quarta-feira, 10 de julho de 2013

Esgotado, esgotado

Acordei, bati uma punheta triste e gozei na cara da solidão.
Depois fiquei simplesmente deitado. Imóvel. Mais um dia pra enfrentar… é isso.
A porra fica rala e me escorre pelo braço; não me abalo. Permaneço ali, estático. É terrível quando já acordo assim, de uma certa forma amarrado à cama. Sem força, ânimo ou motivo.
Ninguém disse que seria fácil. E eu ainda tentando do jeito mais complicado. Pura ilusão. Sim, moro sozinho e pago meu próprio aluguel aos 21 anos. Grande merda. Se não consigo resolver isso aqui dentro, ainda não conquistei nada. “Ou quase nada.” Pego um pedaço de papel e anoto uma frase que me ocorreu. “Acordar é o pior dos pesadelos.”

É quase engraçado. Você vê que tá mesmo no fundo quando o suicídio parece a única opção positiva. Mas falta coragem. E disfarço a falta de coragem com uma suposta esperança na vida. Mas os ditos bons momentos são apenas… aceitáveis. Não maravilhosos. Viver realmente não vale a pena. A onda vital avança metros abaixo da linha zero. Sua amplitude é enorme mas emerge dessa linha apenas uns centímetros – ignorando qualquer lei da física –, como um anfíbio que coloca os olhinhos e o nariz pra fora da água.
Bem, eu poderia apenas não pensar, mas é impossível. “Preciso me mexer”. Levanto num pulo, cumpro meu papelzinho de ser humano (me visto, mijo, fecho uma porta, lavo a mão, tão comportado, tão inofensivo, calço a porra do tênis) e saio de casa sem ter ideia do que posso fazer.
Tranco a porta e ganho a rua. 
Não. Ganho não é a palavra certa. Simplesmente ando por aquela porra. Faço um esforço e me lembro: é domingo. Embora domingo seja um dia tão absolutamente característico. Os sons, a luz do sol, as ruas, a disposição das coisas – tudo isso é característico num dia de domingo. Não preciso mexer muito na memória. Menos ainda pra lembrar: não tenho um centavo. Meu pagamento cai em duas semanas. Até lá tenho um pouco de farinha de milho, acho que meia lata de óleo, talvez até um pouco de arroz, mas não tenho gás pra cozinhar. Nessas situações, a pior opção é se enfurnar em casa. Nos faz confrontar nossos demônios; nossa casa é como um enorme espelho: tudo ali são pedaços de nós. Provas do nosso caráter, da nossa incompetência. O melhor remédio pra esse estado de negro espírito é observar e absorver a grama do vizinho, que é sempre mais verde. Sim, isso quando você tem coragem pra sair de casa. Confesso que me sinto aliviado quando ainda guardo essa faísca no bolso.
Vago devagar, divagando, enquanto tento enxergar o maior número de casas, banhadas pelo sol dominical, tranquilas, tão receptivas. Sei que se morasse em qualquer uma delas teria ali meu inferno, mas evito esse pensamento. Forjo a plenitude. Chego na avenida de baixo e sigo até minha zona de conforto. Começo a sentir fome. Acabo de lembrar que ainda tenho um ticket promocional de café da manhã. Tenho quase certeza de que tá no bolso dessa calça. Vasculho e, sim, encontro. Quem diria! É verdade que esse ticket só dá direito a um patético pão na chapa e um copo de café, mas pra quem achava que passaria o dia em jejum…
Posso já prever o gosto. Primeiro uma mordida no pão, mastigo um pouco e dou um gole no café. O pão vai ficar bem macio dentro da minha boca e com um gostinho doce. Incrível! Praticamente me esqueço que estou na areia movediça. Passo pela porta sentindo aquele cheiro característico de óleo sujo e me dirijo ao caixa, vazio. Parece que minha sorte começa a mudar.

Oi, apresento meu ticket, queria o café da manhã da promoção.
Senhor, não tem mais o café da manhã.
Ué, por quê?
O café é só até as 11h, senhor.
E que horas são?
São 11:05h, senhor.
Por causa de cinco minutos você não vai me servir o café da manhã?
Desculpa, senhor, já foi tudo recolhido, algo mais em que posso ajudar?
Não.

