sábado, 25 de maio de 2013

Naufrágio

Metíamos num colchão no chão. Sem amor. Metíamos como quem castiga ou pratica exercício e eu só pensava em encerrar. Ambos fingíamos. 
Gozei.
Encenei algum afeto — emprestei amor aos meus olhos — e virei para o lado, na busca de algum tecido que limpasse a cena; dei de cara com seu absorvente sujo e ainda úmido. Não consegui desviar. Encarei aquilo por alguns segundos e o que me incomodou, afinal, não foi o sangue, mas o aspecto daquela fraldinha ridícula, tão humana, tão comportada, tão indefesa e patética. Covarde, com suas abas que nunca prendem direito, embora grandes demais.

— Ai, não olha! — ela disse, movendo-se bruscamente como quem se assusta.
— Não olha o quê? — dissimulei. — Só tava procurando alguma coisa pra te limpar! 

"Só tava procurando alguma coisa pra te limpar", repeti no pensamento. "Parece que eu falo com uma criança". 
Nisso, olhei de volta em seus olhos mas não consegui fixar. Fui repentinamente tomado por aquela tristeza que você, leitor, conhece tão bem — naufrágio num peito seco.
Finalmente ela se levantou, catou sua roupa e foi ao banheiro, contíguo ao quarto.
Deitado, vazio e mirando vagamente o teto, fingi não ouvir seu grito que dizia "Quer vir tomar banho comigo?".

Então fechei os olhos e vi um mosaico nascer.


sexta-feira, 24 de maio de 2013

Inventário


Olhos que já quase não enxergam
Dedos que não se movem mais
Um joelho operado; o outro, por pouco.
Sequelas dos anos que já...

A saudade da primeira sapatilha tal como deveria ser
Fotografias em que surgem estranhos tão próximos
Almoços ainda não digeridos,
Encontros efêmeros cogitados na correria de uma esquina 
sequer atravessaram a rua.

Algumas cartas: já não é certo se fictícias ou não costumava brincar de ser Elisa.
Velórios
Reencontros tardios
E a certeza de um reencontro que jamais...

Tantas tralhas.
Carteiras, medalhas inúteis, enxovais, conchas, terços, ingressos de cinema,
lembranças de momentos puros que teimam em permanecer vivos
ou abscessos de momentos rasos que fingem ter existido.

O futuro passou.

E o presente segue firme,
Implorando ao passado os cadernos repletos de rascunhos
Esboços de uma vida atrofiada,
O saldo de uma vida inteira.


Um casal dócil



Eu já tive 16 anos.
Eu também já amei assim.
Dócil. De brincar como filhote mamífero.
Mas acaba. E não ouso avisá-los.
Observo, invejoso.

Ah, esse amor puro
de fresco hálito!
De pensamentos que não se perdem
com transliteração, por compartilharem idioma:
o mais sublime de todos.

Esse amor de alugar qualquer filme
à tarde, comédia, terror,
importa?

Quem vai dar o primeiro tiro,
não sei.
Ele, traição
Ela, desinteresse…

É penoso não conseguir
apenas admirar esse amor de namorados
sem ressalvas, sem alertas.
Mas já inevitável.
Eu não tenho mais 16 anos.
Já não consigo amar assim:
macio, liso, puro.

Guardo em mim
pouco de mim.
E tento salvar o que restou.

Dúvida, frigidez, ressalva...
Sexo: carne fria massacrando carne fria.
Sem vontade, encanto,
amor assim.

“Que na verdade ainda não é amor”,
é o que afirmamos,
numa tentativa vã de driblar nossa incapacidade
de amar plenamente.

Será o amor um dom reservado aos jovens?
Os jovens, que pouco sabem
e muito pensam que sabem.

Sabem amar apenas.
(Apenas?)
Esse amor cansado de adjetivos
que observo, capto, invejoso.


