no ritmo que você já conhece. Deixou o shorts cair no chão e, só de calcinha, me olhou novamente, agora sem ameaça, mas uma nítida vontade de ser castigada — não o castigo do criminoso, mas o castigo da criança que passou um trote e foi descoberta. E apesar de excitadíssimo, não consegui avançar. Ela percebeu minha recusa e, nublando a expressão, se vestiu rapidamente, quebrando todo o encanto. Vestiu o shorts e, pela primeira vez, uma blusa larga e velha. Finalmente pareci despertar do transe do medo e disse 'não... eu quero agora.' com uma voz que saiu baixa e fina demais. Me senti um adolescente na puberdade e ela gargalhou, jogando a cabeça para trás. Veio na minha direção e, como se faz com um cachorro sarnento, me enxotou. Eu vi pena em seu movimento. Vi pena em seus olhos que não mais me encaravam e tentavam esconder o riso.
     Não cedi. Agarrei em seus braços e a joguei na cama. Arriei o shorts que uso para dormir e avancei em sua direção, como um alasão que irrompe num vasto campo aberto e o rasga em dois. Ela relutou, fez cara de raiva e me empurrou, exalando um grunhido entre-dentes. Tive medo que ela gritasse, então disse: 'Tá, eu saio, mas antes me diz uma coisa. O que tem naquele envelope?' e antes que ela respondesse, vi tudo duplicado. Vi dois quartos, duas dela, duas camas, dois envelopes, dois espelhos... Sobrepostos e em tons diferentes. Senti tontura e creio ter desmaiado.
     Acordei no meu quarto, o armário barrando a porta por dentro, do jeito que havia deixado, de shorts e com sede. Senti raiva. Ainda parecia preso à mesma realidade, com os mesmos pensamentos, a mesma temperatura ambiente, a mesma fresta de luz invadindo meu quarto, o mesmo teto sem forro... Não tinha sido um sonho. No entanto, acordei já tantas vezes e não consegui me livrar disso. 
     Tirei o armário da frente da porta, saí do quarto e, sem me preocupar com o barulho, andei até o quarto dela e espiei pela fresta. E ela estava lá, passando creme nas costas com a mesma suavidade! Empurrei a porta sem delicadeza e ela gritou. Gritou alto, altíssimo. Um berro gutural que deve ter acordado metade do quarteirão. Vi pavor nos seus olhos, então me fingi de bêbado e disse 'desculpa, eu errei o quarto! também durmo aqui na pensão'. Encostei a porta e voltei ao meu quarto. Acendi a luz e me deitei, coberto. Estava em pânico. Enxergava tudo claro demais. Eu poderia ser denunciado e ninguém acreditaria no meu relato! Mesmo porque, muito se parece com uma peça de mau gosto. Um velho clichê. Sequer é criativo, mas, no entanto, é verídico... Então percebi uma verdade humana. Não importa que você fale a verdade, você deve falar o que é mediano, o que é comum. Você deve falar apenas o que uma mente comum é capaz de compreender. Ou melhor, deve falar o que uma mente comum já ouviu alguém falar. Não se pode surpreender. Ainda mais nesse caso. 'HOMEM INVADE QUARTO DE MULHER EM PENSÃO'.
     Preparei meus ouvidos para que percebessem qualquer mínimo ruído. Fiquei muito tempo imóvel. Realmente imóvel, meus nervos pareciam travados. Mas nada ouvi. Fui relaxando aos poucos, ignorando a sede e, assim, caí no sono.
     Quando acordei, ainda era noite. Uma poça de suor estava sob as minhas costas; o colchão — sem lençol — parecia querer me expulsar dali. Não foi com surpresa que lembrei dos fatos que me atormentavam já há algumas horas. Ainda estava tudo fresco na minha memória e a sensação era a mesma: implacável, cansativa e incômoda. Senti vontade de chorar. Não de tristeza, mas desespero. A despeito disso, um silêncio leve pairava. Eu já não parecia mais agir por conta própria, simplesmente tirei o armário da frente da porta e saí do quarto. Parado, olhei na direção do quarto dela. A luz estava acesa. Decidi, antes de tudo, beber água. Fui até a sala de TV (a mesma do café) e enchi um copo com água gelada. Bebi de uma vez.
     Voltei lentamente para o corredor dos quartos, talvez querendo adiar o dilema, talvez esperando que ela tivesse apagado a luz nesse ínterim. Mas não. Quando cheguei lá a luz ainda estava acesa e era possível ouvir um barulho advindo do quarto 2. E essa certeza era plena, porque o 2 era o único quarto com a luz acesa.
     (Os leitores mais atentos poderão perceber que nada impede um cidadão de emitir ruídos no escuro e que minha fixação óbvia pelo quarto 2 foi quem estabeleceu a plenitude dessa certeza.)"

