quinta-feira, 25 de julho de 2013

3 (Um conto inútil)

     Era possível ver três silhuetas ainda na parte alta da rua cercada por densa vegetação.
     Desciam a rua a passos despreocupados, de costas para a lua cheia que brilhava, muito alta e límpida. Eram dois homens e uma mulher. Todos não passavam dos 25 anos. Pareciam alegres — talvez embriagados, mas compostos. A garota andava entre eles e era certamente a mais efusiva; ora se virava para um, falando energicamente e segurando-lhe o braço, ora para o outro. A cada vez que se virava parecia ainda mais eufórica e arregalava os olhos e ria e gesticulava com a mão eventualmente livre.
     Chegavam, enfim, à parte baixa e plana da rua. A temperatura ambiente era amena e não ventava. Dir-se-ia que o clima estava seco, mas a excessiva claridade azul da lua sugeria o contrário. Conversavam sobre um projeto que acabara de nascer na mesa de um café, espontaneamente, como extensão de um primeiro projeto — motivo do encontro.
     Dos garotos, um era músico. Alto, magro e meio curvado; o outro não passava dos 1,75m, tinha ombros largos e um sorriso pré-estabelecido, limpo e muito honesto. Era ator.
     A garota e o rapaz circunspecto se conheciam há alguns meses. Até a presente noite não conheciam o ator. Receberam indicações a respeito do seu trabalho e marcaram essa reunião para discutir as propostas de uma filmagem. Tudo correu bem. Mas tratavam agora do outro projeto, nascido do clima favorável e garrafas de cerveja extremamente geladas.
     Todos falavam ao mesmo tempo. E alto demais. Já não era uma conversa, mas uma vulgar poluição sonora, como galinhas confinadas que cacarejassem ao redor do milho recém-lançado.
     O novo projeto tratava de uma performance improvisada, reunindo a expressão corporal do ator e a música do outro. A garota dava ideias e parecia querer coordenar o espetáculo.
     A larga rua chegava ao fim, desembocando em avenidas, pontes e marginais. Cada um seguiria numa direção.

 — Poxa, a gente nem pegou os contatos um do outro! — disse o ator.
 — É verdade! Eu acho que tenho caneta e papel aqui na bolsa!
 — Eu não tenho telefone, mas pega meu e-mail! — disse o músico.

     A garota não achou a caneta.

 — Ah, mas a gente vai se falando! — disse o ator.
 — É, eu pego seu número com a Luma! — disse a garota.
 — Ha, ha, nem adiantaria você pegar meu e-mail. Não vou olhar tão cedo!

     E assim chegaram ao ponto decisivo.
     Despediram-se e cada um tomou seu rumo.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Cores

A custo de espirros, construímos um santuário vermelho
Que nos engloba e tudo o que há em nós.
Que te flamba a pele branca e dá textura de corpo
E flamba todas essas palavras que adoraria bloquear.
(Algumas te escapam como tosse e me adicionam doses de azul.)

O santuário é só quarto.
O vermelho é só lâmpada.
O que nos engloba é éter
E sua textura é só pele.


Você abre a porta e percebo: o mundo é mesmo azul.


quinta-feira, 11 de julho de 2013

Osvaldo, ou Pequeno conto sobre ter quase 100 anos

Hoje tem visita, mas a velha não se importa. Não se importa porque já não mais distingue a visita, que é a filha mais nova.
Há cinco anos que a velha já não é dona da própria razão. Há cinco anos a velha pronuncia, clamando, o mesmo nome:
Osvaldo.
O nome Osvaldo tornou-se símbolo de desespero na casa. Desespero da velha moribunda a quem parece necessitar Osvaldo; desespero do bisneto que mal teve contato com a velha e que não tem paciência para com as lamúrias. Desespero da filha mais velha da velha, que é obrigada a suportar tudo isso; que cuida da mãe vegetal como cuidou dos filhos que morreram cedo; que cuida da mãe como a mãe um dia cuidou dela, e revida na mãe vegetal os maus tratos que recebeu.
  
            - Quem é esse tal de Osvaldo que a mamãe tá chamando?
          - Eu não sei, Terezinha, quando eu não dou o remédio e ela fica agitada, só sabe falar esse nome. Ela nunca me falou de nenhum Osvaldo. O papai também não.
            - De certo deve ter sido algum namorado que ela teve na juventude.

