sábado, 26 de abril de 2014

Industrial


Querendo fugir desse apartamento
que me confina,
olho pela janela e não vejo vida.
Compreendo: a vida é anti, mas também sua ausência.

Um alvorecer vermelho áspero industrial revela o inevitável:
                       carros
que esperam vazios seus dependentes
(alguns já enfrentam mais um dia),
trilhos prontos pra carga humana,
altos prédios em blocos-cinza,


Muros


construções embargadas, guaritas vazias,
bancos vazios na estação...

Em qual lugar,
em qual refúgio terreno esconde-se a vida?

Sob qual luz,
sob qual luz que não seja essa 
opaca e leitosa 
revela-se o milagre?
   
       ,meu peito vazio
se contorce
           sem luz.

Meu peito sem leite pulsa e não ecoa.
Pelas minhas veias corre o ferro
o chumbo
metais pesados e leves
presentes nessa paisagem industrial que me brinda em todas as manhãs que encaro o dia.

           
Compreendo: também a ausência é vida.
Também o ferro moldado é vida.
Também o vazio é vida.    
Compreendo: mesmo a espera é vida.


Querendo fugir desse apartamento
triste que me confina,
olho pela janela outra vez e compreendo:
                                                         
                                                              viver dói.      
                                         (Vida essa amputada e nunca plena.)

E mesmo o amar não é pleno 
exige vigília e na vigília torna-se câncer.


Vem comigo...
Ao menos na minha fantasia, sejamos plenos.
Ainda que nas promessas, sejamos plenos.
Ainda que nos poemas, sejamos plenos.
Porque a vida não basta.

Tento outra vez, falho
e volto.

Volto e me refugio nesse poema interrompido
                                e impotente.


São Paulo, outubro de 2013

terça-feira, 22 de abril de 2014

Discurso sobre as camadas do silêncio


As duas batidas secas e ágeis na porta interromperam o ritual diário de Poliedo. Estirado no escuro, colchão no chão, numa espécie de transe induzido, Poliedo recebeu aquelas batidas como um aviso aflito e pesaroso; semelhante ao pai que nutre grande amor pelo filho, mas, num ultimato, anuncia que não medirá esforços para afastá-lo do vício em drogas.
Era sua esposa  Poliedo sabia  do outro lado da porta do quarto, usado como biblioteca e refúgio.

 Pode entrar.

Como alguém que se arrepende, a esposa de Poliedo abriu a porta cautelosamente e, enxergando apenas as pernas do marido  iluminadas pelo feixe de luz que acabara de entrar –, ainda do lado de fora ela perguntou:

 Não vem comer? Já esfriou tudo. Seus bifes eu ia fritar na hora, senão fica duro.
 Pode deixar que eu me viro depois, não to com fome agora respondeu estático, tendo apenas tensionado involuntariamente a coxa esquerda, ainda de olhos fechados.

A esposa ainda manteve a porta aberta por alguns segundos – Poliedo se percebia observado , então o silêncio e a penumbra tornaram a reinar no quarto.
Ele não sabia, sequer tinha interesse, mas os relógios já passavam das 18h; exceto o da cozinha, sem pilha, parado às 11:45 – e justamente nisso pairava seu pensamento desconcentrado e nômade.
Lá fora o trânsito se intensificava, era possível perceber pelo som urbano dos motores, pneus no asfalto da avenida e, sobretudo, pela suspensão parcial do silêncio.
“Eu deveria escrever sobre o silêncio...”, pensava então, “sobre as múltiplas camadas do silêncio... As diversas naturezas do silêncio, talvez até me trancar numa sala anecóica pra compreender de fato o que é o silêncio, porque certamente isso não é. O que agora trato como silêncio é simplesmente o isolamento; o abismo entre eu e o resto do mundo. Silêncio é o que preenche essa bolha onde agora eu estou; esse espaço em branco, vazio, escuro. Pela janela, além do trânsito, me invadem inúmeros ruídos: o canto insistente de uma cigarra, talheres tilintando, algum pássaro muito distante, a voz abafada de uma criança e outras dezenas que percebo mas não decifro, que impedem um certo tipo de vácuo, que dão textura a esse espaço que me abraça, possibilitando o próprio isolamento. O silêncio cotidiano nunca é pleno. E eu sou muito grato a isso...”
Poliedo levantou num pulo, ofegante, tomado por um formigamento cego, acendeu a luz e se pôs a procurar papel e caneta, afim de transcrever seus pensamentos acerca do silêncio, mas – como sempre – fatores externos arruinaram seus planos. Encontrou papel, mas não caneta. Teve ódio ao ver as palavras se perderem; ao ver que, sob a luz, era apenas um homem comum inserido num enredo tragicômico, encenado de si para si.
Abriu a porta do quarto e ao fazer isso sentiu uma lufada de ar leve e límpido  quase pôde notar claridade no corpo do ar. A esposa estava na sala, entretida em alguma atividade.