  
     Nota: nessa parte do manuscrito há uma rasura. O rapaz tentou apagar esse trecho: 'Meu deus, às vezes a minha inteligência me excita mais do que qualquer moça passando creme nas costas ou se masturbando em público!'
     E mais algumas rasuras que realmente deletam do manuscrito cerca de duas linhas de palavras.
     O manuscrito segue:

     "Decido abdicar desse embate. Resisto à tentação de checar outra vez a hóspede do quarto 2. Penso que será melhor tentar enterrar esse assunto. Quando me tranco novamente em meu quarto, de luz acesa e sentado na cama com um exemplar de Pais e Filhos, sinto uma paz quase inédita. Percebo cada detalhe do quarto. A lâmpada que pende lá do alto, os pregos enferrujados nas paredes, algumas roupas pelo chão, a mesinha de canto... tudo calmo e no seu devido lugar. Pareceu que o tormento havia acabado, mas quando abri aleatoriamente em alguma página, senti como um choque no cérebro. Como se um novo sentido brotasse em mim, além dos cinco conhecidos. Senti uma afluente que de súbito nasceu e me arrombou o cérebro, me deixando tonto e desesperado. Dói. Largo o livro e pressiono as têmporas com muita força; elas parecem duras e inchadas. Pressiono meus olhos com a palma das mãos, torno a pressionar as têmporas, nada adianta.
     No negrume infinito dos olhos fechados, vislumbro borrões e flashes que logo adquirem forma: animais, lâmpadas, correntes, cachoeiras, bolas de ferro, borrachas escolares... Abro os olhos e tudo parece normal. A dor simplesmente não está mais lá. Estou sentado na minha cama, suado e improvável. Parado, mexo apenas os globos oculares. Confiro os redores, testo meus cinco sentidos. Tudo parece seguro, mas agora enxergo com certa nitidez e parece que todos os meus conceitos aprendidos e inventados levam a uma simples pergunta: Me tornei lúcido ou assumi a outra face?
     Essa dúvida cruel; a linha que separa loucos e sãos, o paradigma dos psiquiatras, a pergunta que meu tio esquizofrênico não faz mais a si, porque teria como resposta a segunda opção. É impossível saber. De tudo isso, o que foi real? O que é O Real, senão um aglomerado de percepções brutas, moldadas por pré-conceitos, filtradas por cinco sentidos limitadíssimos, resumidas por palavras — códigos inventados não há tanto tempo assim — que só cabem em um dos cinco e limitados sentidos, graças à necessária estupidez de Galileu, que só nos faz enxergar por comparações. 
     Crer n'O Real como aquilo que se percebe é tão estúpido quanto crer na supremacia do ser humano. Esse mesmo ser humano que em centenas de milhares de anos ainda não conseguiu escapar dessa bolinha de gude que é a Terra (o recôndito dos estúpidos), que é um átomo de uma outra bolinha de gude, que..."

     E assim se encerra o manuscrito.
     As buscas já estão sendo realizadas. Ele não deve estar muito longe daqui.
     O que os senhores acham? O rapaz merece a cadeia? É louco? Deixou esse extenso manuscrito com a única finalidade de despistar as buscas? É culpado pelo crime que cometeu e não chegou a relatar?
     Não sei quanto aos senhores, mas enxergo um bocado de verdade nessas palavras...
     Façam o seu julgamento.

