terça-feira, 27 de agosto de 2013

No princípio era o verbo

Na manhã de hoje, Deus (que é todas as coisas) me foi
e me fez soar por ruas da memória e cheiros,
mas me amputou a caneta.

Enviou-me espelhos sem olhos
e me cobriu de olhos sem punho.
Fui espectador e protagonista.

Inserido e ausente em mim, senti farpa na sola 
                                          percepção terrena.

Presenciei tratores que tanto me atraem,
não pude sequer querer interferir.
Compreendi
(como compreendi a carne suculenta diante de mim)
que o equilíbrio é balança e não deve ser tocado.

Na manhã de hoje, Deus me aboliu a rima
e me deu boa memória.
Vestiu-me de higiene mas borrou-me as mãos.
Compreendi;
não anunciei.

Na manhã de hoje, Deus me enviou um novo verbo.
Na manhã de hoje eu apenas sive.


quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Jorge Luis Borges

Degusto em silêncio-penumbra as letras do velho que serenou em vida.
Aprendo que sou o outro e hoje é ontem.
Às oito da noite é penoso querer não ser o outro,
Há gente demais no mundo, destinos se chocam.

Evoco os grandes; não me desce o medíocre.
Brado de modo pouco sereno (sou chuva).
Permito ser irritado pela formiga que me acaricia o braço, talvez invasiva.
Como posso exigir exclusivo espaço no mundo?
Há gente demais, digo a verdade.
Evito neologismos 
Percebo que a boa escrita vem de um homem que está cansado,
                                                      não aceita trapaças ou glacê.

Almejo tecer a teia do Tempo, sentir a existência (isenta de toque) de outros que sofrem
em quartos, em silêncio, em penumbra...
                                                         (Percebo que sofrer é egoísmo.)

Consulto novamente o cego oráculo, por acaso argentino,
universal por mérito,
sereno por consequência de vida confinada em
frustrados amores,
escuras bibliotecas, frias e mofadas bibliotecas,
surdas universidades,
abafados cafés,
infinita e flexível memória têxtil...

Jorge Luis Borges,
hoje escrevo sobre mim
buscando te ressuscitar
afinal,
hoje sou você.


Sonho

Desperto de uma noite vivida e eternizada no vasto porão da memória,
calço chinelos para poupar a sola.
Ando devagar e me surpreendo. A alma, apressada, tropeça e cai de cara.

Rememoro a noite eterna.
Bem longe daqui,
naquela cidade onde nunca mais estive
acolhido naquela casa que volto vez ou outra
(em sonho)
na presença leve e quente da garota-cacto.

Noite de mesma textura de tantas passadas,
de olhar pela janela e perceber um céu alto e impessoal.
De perceber que o mundo é vasto
e que somos insuficientes,
ainda que plenos em momentos como esse.
Plenos em nossa pequenez que jamais deve ser questionada, porque absoluta.

Abro a porta, devaneios desfeitos,
textura escorrida, presença extinta,
sonho encerrado.

Porta aberta, a vida massacra
                            plenamente.


Ranço

Do último dia restou um ranço.
A certeza de ser insuficiente,
A culpa por ter te usado de forma humana,
Ter te visto tão pequena...

Ranço esse que é inédito a nós,
                               namorados.
Nossa primeira mancha, tingida para esse poema,
Já não sei se humana ou metáfora.

Da última tarde restaram manchas.
Sangue,
Suas roupas no meu chão,
Meu chão sem tuas cores,
Ter te visto tão bonita.

Do último olhar restou uma dúvida:
quando outra vez?


terça-feira, 20 de agosto de 2013

Eu

Palidamente cansado, menos anuncio que lamento:
Homens são ocos.
Agitam-se ao menor estímulo e fazem estardalhaço demais.
Ocos, preenchem-se de qualquer substância insossa.
Não digerem, vomitam.
Seus vômitos insossos e ruidosos inundam praças, palanques,
corredores, teatros, arquibancadas, velórios e bares.

Algumas certezas estão mal fixadas nesse mecanismo:
Que o ontem é áureo,
O amanhã é incerto
E o hoje, decadente.
Certezas equivocadas que se fixam como parasita no estômago (o órgão da alma).

Palidamente cansado, certamente anuncio:
O tempo não é.

Ao tempo não se permite verbo  percepção humana.
Não há contagem.
O universo é um instante.


Panteísmo

Magma
Matéria-bruta de mim
Saber-me inútil
Queimar tanto

Sinto a expansão do meu corpo que quase rompe.
Pouco falta para que seja fluído corrente

A morte me espera. 
Antes disso, a sólida e crudelíssima solidão 
desejo de morte
a cegueira
acúmulo de perdas
a melancolia (composta por átomos de todo o resto),
também um aperto de mãos ou caminhar...

Não caibo em mim porque sou dois.
Não infinitos; dois apenas.
E cada qual com infinidades de texturas e intenções, compostos por átomos de todo o resto.

Nessa inédita manhã que se repetirá, compreendi Deus,
que é todas as grandes coisas e também
                                um grão.


ALMA

Hienas sentadas em sofás de peido e veludo
engolem carniça enquanto cacarejam (sem dentes) sobre a minha ocupação.
O que canto (música) sai sem som a seus ouvidos IMUNDOS
Todas as hienas na clausura de suas vidas amputadas vomitam escárnio e pensam pensar:

                       "pobre criança sem futuro"

Colérico, ranjo dentes.
Penso em esfaquear esses corpos natimortos recheados de preconceito e bosta.
Esses cadáveres marrons derretidos que se arrastam por aí com pérolas de ostra,
reunidos com o propósito de celebrar a falta de propósito de suas vidas-carteira-assinada.