 A carne tá num pote, na geladeira, já temperei, é só fritar.
 Você viu a caneta?
 Que caneta?
 Aquela que eu uso pra preparar as aulas. Pode ser qualquer uma, na verdade...
 Não sei, não sou eu que uso... deve estar nas suas coisas de música.
 Não tá, já procurei – retrucou com certa agressividade.
 Eu não sou obrigada a saber onde você guarda suas coisas. E não começa a gritar comigo, eu não fiz nada!
 Não to gritando, caralho!, mas é sempre assim, quando eu finalmente consigo sair do marasmo, tudo acontece pra me atrapalhar e eu não consigo produzir!
Oh, tadinho! – disse num tom irônico que irritou Poliedo ainda mais – Como o mundo é cruel com você, né?
 Vai se foder! Só te pedi uma caneta, porra, não uma opinião.
 Pra quê falar assim, meu? Não joga a culpa em mim; se você não consegue mais escrever, não é me culpando que isso vai ser resolvido. E talvez se você se preocupasse um pouco mais com outras coisas, não se frustraria tanto quando uma coisinha assim desse errado...
 Como assim “outras coisas”? O que você sabe sobre isso?! Eu só te pedi a porra de uma caneta, não um sermão! – interrompeu, já se dirigindo ao quarto.
 É sempre assim – a esposa insistia –, você passa o dia inteiro em casa fazendo nada, fora do mundo real e, quando não consegue escrever, me agride, me rebaixa...

Poliedo mal havia fechado a porta, abriu-a de novo, com brutalidade, e foi na direção da esposa; pegou-a pelo braço com rispidez e olhou-a de modo opressor, de cima para baixo.

 “Fazendo nada”?! Eu não tenho culpa se você escolheu se atarefar ao ponto de não conseguir mais pensar...
 Ah, eu escolhi?!
 ...Eu me dou o direito de ficar parado e não vejo mal nisso! Ou você acha que suas aulinhas e seu trabalhinho num balcão são mais reais que meus textos? Você acha que as visitinhas que você é obrigada a fazer à sua mãe são mais reais e mais importantes que minhas meditações?! Você se acha mais humana por conviver no meio das pessoas, mas na verdade você não sabe nada sobre elas! Eu vivo desse jeito, em silêncio e no escuro, porque me condenei a isso. É meu dever! E eu cumpro ele! E sou bom nele! Agora me dá a porra da caneta e pode voltar pros seus afazeres reais e ridículos!

Poliedo saiu de cena com orgulho, sem caneta e sem resposta. Sabia que havia exagerado, que não devia ter rebaixado a esposa e que no fim ela estava certa. Precisava arranjar um emprego se quisesse seguir com aquela vida comum, matrimonial. Pensou em pedir desculpas, mas sabia que amanhã tudo estaria bem outra vez.
Sentiu falta dos seus dias de estrada e da parcial liberdade que isso proporcionava.
Então, sem mais nem menos, achou a caneta. Voltou ao quarto, mas a atmosfera densa e repovoada condenou suas últimas palavras ao ostracismo. O discurso sobre as camadas do silêncio teria de esperar.
Poliedo catou uma toalha limpa e se dirigiu ao chuveiro, desejando um demorado banho, no escuro. “Mais tarde, revigorado, eu posso finalmente escrever”, pensou.

***

O que se seguiu não foi exatamente assim. Depois de um longo e lento banho no escuro, Poliedo fritou os dois bifes e sentou-se no sofá, diante da TV desligada, decidido a encontrar um emprego no dia seguinte.



quarta-feira, 16 de abril de 2014

Presságio

I


     O cheiro que senti num relance quando me aproximava do aglomerado de universitários foi um presságio. Mergulhei na memória que o cheiro trazia e era tempero de carne, um taco de madeira alheio ao piso e a pele queimada, imprudente. Tendo a dizer que o cheiro na verdade é só da pele assada; inventei o tempero por inocência. Essa lembrança é antiga e hoje percebo que o cheiro doce e mórbido que senti num relance ao me aproximar do aglomerado de universitários é da pele queimada. O taco é adorno. Adorno da sala, adorno da memória. O taco não estava presente na ocasião, se bem me recordo. O taco é uma alegoria da minha memória distorcida, uma sobra, um abscesso, um câncer, uma pele morta. A pele queimada com cheiro doce me marcou e agora já não me lembro o porquê de ter sentido que o cheiro era um presságio.
     Sinto meu corpo enrijecer quando estou a poucos passos dos universitários e quando adentro o bloco que eles formam, percebo que não é maciço o bloco e sim um montante de círculos constrangidos, mal elaborados, quadriculados por semi-conhecidos, alunos veteranos, alunos novatos e não-estudantes – que em sua maioria são mais velhos e mais escuros (tanto na pele como nas intenções) do que os estudantes, fáceis de distinguir.
     Vejo os mesmos padrões sendo formados e forçados em todos esses bares: duas garotas – uma delas recessiva e insegura – conversando sobre provas e professores com dois ou três garotos extremamente seguros de si (que eu quase diria estarem mais inseguros que a garota recessiva); três ou quatro amigos deslocados do bloco oco porém dentro dele, rindo efusivamente e balançando seus copinhos e suas garrafas e esticando o indicador pro céu, reproduzindo passinhos inseguros de alguma dancinha moderna, buscando projeção entre algum grupo de garotas com roupas apertadas e escovas já sem força, que tentam ofuscar com o excesso de maquiagem; garotas com seus copinhos de cerveja que servem de enfeite ou figurino porque não bebem a cerveja ou até bebem um copinho vez ou outra, mas hoje preferem evitar porque não ousam ficar estufadas, porque a roupa está apertada, porque acabou o remédio anti-gases e porque querem estar com hálito de chiclete na hora de encontrar os não-estudantes que chegarão de carro, o farol alto, o bumbo eletrônico rasgando o subwoofer e não vão descer do carro pra fazer marra. As garotas vão acenar, se despedir do bloco como quem estende roupa no varal, mas não por prática.
     Vejo também alguns solitários. Corajosos inseguros bebendo além da conta, sozinhos em suas motos ou bicicletas, com suas mochilas e sem companhia. Digo corajosos porque eu jamais teria peito de me fincar no chão, sozinho, olhando as paredes internas desse bloco oco. Não permito que me vejam numa situação constrangedora dessas. Meu ego é sensível, coitado.
     Julgo enxergar rostos conhecidos, mas quando chego mais perto percebo que não são as pessoas que eu imaginei e isso é óbvio porque as pessoas que julguei ter visto – amigos próximos e conhecidos que só me toleravam por boa intenção – não moram mais aqui. (Talvez eu não more mais lá.) Os rostos ficaram colados num álbum imaginário de recordações, em alguma caixa de papelão imaginária, com mais algumas tralhas, livros, roupas, hábitos, o clima úmido, o trânsito de cinco carros, a praia, o jardim que a floreia de ponta a ponta, as putas magras de 20 reais e toda minha família.
     Quase posso sentir o cheiro de mofo e pó que ficou aglomerado na caixa imaginária de papelão, mas ligeiro lembro-me do cheiro da pele queimada, imprudente, e quando busco no arquivo morto da minha memória o porquê da impressão de um presságio iminente, espirro. Espirro e emerjo de mim mesmo. Como uma bola de pingue-pongue que uma criança afunda na piscina, depois solta pra vê-la surgir como um golfinho. Espirro não pelo bolor, ou pela poeira, tampouco pela pele queimada que inocentemente comparei a tempero de miojo por tantos anos, mas pelo forte cheiro de asfalto recém colocado na avenida que apelidei de quintal. Ato contínuo, esqueço-me totalmente dos estudantes e não-estudantes e à puta que pariu com isso tudo. 


