sexta-feira, 24 de maio de 2013

Mosaico

     "Devo ir ou não?" ela me dizia, referindo-se à faculdade. Respondi vagamente, contraindo a parte inferior da boca e erguendo os ombros "Cê que sabe... vai ter algo importante?", não tendo ainda percebido que ela gostaria de me ouvir falar "Não vai. Fica aqui comigo."
     Ela indo ou não, ainda tínhamos tempo. Eram quatro da tarde e fazia muito sol. Estávamos no seu quarto, esparramados sobre dois colchões no chão que se separavam facilmente, fazendo com que nossos corpos quentes tocassem o piso frio. Nos conhecíamos há três horas.
     "Sabe", eu disse, "eu me sinto bem. Sei que isso pode parecer banal, mas passei por momentos realmente terríveis recentemente. Sinto como se a vida finalmente tivesse me recompensando pelos testes sádicos". Ela sorriu e pareceu não ter entendido. Levantou as sobrancelhas, como de costume, e afundou sua cabecinha entre os ombros, como um brinquedinho de armar, e bastasse um toque para que sua cabeça pulasse. Peguei-a pela cintura e rolamos para a direita até que eu ficasse em cima dela, dominante.
     Me olhou, impassível. Novamente ergueu as sobrancelhas e não pareceu se importar com a condição de recessiva. Trajava um riso meio sarcástico, que mais suscita do que revela. Meus braços tremeram um pouco por apoiarem totalmente o peso do corpo. Lentamente, me deitei ao lado dela, de lado, o cotovelo esquerdo dobrado e o braço arqueado, sustentando-me a cabeça que estava leve. Com a mão direita acariciei seu umbigo, levantei sua blusa aos poucos  atalho que havia descoberto recentemente  e olhei dentro dos seus olhos. Ela desviou o olhar, tímida. "O jeito que você encara é muito estranho. Parece que você olha dentro da gente, roubando alguma coisa!".
     Já não era a primeira vez que eu ouvia isso. Aliás, ouvia isso com frequência.
     "Ai, Deus, vou ou não vou pra faculdade?", "Não vai. Pronto. Fica aqui comigo hoje!", então pareceu aliviada e disse, como já tivesse arquitetado há tempos "Tudo bem. Hoje eu fico aqui, aí amanhã eu saio mais cedo de casa e resolvo o que eu tenho que resolver, depois vou direto pra aula".
     Assenti silenciosamente, percebendo que ela já havia estabelecido que não iria à aula, esperando apenas o meu aval, dividindo a culpa da negligência.
     Silêncio. O ventilador nos soprava, brando. Fazia calor, um calor envolvente, tenro, com pequenas sugestões de ardor. Eu olhava para o céu através da janela entreaberta. Uma única nuvem de muito contraste e contornos ilustrava o centro da imagem. Era pequena. Muito acima, separadas pelo azul leve, um emaranhado de nuvens disformes, quase dissolvidas, que formavam então uma visão onírica; um tipo de passagem para algum lugar, coroando a imagem da pequena nuvem obstinada.
     "Você já reparou nessa janela?" ela perguntou, me cortando o pensamento. "Olha esse desenho que ela formou".
     A janela era revestida por um tipo de adesivo azul escuro, de certa forma translúcido, repleto de riscas. Riscas largas como rios num mapa, riscas estreitas como suas afluentes. O conjunto de riscas formava um mosaico medieval, como a estampa de um brasão ou o fundo de uma bandeira nobre. Muito bem pensado e trabalhado. "Foi o sol que fez isso com o adesivo. Não sei como, mas foi o sol. Esse adesivo era inteiro preto quando eu coloquei".
     Era difícil de acreditar, no entanto, ela falava a verdade. Falava num tom de inocência, como alguém que realmente não compreende algo mas não questiona, apenas admira. Eu me sentia bem. Constatei que a lembrança daquela tarde, com aquela garota recém-conhecida, naquele quarto arejado e claro, sobre os colchões no chão, em frente ao ventilador, logo depois de ímpares momentos a dois e observando o mosaico natural... constatei que aquela tarde me fixaria a memória eternamente.
     Pensei em lhe dizer isso, mas preferi apenas me deitar sobre ela e dizer o quão bonito era o seu sorriso.

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