Saio dali. Continuo andando. Totalmente vazio. “Se pelo menos eu tivesse meu bilhete de ônibus e metrô…” Essa região é horrível pra caminhar. Rodeada de grandes avenidas, marginais, pistas automotivas. É uma área bem desumana. Além do quê, quanto mais desgaste, mais fome.
Que situação, economizando energia como um urso polar no inverno mais rigoroso. Pelo menos se estivesse frio… mas não. Um calor desgraçado e eu cheio de casaco. “Como poderia adivinhar? Na minha casa o frio era forte.” Então faço o que, no fundo, sabia que faria: sento num ponto de ônibus. A melhor opção pra quando se está assim, vazio, sem perspectiva ou sorte. Você não fica em evidência, suspeito, marginal; pode descansar, fingindo que espera o ônibus e ainda passa por cidadão comum. Ótimo lugar pra se sentar e ficar só observando, e eu acabo de observar uma loira deliciosa do outro lado da rua. Também num ponto de ônibus. "Será que ela sabe o quanto é gostosa?" Provavelmente. Mas não sabe que nesse momento tem um pau endurecendo por sua causa. Cruzo a perna, bem fechado, como mulher, e fico balançando a perna pra estimular o pau. Fica realmente obsceno. Cubro com os braços, sigo mexendo a perna. A loira tá de pé, de costas pra cá, conversando com duas mulheres que sentem inveja dela, dando passinhos daqui pra lá, de lá pra cá, se abaixando pra rir, se curvando pra ver se o ônibus se aproxima. Veste uma calça preta, dessas de ginástica, e a essa distancia a calça parece meio transparente, ainda mais pela ajuda do sol forte. Percebo que não sou discreto. Nem um pouco, aliás. Pareço um obcecado. Um voyeur. Mas de repente sua bunda me parece meio patética; a sombra formada pela calcinha e o próprio formato da bunda desenham uma espécie de âncora ali. A calcinha é o corpo da âncora e a borda da bunda mais o espaço entre as pernas formam a parte de baixo da âncora. Pode ser um sorriso também. Fico variando. Meu pau amolece aos poucos; daquela bunda sai merda. Merda. MERDA. Cocô. Fezes, peido, cheiro de cu, suor, pêlos. É só uma parte do corpo humano. Todo mundo tem isso, até eu tenho. Você tem, sua mãe tem, Nelson Mandela tem!
Preferia quando a bunda era um refúgio e tento esquecer tudo isso e a âncora, mas não consigo. A bunda continua patética e ela acena pro ônibus que para, encobre sua imagem e segue. Busco outras distrações. Caço outras pessoas por ali, olho pro meu lado esquerdo e noto um casal dividindo uma bicicleta, mas o curioso é que a garota é quem pedala e guia, o imbecil vem sentado atrás, naquele apoio que algumas bicicletas têm. A coitada parece fazer muita força, tá sem equilíbrio, tadinha! Como um cara desses tem coragem de mostrar a cara em público? Quando estão já bem próximos dou uma encarada severa entre as pernas dela. Pra buceta mesmo. Está de saia. Longa, é verdade, daquelas meio hippies (a moda hippie voltou), mas é suficiente pra fazer meu queixo tremer. O cara percebe que eu olhei, nubla a expressão e me encara. Retribuo com frieza no olhar. Eles passam por mim e o garoto vira pra trás – como um homem que se vira pra olhar a bunda da mulher que passa ao seu lado na rua – tentando me intimidar. Já não tenho vontade de olhar pra eles, mas não desgrudo o olhar pra que não pareça que ele venceu. Por fim desiste, posso já olhar pro outro lado.
Meu estômago se manifesta. Ronca alto. Meu humor despenca. O sol parece ainda mais quente e claro. Quase desértico. Avisto dois garotos aparentemente retardados que se aproximam com uma bandeja de frango assado. Cada um carrega uma. Cristo, por quê? Eu pensava ser o escolhido, o novo messias, e o senhor faz isso comigo? É um teste? VAI TE FODER, ENTÃO! VAI TESTAR O CARALHO! Esses dois imbecis merecem devorar um suculento frango assado nessa manhã patética de domingo E EU NÃO?! Estão a menos de cinco metros de mim. Cinco metros agora, cinco minutos lá atrás. Sempre quase. Cobiço as bandejas de frango, invejo suas sortes, tudo parece muito silencioso enquanto devoro o frango com os olhos, os carros passando na avenida não emitem som, as bocas estúpidas das pessoas se movem mudas, até o sorriso satisfeito e maldito desses dois comedores de frango sai silencioso, mas não depois que passam por mim e um deles joga NO LIXO um pedaço enorme de frango e logo depois, quando passam pelo portão da concessionária, o outro arremessa um pedaço pros cachorros. Não pode ser verdade. Não é possível. Fico indignado com essa situação e faço o que nunca pensei que pudesse fazer. Me levanto e vou até o lixo. Hesito. Olho pros dois lados; muita gente me conhece por aqui. Moro aqui e trabalho aqui. Ficaria feio se me flagrassem enfiando o braço no lixo atrás de comida. Mas aparentemente nenhum conhecido por perto. Procuro o pedaço de frango no lixo e fico de certa forma aliviado quando percebo que é apenas carcaça. Osso. Sem carne. É o tórax do bicho.