II  

  

     Me aproximava eufórico de casa. Máquinas curiosas removiam o asfalto com uma facilidade espantosa. O asfalto removido era lançado em pó num recipiente que ficava na parte traseira da máquina. Passei por uma rua que poderia subir se quisesse e seria um atalho pra casa, passei reto, mas pouco antes de chegar à entrada do Buffet dei meia-volta e corei porque hão de pensar que sou louco. Vinha andando a passos largos, daqueles que temos medo quando sonhamos ou quando algum amigo encena, fazendo voz de demônio, e de repente resolvo dar meia volta e subir a rua. É de se estranhar. Podem pensar que não me dei conta da rua, ou que a velocidade com a qual eu andava distorceu o espaço-tempo, de modo que...
     Não. A verdade é que nem sei se me notaram. Meu egocentrismo diz que sim, mas a razão desconfia. Dou três passos contados e largos rua acima, então me lembro da ultima vez em que estive aqui e pensei “esse caminho não vale a pena, nunca mais subo por aqui”, mas seria demasiado estranho se retornasse e retomasse minha antiga rota. Os homens, de louco, achariam que sou débil-mental. Ou que estou despistando algum perseguidor oculto a seus olhinhos suínos. Divagariam sobre meu jeito aterrorizante de andar, sem a desconfiança de que caminho assim por pressa, presságio entalado e vontade de cagar.
     Subo toda a rua como se com vaselina nas solas. Reduzo à primeira marcha, quase ponto morto, e perco a vontade, perco a pressa e o presságio já não tem lá tanta importância. Noto o orelhão que fica de fronte ao bar do cara com deficiência na mão - está fechado - e decido telefonar pra alguém. Insiro o cartão. Três unidades. Dá linha. Busco algum número ou motivo pra telefonar. Tento vencer a primeira oportunidade de linha. Sei que em breve vai dar sinal de ocupado. Tenho todos os números decorados, desde os que aprendi na infância e me gabo disso com freqüência, mas agora todos se misturam numa proporção bizarra porque não se misturam realmente e é só desculpa esfarrapada pra tampar o fato de eu não ter pra quem ligar.
     Dá sinal de ocupado e três garotas vêm descendo pelo oeste. Por obrigação finjo falar com alguém, pois pareceria que sou um estuprador que pretende surpreendê-las sob o poste sem luz, fronte ao bar fechado do mãozinha. Julgo estar louco. Julgo que elas pensaram o mesmo, não só porque fizeram silêncio quando passaram por mim, mas porque não falo com nexo. Se elas soubessem que falo apenas por falar, com o sinal de ocupado me perturbando do outro lado (e por isso as palavras sem harmonia) me julgariam mais louco ainda, então eu explicaria que só criei essa situação pra que elas não pensassem que quero estuprá-las (mas na verdade eu quero) e elas já se afastaram, descendo por onde eu subi e vou atrás delas num ímpeto que desconheço e paro de supetão imaginando se os recepcionistas ainda estariam na porta do Buffet e que se eu descesse agora teriam certeza de que subi pra buscar cocaína, então um diria “eu não disse?, era droga!” e o outro derreteria a face, contrariado.
     Não ter descido a rua foi uma boa escolha. Evito passar por louco, drogado, estuprador e tenho a chance de recuperar o cartão que esqueci no orelhão que apita, agudo, e só noto o apito quando chego muito perto do orelhão porque o barulho das máquinas removendo o asfalto está realmente alto.
     Respiro. Guardo o cartão no bolso de trás e sinto a chave de casa. Três unidades, nenhum número pra ligar. Nenhuma prece por mim esta noite. Meus amigos próximos e os que me toleram por boa intenção devem estar naquele bar que íamos quando eu ainda morava lá. Esse pensamento me consola. Sinto um prazer egoísta e excitante. Sorrio com o canto da boca e penso estar chamando atenção, parado no meio da rua. Não quero andar pra canto algum. Gostaria de me fincar no chão, sozinho, mas sem a atenção das universitárias inseguras, sentindo esse prazer macabro que me invadiu, tão genuíno. Sou teimoso e não movo centímetro. Sigo pensando em meus amigos naquele bar inseguro, com homens inseguros beliscando a bunda de outros homens inseguros, falando de futebol, vídeo-game, putas e empregos com extrema segurança. Todos em sua zona de conforto. Até a discórdia está na zona de conforto comum que se cria por inércia.
     Sinto certa raiva de tamanha estupidez. Deus, como é possível! Uma palavra nova, um pensamento novo, uma ação já seria novidade! Tento imaginar qual faísca salva a noite deles agora que eu não estou mais lá pra beber além da conta e proferir xingamentos terríveis aos ventos, aos outros, dizendo coisas que todos no fundo sabem, mas não ousam comentar. 