Treives

     Segundo andar de um prédio, amplo salão retangular de 384m². Há janelas por toda a extensão das paredes. Janelas largas de vidro que abrem para fora formando um ângulo não maior que 45°. O teto é todo em abóbadas que abrigam lâmpadas fluorescentes. O chão é frio e parece muito encerado, refletindo de modo opaco a claridade das lâmpadas. É noite.
     Um silêncio suspeito preenche o ambiente. Um silêncio que só é silêncio por limitações do nosso ouvido. Um silêncio que abriga infinitos ruídos e formas e cores e texturas e treives imperceptíveis aos cinco sentidos.
     Há somente duas pessoas no amplo salão. Na extremidade esquerda, uma mulher pequena, sentada atrás de uma pequeníssima mesa; na outra ponta, um rapaz avermelhado, de traços indígenas. Tem o cabelo liso, na altura dos ombros.
     A mulher permanece estática, ao passo que o jovem examina com curiosidade as vastas paredes e janelas e todos os detalhes do espaço em que se encontram. Aquilo tudo parece grandiosíssimo ao jovem que demonstra não ser da capital. Ao se aproximar de um pequeno móvel de madeira rústica, sem nenhum atrativo artístico, quase tocando-o com a ponta dos dedos, ouve um zumbido altíssimo, digital. É uma campainha, acionada pela mulherzinha em sua cadeira.
     O rapaz se afasta do móvel e olha na direção da mulher que agora parece um pouco velha; usa óculos e tem o cabelo tingido. Ela o encara tão fixamente, da lonjura de sua mesinha, que o rapaz sente culpa. Se encaram por alguns segundos que fazem com que o silêncio pareça ainda mais pesado, talvez por — apesar das amplas janelas — estar confinado no salão, como se condenado. O pesado silêncio brota, não reverbera no piso graças à cera, é emancipado e ecoa nas abóbadas do teto, criando um moto-contínuo.
     O rapaz sente uma tontura fortíssima. Busca uma cadeira, mas quando a alcança, a campainha soa mais duas vezes, a primeira como uma advertência, a segunda como uma ameaça; ele não entende, está tonto demais e, ignorando o zumbido ameaçador, senta-se na cadeira que há poucos minutos parecia não estar lá. 
     Respira fundo. Fecha os olhos.
     Pode, então, ouvir pela primeira vez a suspensão desse silêncio terrível. Constata que a mulherzinha se levantou — os pés da cadeira arranharam o piso — e ouve seus passinhos curtos se aproximarem de modo petulante. Ele ainda tem os olhos fechados.
     Os passinhos finalmente cessam. Ela está nitidamente muito perto. O rapaz avermelhado percebe a brisa que sopra lá fora, estimulando o encontro de algumas folhas de árvores. O ar esfria um pouco. Uma moto passa roncando, pessoas conversam e riem na rua. Ele abre os olhos, já está bem.
     Então a moça, sorrindo, pergunta: "Posso ajudar?".

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

superstição

para não passar por baixo da escada
uma mulher fura o sinal
e morre atropelada.


Esporro

Ela: Você mergulhou outra vez no seu ego, seu desgraçado.
Eu: Por quê?
Ela: Eu vi seus textos novos. Dá pra perceber. Você se fechou de novo.
Eu: São só textos...
Ela, me interrompendo: Sem contar que quando a gente tá em grupo você não fala nada; só fica lá parado, olhando sei lá pra onde com aquela sua cara de outro planeta. As pessoas ficam constrangidas e tentam arrancar sua opinião sobre alguma coisa, mas você nem percebe, ignora. Todo mundo se entreolha, depois olha pra mim com cara de piedade e eu finjo que não percebi nada de errado. É vergonhoso! Por que você se fechou de novo? Você disse que tava bem por ter saído da caverna... por que você voltou pra lá? Voltou a se sentir maior e melhor que o resto do mundo? Voltou a se alimentar dos próprios pensamentos? Responde, porra! Eu não to falando com as paredes!...

— Eu simplesmente não controlo...


jun, 2012

é inverno —
o silêncio chora.
chove,
você não vem.


4

pastel de vento
fogo no rabo
água no joelho
terra-sem-lei

os quatro elementos vitais em total desacordo.