Sentar novamente no ponto de ônibus me parece uma ideia absurda. Fujo dali envergonhado e faminto. Caio na marginal.
Opto por um caminho inédito. Passo por distintos prédios residenciais, cobertos por cercas e muros e portões. Ironicamente, passo pela porta de um restaurante que começa agora a servir o almoço. Devo aparentar a fome que sinto porque o segurança do restaurante me encara, me bloqueia o sonho de um delicioso e fumegante prato. Sinto uma contração no estômago, fico tonto, muito calor, muito claro, muitos  carros transitando. Tão potentes, velozes, sem fome. Não notam a minha existência, são superiores. Entro numa região desconhecida com grama, árvores, ladeiras, carros, carros, carros caros, casas caras. Finjo que é tudo um delírio e quase acredito nisso porque a claridade excessiva, o calor excessivo, a exaustão e a fome me turvam a visão e também a compreensão e interpretação do mundo todo. Viro à esquerda, atravesso a rua, desço uma ladeira e chego a outra avenida, então reconheço o território. “Se eu seguir essa avenida vou dar na ponte. Se continuar firme, chego na Paulista.” Sigo. Passo por uma pracinha agradabilíssima e decido me sentar, parece o Éden, mas por algum motivo não paro, sigo em frente, triste, e quase sou atropelado. O cara enfia a mão na buzina, mesmo já tendo passado por mim. Isso me deixa profundamente irritado e mostro a porra do dedo do meio tremendo de ódio. Sigo. Tenho que decidir logo se subo ou não a ponte. Subo. Passo aqui a pé pela primeira vez. Até então, só de ônibus. O corredor reservado ao pedestre é aconchegante. Separado da pista por um muro de concreto com aproximadamente um metro de altura. Finalmente paro. Encosto na grade de proteção, de costas pros carros que passam me olhando, sinto. Abaixo de mim passa um rio. Ao lado, uma ciclovia, paralela aos trilhos de trem da estação. É domingo. Eles têm permissão pra pedalar. Quer dizer, a ciclovia é aberta todos os dias, mas domingo é o dia que lhes é reservado a se dar esse prazer, afinal são pessoas maduras, sérias. Durante a semana é trabalho. Onde já se viu… Andar de bicicleta durante a semana! Ninguém aqui é vagabundo! Mas hoje é domingo. Hoje pode. E daqui posso olhar sem pudor pro meio das pernas das ciclistas. “Nossa, sou uma criança pervertida” e um cara passa por ali me olhando, curioso e preocupado: Nossa, será que ele vai se jogar? Caramba! Que doidão, parado ali no meio da ponte! Aí percebo uma fila de lixo correndo devagar pelo rio. É curioso, o lixo parece muito organizado, correndo ali no espacinho que lhe é permitido, como os ciclistas pedalando dentro dos limites da ciclovia, os carros transitando entre as faixas e muros de proteção, os trens que transportam passageiros ininterruptamente pelos trilhos. Tudo em movimento. Seguindo o fluxo. Dentro dos limites estabelecidos. Eu parado ali pareço errado, quase obsceno, vulgar, perigoso. Sou como um câncer, um abscesso, algo que deve ser olhado e examinado com curiosidade e grande atenção. Posso ser um suicida, posso ser um bandido, um vagabundo. No entanto, só estou parado, quietinho, sentindo certo prazer depois de muito tempo de espera. Recebo do sol – totalmente desimpedido por nuvens – sensação idêntica à da infância, na praia de Santos. O chiado do mar (aqui é rio), o burburinho dos banhistas e bolinhas de frescobol (aqui é trânsito), o excesso de luz e calor que é idêntico em ambas situações. Viro e olho um pouco pros carros que passam ali na ponte; pareço estar na estrada outra vez. Vejo os motoristas pelo mesmo ângulo que via quando praticamente implorava por carona no sul do país, e a indiferença com que me tratam agora é exatamente igual. Me vêem aqui, mas tentam evitar que eu perceba, afinal, posso ser uma ameaça. Seguem suas vidas, eu sigo a minha.
Sigo.


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