III, IV


     Chego ao portão de casa seguido pelo cachorro branco que vive por aí clamando ajuda e quando pensa que vou abrir pra ele entrar, enxoto-o a pisoteios e entro sozinho.
     Percorro o primeiro corredor com cautela. Não enxergo os degraus. Ambiciono escrever um conto assim que me instalar em casa. Penso em usar uma ideia que tive enquanto voltava do trabalho. Um conto que tem como ponto de partida um cheiro que me lembrei recentemente, e a falta de compromisso com o tema me tranquiliza porque é só um cheiro. Percorro o segundo corredor com mais desembaraço. As luzes de algum lugar cedem quase que por obrigação um pouco de claridade ao corredor com portas que é onde eu moro.
     Gosto daqui. Me sinto protegido e exilado. Um exílio opcional e silencioso. Aqui as pessoas não passam muito tempo, como se ficar em casa fosse um crime. Arranjam todos os pretextos imagináveis pra passar o dia todo fora de casa e só sobra tempo de sentir orgulho disso! Que ódio eu tenho dessas pessoas que levantam às cinco, sem ideia alguma do que estão fazendo, que se arrastam por aí, que acordam o sol com a batida no portão – mas não me acordam – e seguem pra algum curso ou pra algum emprego que odeiam e saem do emprego ou do curso que fazem pra poder mudar de emprego e vão pra outro curso, ou outro emprego, ou alguma faculdade que tratam como uma extensão da escola, ou como um intenso e extenso vestibular pra algum trabalho que almejam, mas a verdade é que não têm IDEIA de onde querem chegar. O que se sabe é que é crime ficar em casa. É crime deitar num colchão no chão e olhar pro teto e reparar nas paredes brancas ou no pedaço de céu que lhe é reservado; que ocupa todo o espaço que falta à telha quebrada e graças a deus essa telha está quebrada porque o pedaço de céu que se vê é mágico. Muito melhor do que enxergar todo o céu possível do gramado de um parque, que é falso, que é frustrante, que não é céu e sim a luz do sol refletida em éter ou vácuo ou espaço ainda não colonizado. O céu que me brinda todos os dias é céu de verdade. É um refúgio dentro da minha casa que é meu refugio por essência. E é meu refugio porque aqui eu fico sozinho e quieto e no meio do Morro do Querosene onde as pinturas folclóricas se mesclam às roupas forçadamente despretensiosas dos moradores. E as pinturas folclóricas são também um refúgio porque não me forçam a reciclar o lixo ou evitar sacolas plásticas. Quem as pintou faria isso. Quem as pintou não fica em casa fitando o teto porque acha crime, bem como todos os meus vizinhos que ainda estão fora de casa quando eu chego e abro a porta e peço licença às baratas e sou ignorado e noto que faço papel de bobo em posição defensiva na porta de casa, como quem abre a porta e espera encontrar um homem armado.
      Entro.
     Fecho a porta mas não tranco. Nunca tranco. Acendo a luz do aposento que arrisco chamar de quarto, fingindo que não procuro baratas sobre o colchão. Atiro as tralhas – livros, toda a roupa do corpo, as chaves de casa, o cartão telefônico com três unidades e a vontade de estuprar as três garotas – às pressas no colchão e dou pra preparar um café porque sinto que hoje o texto flui. Abro a despensa improvisada num armário em pátina amarela e procuro café. O café aberto não é suficiente pra minha fome literária, então me obrigo a abrir o outro saco que é de café Pelé. Pego uma colher de sopa de café Pelé, adiciono o farelo do outro que é Três Corações e penso que devo inserir isso no texto que vai ter o cheiro agridoce como ponto de partida, mas logo descarto a ideia porque sei que vão julgar uma armação mal feita, uma piada ridícula. E no caso de nem perceberem que misturar café Pelé e café Três Corações é um fato curioso eu ficaria com cara de gelo porque pensariam ser um merchandising falho.
     Encho a panela com a água e descarto totalmente a ideia de inserir o café no texto. Esquento uma sopa grossa que tomo com pimenta e ligo a TV, sem som. Resolvo não interferir e tomo a sopa fazendo leitura labial. Sinto resíduos de sopa no meu bigode e tento sorver tudo de uma só vez mas me surpreendo com o gosto de bigode que entra na minha boca e a pimenta em excesso que vai direto pra a garganta e queima. Bebo da água que deixei congelar na noite passada na tentativa frustrada de apaziguar o ardor. Um mosquito zune (zune?) dentro do meu ouvido e me irrito, tento pegá-lo mas ainda estou atordoado, ele voa alto e eu me levanto e fico de pé no colchão e sigo o crápula com os olhos e sinto orgulho por não perdê-lo de vista. Encontro um momento oportuno e lanço um jab, erro e lanço uma sequência de cruzados e ganchos e tapas de mão frouxa e não há meio de nocautear o bicho que zune e alem de zunir me chupa o sangue mas duvido que o sangue seja meu quando o estraçalho e vejo um sangue claro demais.
     Dou um peteleco no que ficou grudado no meu anelar direito e vou deixar a cumbuca vazia na pia. Levanto o pé exageradamente pra não tropeçar no fio da TV, que anuncia um combate de MMA depois do programa sobre leitura labial. Hesito um pouco. Julguei ter visto essa luta na noite passada. Como pode? Até comentei sobre a luta com alguns colegas no trabalho e agora sei que fiz papel de besta! O pouco que vi da luta na madrugada de ontem foi suficiente pra me causar emoção na hora, na pausa entre sonhos conturbados e na verdade também era sonho essa pausa. Pesquei o momento do nocaute onde o lutador brasileiro acertava um belo chute no queixo do mexicano, fazendo o queixo esticar desproporcionalmente até que ficava muito mole e tocava o chão, me remetendo imediatamente a um pesadelo da infância. Agora é óbvio que foi sonho. Como pode o queixo de um homem virar melaço e tocar o ringue? Como fui dar a sorte de acordar e flagrar exatamente o momento do nocaute? Como posso ter visto a luta se dormi com a TV desligada?