A neta da velha – filha da filha mais nova – vem subindo as escadas com o bolo. É aniversário da velha. 96 anos. Da escada é possível sentir o cheiro de urina e fezes que o quarto emana. A neta quase vomita. Para, respira devagar, fecha os olhos, se concentra e segue até o quarto, ao final do corredor, onde estão sua tia, sua mãe e a velha.
“As crianças devem estar chegando”, diz a neta.
A neta tem 46 anos. Dois filhos; um garoto e uma garota que chegam após 12 minutos.
“To aqui em cima”, grita a neta para os filhos, que sobem as escadas contra a vontade, mas não questionam. No caminho, quase vomitam. Param, respiram devagar, fecham os olhos, se concentram e seguem até o quarto, ao final do corredor, onde estão a velha, a avó, a tia-avó e a mãe. Param na porta.
O parabéns é tímido e constrangido e a velha só faz soar “Osvaldo, Osvaldo...”
“Quem é Osvaldo?”, pergunta a neta.

Ninguém sabe. Ninguém conheceu esse Osvaldo.


Surpreso


Joana se casou!
Parece piada.
Não bastasse a angústia de
dividir o teto,
descubro que Joana se casou.

Casou
e provavelmente abandonou velhos apelidos.
Abandonou velhos amigos, o seu país,
tenta abandonar velhos hábitos...

Bem, é isso.
Joana se casou
e acabo de perceber que seu sorriso é torto.
(Talvez por um novo hábito.)
Joana não tinha o sorriso torto. Eu garanto.

(Essa maldita música me deixando melancólico.)

Joana não existe.
Joana é uma fantasia de carnaval,
um velho hábito que tento abandonar,
um apelido para solidão.

Joana é meu país.

Joana, casada e de sorriso torto,
é uma piada, uma angústia,
um dividir o teto.
Joana, que costumava ser meu teto,
meu texto, minha fantasia,
agora se casou e certamente não pensa em mim.
Mas ainda costumo ouvir sua voz por aí,
nos corredores da memória –
aquela fantasiosa avenida de carnaval.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Hotel

Fomos expulsos do hotel. Alegaram ser um hotel de respeito.
Pensei em dizer algumas verdades: que o ventilador não funciona, a TV também não, que tem baratas no quarto e que o chuveiro queimou no segundo banho, mas ela me arrastava pelo braço (essa mania que odeio mas não falo).
De mala na mão e ainda de camisa aberta, encontrei-nos sem teto. Então ela sugeriu que fôssemos à biblioteca municipal.
Ao chegar lá, o silêncio me sugou como faria o vácuo. O silêncio claro de luz formigante era uma verdade plena e me extorquiu as palavras da mente, como duas sondas que me tirassem a cera dos ouvidos.
Surdo, fui ler Borges.
Ela tinha algum compromisso, mas disse que voltaria.
Só recuperei a audição quando a chuva, ao se chocar com o teto da biblioteca, fez soar como inúmeros carrinhos de supermercado passeando ruidosamente por sobre suas rodinhas malditas.
"Quando ela chegar", pensei, "vou dizer pra que nunca mais me agarre o braço daquele jeito".
E tendo tomado essa firme decisão, lembrei ter esquecido todos os meus livros no quarto do hotel extinto.


                              Montes Claros/MG, 20 de janeiro de 2013

Rio

O enigmático decurso do rio não me absolverá.
Não me absolverá do grave pecado de não ter sido feliz
naqueles momentos puros e simples de
praça, sorvete, sorrisos e livros.

O enigmático e imbatível decurso do rio não tentará compreender
porque deixei de viver inteiramente esses momentos, para
dias depois, finalmente vivê-los num quarto trancado
sozinho e a lápis.

Eu poderia explicar ao rio o verdadeiro motivo:
que assim faço para eternizar tal instante.
Que assim faço porque
um momento só se torna eterno quando não é vivido.

Mas o rio não pararia para me escutar.
Tem pressa.

E além disso, nada devo ao decurso do rio.


                              Montes Claros/MG, 23 de janeiro de 2013

Esgotado, esgotado

Acordei, bati uma punheta triste e gozei na cara da solidão.
Depois fiquei simplesmente deitado. Imóvel. Mais um dia pra enfrentar… é isso.
A porra fica rala e me escorre pelo braço; não me abalo. Permaneço ali, estático. É terrível quando já acordo assim, de uma certa forma amarrado à cama. Sem força, ânimo ou motivo.
Ninguém disse que seria fácil. E eu ainda tentando do jeito mais complicado. Pura ilusão. Sim, moro sozinho e pago meu próprio aluguel aos 21 anos. Grande merda. Se não consigo resolver isso aqui dentro, ainda não conquistei nada. “Ou quase nada.” Pego um pedaço de papel e anoto uma frase que me ocorreu. “Acordar é o pior dos pesadelos.”