Hienas dementes constipadas e cínicas.
Hienas FALSAS TINGIDAS E EXPOSTAS NA MAIS PATÉTICA PRATELEIRA.
Alto preço, sem apreço ou valor.

                                   Tremo tremo tremo tremo tremo de ódio

Engulo. Empunho minha harpa e dedilho verdades que me tornam veludo outra vez 
                       sou salvo.

Transformo a carniça em adubo
                          e me glorifico,
                                pleno.



manchei-te

as reações absurdas
ao beijo do jogador
a piada repetida
o animal falante da semana
o assassinato do mês
os movimentos sexistas e
sua impávida mania de perseguição
o sexo como inseguro artifício
a eterna busca do amor sublime
o coitadismo como espetáculo
a rima
a agenda setting
a propaganda que caracteriza e subestima
as mesmas perguntas
as mesmas certezas
as mesmas polêmicas
o elegante banquete de mediocridade
o barulho excessivo
a risada das hienas
o contentamento

tudo isso me enoja
diariamente


quinta-feira, 15 de agosto de 2013

poema de aniversário 03

uma pequena mudança:

abandonei um poema para ir matar a fome
e comi como se matasse a fome da época em que escrevia justamente por não ter o que comer
sim, o mito do escritor faminto
eu era um clichê impregnado de verdade
mas hoje eu sento com meu jazz no ouvido e tenho a opção de pausar um poema para comer salame
é verdade comi como um animal enquanto andava em círculos pela cozinha emprestada
E TOMEI COCA-COLA lembrando dos dias em que bebia água turva da torneira e 
comia farinha de milho diluída nessa mesma água sonhando com pratos fumegantes
esperando visitas que pudessem me salvar da minha própria emboscada
fazendo a manutenção de uma vida miserável
premeditadamente miserável
miseravelmente solitária
era uma vida

sem salame
 com alma 


agora estou gordo
estou morno
sentado inofensivamente ouvindo jazz em meus fones de ouvido lembrando de um tempo que já... 

terça-feira, 13 de agosto de 2013

é verdade que nesse momento eu mataria

meu escudo é fraco.
minha espada (forjada no fogo do poema)
é muito frágil também.

confesso que agora
usaria metralhadora.




sexta-feira, 2 de agosto de 2013

papel higiênico

eu estive no inferno
e por alguns anos me ocupei com tudo aquilo que deixei pra trás.
mesmo nesse período, algumas mulheres frequentavam minha casa;
umas como serpentes, outras como estrelas plásticas, algumas desgarradas,
houve até aquela mãe que ejaculava.
eu andava preocupado com alguns assuntos:
meu estômago, minha sanidade, meu ego.
compreensivelmente, nunca me lembrava do papel higiênico,
então essas mulheres passaram a carregar seus rolinhos na bolsa
e às vezes diziam “olha, eu trouxe esse rolo de papel higiênico pra deixar aqui”
e deixavam, 
para que pudessem se limpar adequadamente na próxima visita.

durante alguns meses, essas mulheres de bom coração (sentiam pena de mim)
me abasteceram com seus rolinhos gentis, mas também com tipos diferentes de
amor,
alimento,
sobrancelhas,
sorrisos,
corpos e fios de cabelo

mas aos poucos tudo acabou.
elas me deixaram, eu as deixei.
não existia mais amor a oferecer  
ou o refúgio de que tanto necessitávamos.
(era simbiótico.)

anos depois, tendo saído honrosamente do inferno pela arrombada porta da frente,
ainda carrego comigo essas garotas, 
exatamente como carregavam seus rolos de papel higiênico 

assim como elas faziam, eu as uso para limpar tudo aquilo que escorre de mim
em noites como essa.


quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Uma pequena comédia

     Meio-dia e meia. O sol vai alto.
     Entra em cena uma já senhora com aspecto de empregada doméstica, andando mais rápido do que seus pés suportam. Segura com a mão direita a alça da bolsa que está pendurada em seu ombro. Persegue uma outra já senhora com aspecto de empregada doméstica.

 — Narva... Narva... Narva!

     Narva finalmente escuta. Narva para de andar e olha para trás, por cima do ombro. Reconhece sua colega e logo dobra o braço, apoiando na cintura seu punho fechado, tentando demonstrar certa braveza.
     A primeira senhora anda rapidamente em sua direção. Olha instintivamente para o lado esquerdo, de acordo com o protocolo que impede que duas pessoas distantes se olhem até o momento em que estejam próximas o suficiente para um diálogo.
     Narva, enquanto forja sua postura brava sem sequer saber o motivo, olha de soslaio para todos os lados, tentando perceber se alguém a observa naquela posição.
     As duas colegas finalmente estão próximas o suficiente. Narva sorri; a primeira senhora desembesta a falar sobre alguma coisa. Passam a caminhar lado a lado, conversando sobre algum assunto importantíssimo.

hiato

após um árduo vôo
revirei o baú real
e encontrei meu leal diabo
suíno em Luana.

o ciúme dobrou os joelhos
e, pior, desafiou a saúde:
hérnia de hiato.

cruzei a caatinga, miúdo,
conheci hienas
e o feroz ruído de suas risadas.

meu balaústre jônico ficou em ruínas
e o juiz, aliado, condenou-me,
de modo que passei a comer,amiúde, as raízes da voluptuosa rainha
pela fresta do meu ataúde.