     Volto pra cama com a xícara de café e tento ligar o computador, sem sucesso. Estou acostumado. Normalmente ele funciona pela vigésima tentativa. Engraçado. Vinte tentativas. Aproveito o tempo pra enriquecer o texto que pretendo escrever assim que o café esfriar e o computador me obedecer. Não consigo sair do tal cheiro.
     Ouço o silêncio. Sopro o café e levo a xícara à boca, mas não chego a tomar. Deposito o café no chão e ligo, certeiro, o computador. Estou ansioso. Volto a sentir aquele prazer mórbido. Ouço o asfalto ser desmantelado, mas não me importo muito com isso. Espero o computador funcionar direito e decido usar o asfalto no texto. O cheiro da pele queimada pode se fundir ao do asfalto fresco e eu posso inserir a situação constrangedora de passar pela calçada do bar da faculdade que tem aqui perto, encher linguiça descrevendo alguns tipos, posso dizer que passo por eles de cabeça baixa mas isso soaria submisso então uno os universitários a alguns amigos que julguei ter visto no mesmo bar dias antes, invento algumas metáforas que logo me escapam, penso em plagiar Budapeste, bebo o café e abro um arquivo com um início de texto que apago e deixo como linha inicial “O cheiro que senti, num relance, era adocicado...”. Gosto desse começo e sou obrigado a colocar fones de ouvido pra não ser interrompido por mosquitos.
     Miro a tela. A barra de texto piscando e estou obstinado a achar disritmia no seu piscar. Enrolo a mim mesmo. Não dou continuação à primeira linha, que mudo incessantemente. Sinto o cheiro absurdo que meu ralo emana e perco o foco. Meu ralo é um rombo indiscreto e fede o fedor de outras casas também. O cheiro adocicado das fezes da vizinha, da bosta do vizinho e da minha bosta que cheira muito melhor que a deles. Mas é injusto que o ralo exale esse cheiro quando eu não usei o banheiro. É injusto – e um pouco fetichista – que eu saiba quando meus vizinhos cagam. Só quando eles cagam eu noto suas presenças.
     Vou até o ralo e despejo mais que o necessário de desinfetante. O cheiro é forte e ofusca o do ralo. Fecho a porta do banheiro sem olhar pra trás, meio fazendo tipo, meio querendo me tornar um homem digno de se colocar num texto que começa com a frase “Quando senti aquele cheiro de pele queimada, num relance, senti que...” e não prossegue. Mudo a introdução e largo o texto – a barra de texto piscando sincopada. Ouço um ruído familiar e me preparo. Cato um pé de tênis que nunca vi na vida e procuro a barata. Noto-a correndo desesperada pelo rodapé da cozinha e arremesso o tênis. Sinto uma dor absurda no ombro que esteve doído o dia todo e eu já nem lembrava. Desisto da barata. Ela entra na caixa dos livros. Levo a mão ao ombro esquerdo, que rodo em semicírculo. Acordei assim hoje. Com dor no ombro. “Talvez tenha sido a comemoração excessiva pela vitória do brasileiro”, penso, e rio um riso auto-suficiente e pateta. Me ocorre a genial ideia de fundir o cheiro da pele desmantelada, do asfalto queimado e do ralo coletivo, talvez acrescentar um perfume barato de alguma universitária insegura.
     Desisto do ralo. Pode parecer plágio. Plagiar o Chico Buarque é até válido porque a prosa dele – embora uma joia rude – sofre fortes influências da prosa alucinada-mas-lúcida do Saramago e por aí vai. Agora, plagiar Selton Mello e Lourenço Mutarelli é meninagem. Mudo a primeira linha do texto e parece que agora vai. Falo do cheiro da pele, invento um taco de madeira pra ilustrar, falo dos universitários, uso exemplos antigos, embarco numa prosa alucinada que não é joia nem lúcida mas não dou bola. Invento um presságio, um cartão telefônico, meninas a oeste, um orelhão na minha rua, um estupro, enfio o Mãozinha no texto, aproveito pra falar das baratas, repudiar os vizinhos, falo falo falo e falo sem sair muito do lugar. Patino na areia fofa. 3.347 palavras escritas e eu só voltei do trabalho pra casa. Passei por jovens sedentos por sexo, cheiros muitos, ruas íngremes, Buffets, céus e parques, um cão carente e uma sopa grossa; até fiz café mas não atingi questão alguma, não concluí nada, não fiz a coisa andar e amanhã eu não posso esquecer de falar pra Maria arrumar os embrulhos de presente. Alternei momentos de bastante pontuação com momentos onde vírgulas pouco se faziam notar, mas acho que não obtive êxito, um mosquito zune (zune?) no meu ouvido e eu largo o texto porque levanto com ódio e quero matá-lo, mas não consigo, então vou até a cozinha pegar a garrafa d’água que sei que deixei congelar e tropeço no fio da TV que desliga e me deixa prostrado no escuro ouvindo o tilintar de alguma barata atrás de mim e piso em ovos pra não pisar em baratas e vou até o interruptor da cozinha com o coração equivalente a um bumbo eletrônico rasgando o subwoofer e quase ouço meu tórax rasgar mas não dá tempo porque acho o interruptor e vou acender a luz com a mão frouxa porque temo tocar em baratas, dou um peteleco fugaz e erro e desisto da cozinha e volto para o aposento que arrisco chamar de quarto num desespero que só Gregor Samsa sentiu quando, numa certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, se viu metamorfoseado num inseto gigante.
     Acendo a luz. 