É quase engraçado. Você vê que tá mesmo no fundo quando o suicídio parece a única opção positiva. Mas falta coragem. E disfarço a falta de coragem com uma suposta esperança na vida. Mas os ditos bons momentos são apenas… aceitáveis. Não maravilhosos. Viver realmente não vale a pena. A onda vital avança metros abaixo da linha zero. Sua amplitude é enorme mas emerge dessa linha apenas uns centímetros – ignorando qualquer lei da física –, como um anfíbio que coloca os olhinhos e o nariz pra fora da água.
Bem, eu poderia apenas não pensar, mas é impossível. “Preciso me mexer”. Levanto num pulo, cumpro meu papelzinho de ser humano (me visto, mijo, fecho uma porta, lavo a mão, tão comportado, tão inofensivo, calço a porra do tênis) e saio de casa sem ter ideia do que posso fazer.
Tranco a porta e ganho a rua. 
Não. Ganho não é a palavra certa. Simplesmente ando por aquela porra. Faço um esforço e me lembro: é domingo. Embora domingo seja um dia tão absolutamente característico. Os sons, a luz do sol, as ruas, a disposição das coisas – tudo isso é característico num dia de domingo. Não preciso mexer muito na memória. Menos ainda pra lembrar: não tenho um centavo. Meu pagamento cai em duas semanas. Até lá tenho um pouco de farinha de milho, acho que meia lata de óleo, talvez até um pouco de arroz, mas não tenho gás pra cozinhar. Nessas situações, a pior opção é se enfurnar em casa. Nos faz confrontar nossos demônios; nossa casa é como um enorme espelho: tudo ali são pedaços de nós. Provas do nosso caráter, da nossa incompetência. O melhor remédio pra esse estado de negro espírito é observar e absorver a grama do vizinho, que é sempre mais verde. Sim, isso quando você tem coragem pra sair de casa. Confesso que me sinto aliviado quando ainda guardo essa faísca no bolso.
Vago devagar, divagando, enquanto tento enxergar o maior número de casas, banhadas pelo sol dominical, tranquilas, tão receptivas. Sei que se morasse em qualquer uma delas teria ali meu inferno, mas evito esse pensamento. Forjo a plenitude. Chego na avenida de baixo e sigo até minha zona de conforto. Começo a sentir fome. Acabo de lembrar que ainda tenho um ticket promocional de café da manhã. Tenho quase certeza de que tá no bolso dessa calça. Vasculho e, sim, encontro. Quem diria! É verdade que esse ticket só dá direito a um patético pão na chapa e um copo de café, mas pra quem achava que passaria o dia em jejum…
Posso já prever o gosto. Primeiro uma mordida no pão, mastigo um pouco e dou um gole no café. O pão vai ficar bem macio dentro da minha boca e com um gostinho doce. Incrível! Praticamente me esqueço que estou na areia movediça. Passo pela porta sentindo aquele cheiro característico de óleo sujo e me dirijo ao caixa, vazio. Parece que minha sorte começa a mudar.

Oi, apresento meu ticket, queria o café da manhã da promoção.
Senhor, não tem mais o café da manhã.
Ué, por quê?
O café é só até as 11h, senhor.
E que horas são?
São 11:05h, senhor.
Por causa de cinco minutos você não vai me servir o café da manhã?
Desculpa, senhor, já foi tudo recolhido, algo mais em que posso ajudar?
Não.