Mosaico

     "Devo ir ou não?" ela me dizia, referindo-se à faculdade. Respondi vagamente, contraindo a parte inferior da boca e erguendo os ombros "Cê que sabe... vai ter algo importante?", não tendo ainda percebido que ela gostaria de me ouvir falar "Não vai. Fica aqui comigo."
     Ela indo ou não, ainda tínhamos tempo. Eram quatro da tarde e fazia muito sol. Estávamos no seu quarto, esparramados sobre dois colchões no chão que se separavam facilmente, fazendo com que nossos corpos quentes tocassem o piso frio. Nos conhecíamos há três horas.
     "Sabe", eu disse, "eu me sinto bem. Sei que isso pode parecer banal, mas passei por momentos realmente terríveis recentemente. Sinto como se a vida finalmente tivesse me recompensando pelos testes sádicos". Ela sorriu e pareceu não ter entendido. Levantou as sobrancelhas, como de costume, e afundou sua cabecinha entre os ombros, como um brinquedinho de armar, e bastasse um toque para que sua cabeça pulasse. Peguei-a pela cintura e rolamos para a direita até que eu ficasse em cima dela, dominante.
     Me olhou, impassível. Novamente ergueu as sobrancelhas e não pareceu se importar com a condição de recessiva. Trajava um riso meio sarcástico, que mais suscita do que revela. Meus braços tremeram um pouco por apoiarem totalmente o peso do corpo. Lentamente, me deitei ao lado dela, de lado, o cotovelo esquerdo dobrado e o braço arqueado, sustentando-me a cabeça que estava leve. Com a mão direita acariciei seu umbigo, levantei sua blusa aos poucos  atalho que havia descoberto recentemente  e olhei dentro dos seus olhos. Ela desviou o olhar, tímida. "O jeito que você encara é muito estranho. Parece que você olha dentro da gente, roubando alguma coisa!".
     Já não era a primeira vez que eu ouvia isso. Aliás, ouvia isso com frequência.
     "Ai, Deus, vou ou não vou pra faculdade?", "Não vai. Pronto. Fica aqui comigo hoje!", então pareceu aliviada e disse, como já tivesse arquitetado há tempos "Tudo bem. Hoje eu fico aqui, aí amanhã eu saio mais cedo de casa e resolvo o que eu tenho que resolver, depois vou direto pra aula".
     Assenti silenciosamente, percebendo que ela já havia estabelecido que não iria à aula, esperando apenas o meu aval, dividindo a culpa da negligência.
     Silêncio. O ventilador nos soprava, brando. Fazia calor, um calor envolvente, tenro, com pequenas sugestões de ardor. Eu olhava para o céu através da janela entreaberta. Uma única nuvem de muito contraste e contornos ilustrava o centro da imagem. Era pequena. Muito acima, separadas pelo azul leve, um emaranhado de nuvens disformes, quase dissolvidas, que formavam então uma visão onírica; um tipo de passagem para algum lugar, coroando a imagem da pequena nuvem obstinada.
     "Você já reparou nessa janela?" ela perguntou, me cortando o pensamento. "Olha esse desenho que ela formou".
     A janela era revestida por um tipo de adesivo azul escuro, de certa forma translúcido, repleto de riscas. Riscas largas como rios num mapa, riscas estreitas como suas afluentes. O conjunto de riscas formava um mosaico medieval, como a estampa de um brasão ou o fundo de uma bandeira nobre. Muito bem pensado e trabalhado. "Foi o sol que fez isso com o adesivo. Não sei como, mas foi o sol. Esse adesivo era inteiro preto quando eu coloquei".
     Era difícil de acreditar, no entanto, ela falava a verdade. Falava num tom de inocência, como alguém que realmente não compreende algo mas não questiona, apenas admira. Eu me sentia bem. Constatei que a lembrança daquela tarde, com aquela garota recém-conhecida, naquele quarto arejado e claro, sobre os colchões no chão, em frente ao ventilador, logo depois de ímpares momentos a dois e observando o mosaico natural... constatei que aquela tarde me fixaria a memória eternamente.
     Pensei em lhe dizer isso, mas preferi apenas me deitar sobre ela e dizer o quão bonito era o seu sorriso.