I, V


     O cheiro que senti num relance quando me aproximava do aglomerado de universitários foi um presságio. Mergulhei na memória que o cheiro trazia e era tempero de carne, um taco de madeira alheio ao piso e a pele queimada, imprudente. Tendo a dizer que o cheiro na verdade é só da pele assada; inventei o tempero por inocência. Essa lembrança é antiga e hoje percebo que o cheiro doce e mórbido que senti num relance ao me aproximar do aglomerado de universitários é da pele queimada. O taco é adorno. Adorno da sala, adorno da memória. O taco não estava presente na ocasião, se bem me recordo. O taco é uma alegoria da minha memória distorcida, uma sobra, um abscesso, um câncer, uma pele morta. A pele queimada com cheiro doce me marcou e agora já não me lembro o porquê de ter sentido que o cheiro era um presságio...


terça-feira, 15 de abril de 2014

momento

vivi um momento que sei que será eterno
e o fator eternizante não é o texto.
tanto faz escrevê-lo ou não.
se o faço agora é na busca de preenchimento
(vivo um instante vazio, de espera)

foi um momento branco.
e foi leve, rarefeito,
recebendo aquela carícia nova e pura
mais lá do que cá, pretendendo parecer cá
perguntei sobre etimologia e já não lembro a resposta.

não dormi
mas conheci uma esquina fantástica da consciência
e voltei com uma certeza:
vivi um momento que sei que será eterno.

Montes Claros/MG, fevereiro de 2013                                                                                        

segunda-feira, 14 de abril de 2014

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Noite de espera

"Eu não devia ter tomado aquele café", pensava Carmen com os cotovelos apoiados no parapeito da janela. Numa das mãos segurava um terço; cuidadosamente passeava os dedos através das pequenas bolinhas de plástico, cumprindo suas orações cheias de angústia. Era noite quente e úmida. Não ventava. O céu, sem nuvens, parecia especialmente distante, como se Deus recusasse a ouvir e atender as preces de Carmen.
A luz amarelada e deficiente do poste entrava pelo vão da janela, formando um triângulo isósceles na parede do quarto. O neto de Carmen fingia dormir, o rosto enfiado no vão entre as duas camas que uniam todas as noites. A insônia se devia a uma soma de fatores: essa própria noite atípica, com um silêncio muito pesado e elétrico, eventualmente atravessado pelo gemido distante de algum trem de carga, lá do porto; o triângulo isósceles estampado na parede, fazendo o pequeno Leonardo lembrar-se de um recente pesadelo, onde um homem de chapéu isósceles entrava pela porta do quarto, dirigia-se até Carmen  que dormia na cama geminada  e realizava um tipo de benção, esfregava as mãos, sorria e sumia do quarto  esse mesmo quarto onde agora os dois, avó e neto, aguardam aflitos o retorno da única filha ainda viva de Carmen, mãe do pequeno Leonardo. Aliás, principal motivo da insônia mútua.
O relógio no criado-mudo não podia ser visto na penumbra úmida do quarto, mas a cada duro segundo que se arrastava, o ponteiro se fazia evidente. É inútil ponderar, mas a essa altura o pequeno e indesejado artefato já marca 3:54h. Vânia está fora de casa desde a manhã do dia penúltimo. Saiu pra "dar uma volta", e a essa hora é bem provável que tudo ao seu redor dê voltas e mais voltas. É bem provável que a essa hora Vânia esteja gastando salto em algum boteco realmente sujo, desses que poucos encaram; que poucos encaram à luz da lucidez; à luz da dignidade. É bem provável que a essa hora Vânia esteja eufórica com amigos e desconhecidos (que serão íntimos amigos essa noite, até que acabe a cerveja e a cocaína). 
Em casa, Carmen e Leonardo forjam tranquilidade, imaginando onde estará Vânia. Leonardo bem sabe que a mãe aparecerá hoje ou amanhã, a boca torta, o rosto desfigurado, a cara inchada de coriza e culpa, os olhos cambaleando dentro do crânio, como que ensaboados. Arrependidos, mas falsos. Leonardo sabe. Sabe porque, apesar dos míseros oito anos, está mais do que habituado a essa cena... 
O trem uiva mais uma vez lá fora, bem longe. E Carmen tem um impulso irrefreável. Larga o terço faltando ainda algum Pai-Nosso, veste apenas um casaco leve por cima da camisola rasgada, enfia os pés num par de chinelos, desce as escadas no escuro buscando não acordar o neto (que sequer fechou os olhos essa noite e agora ouve paralisado e aflito os passos da avó na escada, o uivo cada vez mais próximo e, na rua lateral, alguns passos que vão e vêm, ecoando dentro da noite, sob o céu opaco, sem que encontrem o portão e a campainha da casa). 
Carmen, 65 anos, trabalha como moldureira e sustenta uma casa com muitas bocas. Fixas e pedintes. Dentadas e doentias. Bocas limpas e bocas imundas, de vala ou injúria, tuberculose, AIDS. E nesse ambiente vive o que restou da família de Carmen, que agora anda pelas ruas da vizinhança com seus trajes esfarrapados, arrastando uma perna enferma, buscando a filha em qualquer esquina, em todos os bares da região. E finalmente encontra  o impulso foi certeiro, Vânia estava perto de casa, três quadras acima, num pequeno bar chamado NOSTRAVAMOS, bem lá no fundo, quase escondida por detrás de garrafas, copos e pessoas que Carmen tenta reconhecer. A cadeira de Vânia está a poucos passos do banheiro, percebe Carmen, do alto de sua agonia calejada. Não que a essa altura Vânia guardasse algum pudor; já cheirava cocaína há algumas horas, ali mesmo na mesa do bar  muito escuro e ruidoso. Carmen acompanhou o momento em que Vânia tirou do bolso um saquinho de pó, despejou no dorso da mão e meteu o nariz; jogou a cabeça pra trás na intenção de absorver toda a cocaína e foi nesse instante que notou a mãe parada diante da mesa, camisola e chinelo, diante de todas aquelas pessoas sem rosto. Vânia empalideceu. Pegou a bolsa, inalou fundo, levantou-se num pulo sem piscar os olhos e foi até a mãe. 
A discussão a seguir não é conveniente. Basta dizer que minutos depois as duas estavam em casa. Sangrando. Vânia tomava seu primeiro banho em três dias, enquanto Carmen requentava o café. 