Saio dali. Continuo andando. Totalmente vazio. “Se pelo menos eu tivesse meu bilhete de ônibus e metrô…” Essa região é horrível pra caminhar. Rodeada de grandes avenidas, marginais, pistas automotivas. É uma área bem desumana. Além do quê, quanto mais desgaste, mais fome.
Que situação, economizando energia como um urso polar no inverno mais rigoroso. Pelo menos se estivesse frio… mas não. Um calor desgraçado e eu cheio de casaco. “Como poderia adivinhar? Na minha casa o frio era forte.” Então faço o que, no fundo, sabia que faria: sento num ponto de ônibus. A melhor opção pra quando se está assim, vazio, sem perspectiva ou sorte. Você não fica em evidência, suspeito, marginal; pode descansar, fingindo que espera o ônibus e ainda passa por cidadão comum. Ótimo lugar pra se sentar e ficar só observando, e eu acabo de observar uma loira deliciosa do outro lado da rua. Também num ponto de ônibus. "Será que ela sabe o quanto é gostosa?" Provavelmente. Mas não sabe que nesse momento tem um pau endurecendo por sua causa. Cruzo a perna, bem fechado, como mulher, e fico balançando a perna pra estimular o pau. Fica realmente obsceno. Cubro com os braços, sigo mexendo a perna. A loira tá de pé, de costas pra cá, conversando com duas mulheres que sentem inveja dela, dando passinhos daqui pra lá, de lá pra cá, se abaixando pra rir, se curvando pra ver se o ônibus se aproxima. Veste uma calça preta, dessas de ginástica, e a essa distancia a calça parece meio transparente, ainda mais pela ajuda do sol forte. Percebo que não sou discreto. Nem um pouco, aliás. Pareço um obcecado. Um voyeur. Mas de repente sua bunda me parece meio patética; a sombra formada pela calcinha e o próprio formato da bunda desenham uma espécie de âncora ali. A calcinha é o corpo da âncora e a borda da bunda mais o espaço entre as pernas formam a parte de baixo da âncora. Pode ser um sorriso também. Fico variando. Meu pau amolece aos poucos; daquela bunda sai merda. Merda. MERDA. Cocô. Fezes, peido, cheiro de cu, suor, pêlos. É só uma parte do corpo humano. Todo mundo tem isso, até eu tenho. Você tem, sua mãe tem, Nelson Mandela tem!
Preferia quando a bunda era um refúgio e tento esquecer tudo isso e a âncora, mas não consigo. A bunda continua patética e ela acena pro ônibus que para, encobre sua imagem e segue. Busco outras distrações. Caço outras pessoas por ali, olho pro meu lado esquerdo e noto um casal dividindo uma bicicleta, mas o curioso é que a garota é quem pedala e guia, o imbecil vem sentado atrás, naquele apoio que algumas bicicletas têm. A coitada parece fazer muita força, tá sem equilíbrio, tadinha! Como um cara desses tem coragem de mostrar a cara em público? Quando estão já bem próximos dou uma encarada severa entre as pernas dela. Pra buceta mesmo. Está de saia. Longa, é verdade, daquelas meio hippies (a moda hippie voltou), mas é suficiente pra fazer meu queixo tremer. O cara percebe que eu olhei, nubla a expressão e me encara. Retribuo com frieza no olhar. Eles passam por mim e o garoto vira pra trás – como um homem que se vira pra olhar a bunda da mulher que passa ao seu lado na rua – tentando me intimidar. Já não tenho vontade de olhar pra eles, mas não desgrudo o olhar pra que não pareça que ele venceu. Por fim desiste, posso já olhar pro outro lado.
Meu estômago se manifesta. Ronca alto. Meu humor despenca. O sol parece ainda mais quente e claro. Quase desértico. Avisto dois garotos aparentemente retardados que se aproximam com uma bandeja de frango assado. Cada um carrega uma. Cristo, por quê? Eu pensava ser o escolhido, o novo messias, e o senhor faz isso comigo? É um teste? VAI TE FODER, ENTÃO! VAI TESTAR O CARALHO! Esses dois imbecis merecem devorar um suculento frango assado nessa manhã patética de domingo E EU NÃO?! Estão a menos de cinco metros de mim. Cinco metros agora, cinco minutos lá atrás. Sempre quase. Cobiço as bandejas de frango, invejo suas sortes, tudo parece muito silencioso enquanto devoro o frango com os olhos, os carros passando na avenida não emitem som, as bocas estúpidas das pessoas se movem mudas, até o sorriso satisfeito e maldito desses dois comedores de frango sai silencioso, mas não depois que passam por mim e um deles joga NO LIXO um pedaço enorme de frango e logo depois, quando passam pelo portão da concessionária, o outro arremessa um pedaço pros cachorros. Não pode ser verdade. Não é possível. Fico indignado com essa situação e faço o que nunca pensei que pudesse fazer. Me levanto e vou até o lixo. Hesito. Olho pros dois lados; muita gente me conhece por aqui. Moro aqui e trabalho aqui. Ficaria feio se me flagrassem enfiando o braço no lixo atrás de comida. Mas aparentemente nenhum conhecido por perto. Procuro o pedaço de frango no lixo e fico de certa forma aliviado quando percebo que é apenas carcaça. Osso. Sem carne. É o tórax do bicho.