a morte do amigo

era uma pessoa incomum o meu amigo.
se não choro sua morte – ainda – é porque sei que ele não choraria se a soubesse.
e sei também que ela veio a seu convite.

preciso ser breve.
sei que em instantes vou compreender sua morte. e desabarei.
então chorarei ininterruptamente.
chorarei por saber o que só eu poderia saber. chorarei porque fui sua última testemunha. chorarei porque vi seus olhos imprudentes e destrutivos
naquela noite.
chorarei por ter recebido a notícia cinco dias depois de consumada a sua morte.
chorarei porque era ele, e meu choro tem permissão para ir e vir.
chorarei lembrando do que só eu poderia lembrar.
nossas aventuras imaturas desbravando o país; chorarei nossos momentos de caos e ordem.
até os debates insuportáveis terão mais harmonia em meu pensamento triste.
chorarei por ter adivinhado sua morte, sendo o telefonema apenas a confirmação.
chorarei pensando que poderia ter impedido.
(sei que não poderia.)
e seria injusto porque era a sua vontade.
e sempre dói pra quem fica.
ainda dói sem lágrimas e sei que essa dor ainda não é dor.

poderia ter sido daquela outra vez, poderia ter sido na praia, poderia ter sido naquela casa absurda, naquela vila de pescadores,
do alto daquela cachoeira – aqui teria sido eu –, poderia ter sido soterrado, por tiros no meio do mato, overdose, suicídio… até que demorou.
nós a procurávamos juntos. incessantemente.
a morte.
ele a encontrou. e talvez volte para me dizer “olha, desencana, é a mesma merda, só que morto” e eu diga “ah, tudo bem, então vou ver se encontro algo pra fazer por aqui, forte abraço”.

respiro.
impeço que os olhos façam seu trabalho.
está quase na hora.
sua morte merecia o melhor dos poemas, mas a vida também não anda fácil.
bloqueio os olhos mais uma vez.
mas é inútil. as lágrimas virão. aliás, já estão aqui,
à espera do ponto final.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

A mulher mineira

Existe qualquer coisa de fantástico na mulher mineira.
Talvez o rostinho de formiga submissa
ou a apodítica ingenuidade.
Pernas fortes de subir ladeira,
o sotaquinho tão gracioso, ou esse próprio inho.

Existem também as desabrochadas —
tão minhas em minhas memórias.
Carregam essas no olhar algo inalcançável à mulher paulista.
Um tipo de riso sarcástico quase secreto por se saber acima.
Um desleixo espontâneo.

E então as jovens?
Exalam vida como orvalho!

É impossível caminhar por ruas mineiras e não amar.
Quase todas e cada uma delas.
Além disso, existe um certo traço grosseiro de inteiras palavras,
comum às mulheres de interior.
No entanto, têm classe.

Modigliani seria incapaz de pintar a mulher mineira.
(Eu garanto.)
Assim como creio ter sido incapaz de descrever o que essas amostras de Madalena
provocam em mim.

Montes Claros/MG, fevereiro de 2013                                                                         

maioridade

uma menina assustada
cheia de tiques, temores e traumas,
cheia de certezas e páginas cheias de certeza protetora.

uma menina sabida
que vai ao banco e se tranca,
que tem pudores, medo, fotografias na janela, tiques, traumas,
meias-páginas de incertezas e máximas.

uma menina 
flexível, pequena, pequeníssima!
assustada e retraída
com lentes que não vêem o mundo à volta,
o mundo à frente, o mundo que a justifica.

uma menina com lentes
que enxerga, que enxergam, 

que enxergarão páginas cheias de páginas,
mas, por pudores, evitarão as páginas

cheias de verdade.