Lá fora o dia raiava preguiçoso, sem nenhum sinal do trem.
No quarto, catatônico, o pequeno Leonardo sentia frio.


domingo, 13 de abril de 2014

A fila

Esse é um texto fictício, escrito há algumas semanas. Mas um fato semelhante, 
ocorrido dias atrás, dá um tom quase jornalístico e panfletário à obra. 
Tudo isso não passa de um mal-entendido.

Dedicado à Julia.


Stella surpreendeu a funcionária da mercearia ao pedir somente 300gr de queijo.

– As meninas foram viajar, Dona Stella?
– Não, menina, é que tem sobrado tanto queijo lá em casa... Ontem eu fiz uma torta com o queijo que sobrou, mas não dá... O quilo do queijo me custa quase um dia inteiro de trabalho! Pobre sofre... Você acredita que hoje eu peguei o trem às cinco e quinze e já tava lotado? Ah, não, tá um absurdo essa situação... 
– Pior que é verdade mesmo... Aqui ficou seis e cinquenta. A senhora deseja mais alguma coisa?
– Não, querida, é só isso mesmo! Até amanhã, se Deus quiser...
– Até amanhã!
– ...e Ele há de querer! 

Ao sair do laticínio teve de virar à esquerda porque a rua onde costumava virar estava interditada. "ATENÇÃO: HOMENS TRABALHANDO". Aquilo arruinou o humor de Stella, que não gostava de alterar seus caminhos. Há nove anos trabalha numa lanchonete de bairro, na parte nobre da cidade. Até sua casa são duas horas de transporte coletivo. Stella completou cinquenta anos no mês passado e, apesar da má condição financeira, guarda traços muito delicados e nobres, dir-se-ia até traços e hábitos de uma verdadeira dondoca. Não esconde as recentes mechas brancas, pelo contrário, faz questão de exibi-las quando alisa o cabelo, em datas especiais. Mãe de duas filhas, recentemente divorciada, finalmente aprendeu a subtrair do queijo diário a parte do ex-marido.
Teria de percorrer duas quadras até chegar na esquina de sua rua. Mas logo no início da primeira quadra notou um aglomerado de pessoas. Curiosa que era, apressou os passinhos e chegou bem perto para verificar; de estatura baixa, não conseguiu enxergar muito bem, mas notou que as pessoas se organizavam numa espécie de fila indiana. Incapaz de cometer um ato imoral, Stella se pôs a aguardar pacientemente atrás do último da fila.
Um leve toque no seu ombro esquerdo, vindo de trás, fez o corpo todo tremer, quase levando a sacola ao chão. Era um curioso; homem baixinho, cabeça larga e calva, bigode muito cheio e aparado, roupa de operário.

– Que é que tá acontecendo aí? – perguntou o homem em tom operário.
– Sabe que eu não sei – respondeu Stella, rindo muito –, eu tava voltando pra casa por essa rua porque a rua que eu sempre viro tá interditada, aí quando eu cheguei aqui, vi umas pessoas paradas na calçada e vim tentar descobrir o que era. Eu até perguntei prum moço mas ele não me respondeu.
– Eita, será que é briga, é?

O homem dobrava seu corpo para o lado direito, a fim de poder enxergar o motivo daquela quizumba, mas seu pescoço era curto demais, e a calçada (muito estreita) não possibilitava ao homem andar paralelo à fila. Pôs-se a esperar. Iniciaram uma animada conversa, ele e Stella. Falaram sobre empregos, sobre seus patrões, sobre filhos, casamento, o preço do ônibus, o tempo, falaram até sobre futebol – assunto que Stella não dominava.
Dez minutos, uma senhora gorda vinha pela calçada, mãos dadas a uma criança de uniforme e mochila nas costas. A mulher pediu licença e pareceu ter interrompido um funeral porque Stella e seu novo amigo olharam-na com olhar duro e condenador:

– Eu já estou aqui há dez minutos, desculpa, mas eu não vou deixar a senhora passar. Se quiser, que atravesse a rua e vá pela outra calçada.