Sentar novamente no ponto de ônibus me parece uma ideia absurda. Fujo dali envergonhado e faminto. Caio na marginal.
Opto por um caminho inédito. Passo por distintos prédios residenciais, cobertos por cercas e muros e portões. Ironicamente, passo pela porta de um restaurante que começa agora a servir o almoço. Devo aparentar a fome que sinto porque o segurança do restaurante me encara, me bloqueia o sonho de um delicioso e fumegante prato. Sinto uma contração no estômago, fico tonto, muito calor, muito claro, muitos  carros transitando. Tão potentes, velozes, sem fome. Não notam a minha existência, são superiores. Entro numa região desconhecida com grama, árvores, ladeiras, carros, carros, carros caros, casas caras. Finjo que é tudo um delírio e quase acredito nisso porque a claridade excessiva, o calor excessivo, a exaustão e a fome me turvam a visão e também a compreensão e interpretação do mundo todo. Viro à esquerda, atravesso a rua, desço uma ladeira e chego a outra avenida, então reconheço o território. “Se eu seguir essa avenida vou dar na ponte. Se continuar firme, chego na Paulista.” Sigo. Passo por uma pracinha agradabilíssima e decido me sentar, parece o Éden, mas por algum motivo não paro, sigo em frente, triste, e quase sou atropelado. O cara enfia a mão na buzina, mesmo já tendo passado por mim. Isso me deixa profundamente irritado e mostro a porra do dedo do meio tremendo de ódio. Sigo. Tenho que decidir logo se subo ou não a ponte. Subo. Passo aqui a pé pela primeira vez. Até então, só de ônibus. O corredor reservado ao pedestre é aconchegante. Separado da pista por um muro de concreto com aproximadamente um metro de altura. Finalmente paro. Encosto na grade de proteção, de costas pros carros que passam me olhando, sinto. Abaixo de mim passa um rio. Ao lado, uma ciclovia, paralela aos trilhos de trem da estação. É domingo. Eles têm permissão pra pedalar. Quer dizer, a ciclovia é aberta todos os dias, mas domingo é o dia que lhes é reservado a se dar esse prazer, afinal são pessoas maduras, sérias. Durante a semana é trabalho. Onde já se viu… Andar de bicicleta durante a semana! Ninguém aqui é vagabundo! Mas hoje é domingo. Hoje pode. E daqui posso olhar sem pudor pro meio das pernas das ciclistas. “Nossa, sou uma criança pervertida” e um cara passa por ali me olhando, curioso e preocupado: Nossa, será que ele vai se jogar? Caramba! Que doidão, parado ali no meio da ponte! Aí percebo uma fila de lixo correndo devagar pelo rio. É curioso, o lixo parece muito organizado, correndo ali no espacinho que lhe é permitido, como os ciclistas pedalando dentro dos limites da ciclovia, os carros transitando entre as faixas e muros de proteção, os trens que transportam passageiros ininterruptamente pelos trilhos. Tudo em movimento. Seguindo o fluxo. Dentro dos limites estabelecidos. Eu parado ali pareço errado, quase obsceno, vulgar, perigoso. Sou como um câncer, um abscesso, algo que deve ser olhado e examinado com curiosidade e grande atenção. Posso ser um suicida, posso ser um bandido, um vagabundo. No entanto, só estou parado, quietinho, sentindo certo prazer depois de muito tempo de espera. Recebo do sol – totalmente desimpedido por nuvens – sensação idêntica à da infância, na praia de Santos. O chiado do mar (aqui é rio), o burburinho dos banhistas e bolinhas de frescobol (aqui é trânsito), o excesso de luz e calor que é idêntico em ambas situações. Viro e olho um pouco pros carros que passam ali na ponte; pareço estar na estrada outra vez. Vejo os motoristas pelo mesmo ângulo que via quando praticamente implorava por carona no sul do país, e a indiferença com que me tratam agora é exatamente igual. Me vêem aqui, mas tentam evitar que eu perceba, afinal, posso ser uma ameaça. Seguem suas vidas, eu sigo a minha.
Sigo.


terça-feira, 9 de julho de 2013