(Stella tratava a maioria das pessoas por Senhor ou Senhora, mesmo quando da mesma faixa etária.)
A mulher olhou com pesar para a criança, que concordou em esperar. Logo estava inserida na efusiva conversa. Vez ou outra um curioso passava e perguntava, interessado, o motivo daquilo. Ninguém sabia dizer. O céu escurecia lentamente.
Então a fila já ocupava meia quadra. Pessoas vinham correndo, esticavam seus pescoços mas nada viam, então punham-se a esperar no final da fila, que já podia ser notada de longe. Alguns tentaram burlar a ordem, mas foram hostilizados brutalmente pelos que esperavam há mais tempo. Stella abriu ali mesmo a sacola do laticínio. Ofereceu queijo ao homem de cabeça larga, desejando que ele não aceitasse. Ele, querendo aceitar, recusou por educação. A gorda – faminta – perguntou para a criança se ainda restava algo do lanche; a criança, temerosa, fez que sim com a cabeça. Numa situação normal a gorda teria dado uma baita bronca, mas só o que fez foi abrir a lancheira e devorar um resto de sanduíche de patê.
Um homem em sua bicicleta passou lentamente pela fila vendendo suco, água e cerveja. Muitas mãos solicitaram o homem, que saiu dali minutos depois, com um lucro de $82. "Fiz meu dia", pensou.
A fila ocupava três quadras. Espalhou-se um rumor sobre sua origem. "Assassinato". Um jovem negro teria tentado assaltar uma senhora, mas foi pego em flagrante e agredido por um homem que passava. O negrinho tirou uma faca do bolso e matou o homem. Alguns diziam ter sido o contrário: o negro é quem morreu linchado. Outros, que a senhora é quem havia morrido.
"MATEM O NEGRINHO!" gritavam em coro alguns ocupantes no final da fila. Stella concordava: "É isso mesmo! A gente trabalha o dia inteiro, ainda tem que pegar trem e ônibus lotado pra chegar na rua de casa e ser assaltado! Se a polícia não faz nada, que matem o negro!"
Os negros saíam discretamente da fila, com medo de um possível equívoco.
Carros passavam, curiosos, já formando um engarrafamento em toda a avenida. "É um absurdo", bradavam, "essas cenas estão cada vez mais comuns. Estupro à luz do dia! Esse país tem é que afundar mesmo!"
Stella demonstrou frio e um homem lá de trás cedeu seu casaco, que foi passando de mão em mão até chegar a ela, que teve nojo e não vestiu. A noite caía sem que ninguém soubesse de fato o que estava acontecendo; ainda assim, aguardavam em fila alguma resposta. 
"Pegaram o bandidinho?!", gritaram lá do fundo. A pergunta ecoou até o começo da fila e seguiu sem resposta.

– Tá vendo, filho, é por isso que eu digo pra você estudar, pra não terminar igual esses bandidos aí, que às vezes matam por uma moeda de um real. – disse a gorda.
– Cadê o bandido, mamãe? Eu não consigo ver nada daqui!
– Eu também não to vendo, filho, mas tão dizendo que um marginalzinho matou uma menina de doze anos.
– Que que é "marginalzinho", mãe? 
– Deixa isso pra lá...

A população ficava cada vez mais inquieta. "Crime hediondo!", gritou um estudante de direito. A temperatura despencava brutalmente, uma fina garoa se fazia notar. Alguns cidadãos já desistiam. Largavam lentamente a fila, quase envergonhados por sua falta de fibra. Uns poucos ainda gritavam palavras de ódio ao passo que se distanciavam. 
"Se fosse comigo eu matava!"
Então a fila começou a andar. Simples assim. Alguns comemoravam a surpresa, outros mal acreditavam naquilo! Os desistentes voltaram imediatamente, mas tamanha a euforia do povo, tiveram de ir para o final ou seriam linchados ali mesmo, afinal, aquele lugar na fila era uma vitória, uma conquista da qual não abririam mão.
A fila andava muito rápido, alguns tinham dificuldade em acompanhar o ritmo. Dobraram a primeira esquina em ritmo de maratona, mas Stella cedeu; abandonou a fila. Parou na esquina de casa e, ao se aproximar, notou as filhas no portão.

– Demorou, mãe, a gente tava preocupada!
– Ai, desculpa! É que um bandido matou um homem ali na rua de trás, e eu tava lá vendo!
– Que horror, mãe! Você podia ter se machucado!
– Mas tinha bastante gente lá. O povo cansou de apanhar!
– Verdade, mãe. 
– A senhora trouxe queijo?
– Trazer eu até trouxe, mas comi metade no caminho. Me deu uma fome naquela fila! – Stella ria muito.
– Como assim, "fila"?
– A gente teve que fazer uma fila porque a calçada era estreita e a rua tava movimentada de carro, você acredita? – e gargalhava.
– Uma fila pra ver um cadáver? Que horror!
– Besta! Ninguém chegou a ver o cadáver, eu acho... Tinha muita gente. Cada um disse uma coisa, no fim das contas. Só o que eu sei é que o ladrão era preto!
– Olha, eu não sou racista, até tenho um colega de trabalho que é negro, mas pode ver, a maioria dos ladrões é preto.
– É verdade... – concordaram, confortáveis, entrando em casa.

Até hoje ninguém achou o cadáver. Ou a carteira. Ou vítima. Ou o bandido.
Sequer descobriram o motivo daquela fila ter surgido.