domingo, 13 de abril de 2014

A fila

Esse é um texto fictício, escrito há algumas semanas. Mas um fato semelhante, 
ocorrido dias atrás, dá um tom quase jornalístico e panfletário à obra. 
Tudo isso não passa de um mal-entendido.

Dedicado à Julia.


Stella surpreendeu a funcionária da mercearia ao pedir somente 300gr de queijo.

– As meninas foram viajar, Dona Stella?
– Não, menina, é que tem sobrado tanto queijo lá em casa... Ontem eu fiz uma torta com o queijo que sobrou, mas não dá... O quilo do queijo me custa quase um dia inteiro de trabalho! Pobre sofre... Você acredita que hoje eu peguei o trem às cinco e quinze e já tava lotado? Ah, não, tá um absurdo essa situação... 
– Pior que é verdade mesmo... Aqui ficou seis e cinquenta. A senhora deseja mais alguma coisa?
– Não, querida, é só isso mesmo! Até amanhã, se Deus quiser...
– Até amanhã!
– ...e Ele há de querer! 

Ao sair do laticínio teve de virar à esquerda porque a rua onde costumava virar estava interditada. "ATENÇÃO: HOMENS TRABALHANDO". Aquilo arruinou o humor de Stella, que não gostava de alterar seus caminhos. Há nove anos trabalha numa lanchonete de bairro, na parte nobre da cidade. Até sua casa são duas horas de transporte coletivo. Stella completou cinquenta anos no mês passado e, apesar da má condição financeira, guarda traços muito delicados e nobres, dir-se-ia até traços e hábitos de uma verdadeira dondoca. Não esconde as recentes mechas brancas, pelo contrário, faz questão de exibi-las quando alisa o cabelo, em datas especiais. Mãe de duas filhas, recentemente divorciada, finalmente aprendeu a subtrair do queijo diário a parte do ex-marido.
Teria de percorrer duas quadras até chegar na esquina de sua rua. Mas logo no início da primeira quadra notou um aglomerado de pessoas. Curiosa que era, apressou os passinhos e chegou bem perto para verificar; de estatura baixa, não conseguiu enxergar muito bem, mas notou que as pessoas se organizavam numa espécie de fila indiana. Incapaz de cometer um ato imoral, Stella se pôs a aguardar pacientemente atrás do último da fila.
Um leve toque no seu ombro esquerdo, vindo de trás, fez o corpo todo tremer, quase levando a sacola ao chão. Era um curioso; homem baixinho, cabeça larga e calva, bigode muito cheio e aparado, roupa de operário.

– Que é que tá acontecendo aí? – perguntou o homem em tom operário.
– Sabe que eu não sei – respondeu Stella, rindo muito –, eu tava voltando pra casa por essa rua porque a rua que eu sempre viro tá interditada, aí quando eu cheguei aqui, vi umas pessoas paradas na calçada e vim tentar descobrir o que era. Eu até perguntei prum moço mas ele não me respondeu.
– Eita, será que é briga, é?

O homem dobrava seu corpo para o lado direito, a fim de poder enxergar o motivo daquela quizumba, mas seu pescoço era curto demais, e a calçada (muito estreita) não possibilitava ao homem andar paralelo à fila. Pôs-se a esperar. Iniciaram uma animada conversa, ele e Stella. Falaram sobre empregos, sobre seus patrões, sobre filhos, casamento, o preço do ônibus, o tempo, falaram até sobre futebol – assunto que Stella não dominava.
Dez minutos, uma senhora gorda vinha pela calçada, mãos dadas a uma criança de uniforme e mochila nas costas. A mulher pediu licença e pareceu ter interrompido um funeral porque Stella e seu novo amigo olharam-na com olhar duro e condenador:

– Eu já estou aqui há dez minutos, desculpa, mas eu não vou deixar a senhora passar. Se quiser, que atravesse a rua e vá pela outra calçada.

(Stella tratava a maioria das pessoas por Senhor ou Senhora, mesmo quando da mesma faixa etária.)
A mulher olhou com pesar para a criança, que concordou em esperar. Logo estava inserida na efusiva conversa. Vez ou outra um curioso passava e perguntava, interessado, o motivo daquilo. Ninguém sabia dizer. O céu escurecia lentamente.
Então a fila já ocupava meia quadra. Pessoas vinham correndo, esticavam seus pescoços mas nada viam, então punham-se a esperar no final da fila, que já podia ser notada de longe. Alguns tentaram burlar a ordem, mas foram hostilizados brutalmente pelos que esperavam há mais tempo. Stella abriu ali mesmo a sacola do laticínio. Ofereceu queijo ao homem de cabeça larga, desejando que ele não aceitasse. Ele, querendo aceitar, recusou por educação. A gorda – faminta – perguntou para a criança se ainda restava algo do lanche; a criança, temerosa, fez que sim com a cabeça. Numa situação normal a gorda teria dado uma baita bronca, mas só o que fez foi abrir a lancheira e devorar um resto de sanduíche de patê.
Um homem em sua bicicleta passou lentamente pela fila vendendo suco, água e cerveja. Muitas mãos solicitaram o homem, que saiu dali minutos depois, com um lucro de $82. "Fiz meu dia", pensou.
A fila ocupava três quadras. Espalhou-se um rumor sobre sua origem. "Assassinato". Um jovem negro teria tentado assaltar uma senhora, mas foi pego em flagrante e agredido por um homem que passava. O negrinho tirou uma faca do bolso e matou o homem. Alguns diziam ter sido o contrário: o negro é quem morreu linchado. Outros, que a senhora é quem havia morrido.
"MATEM O NEGRINHO!" gritavam em coro alguns ocupantes no final da fila. Stella concordava: "É isso mesmo! A gente trabalha o dia inteiro, ainda tem que pegar trem e ônibus lotado pra chegar na rua de casa e ser assaltado! Se a polícia não faz nada, que matem o negro!"
Os negros saíam discretamente da fila, com medo de um possível equívoco.
Carros passavam, curiosos, já formando um engarrafamento em toda a avenida. "É um absurdo", bradavam, "essas cenas estão cada vez mais comuns. Estupro à luz do dia! Esse país tem é que afundar mesmo!"
Stella demonstrou frio e um homem lá de trás cedeu seu casaco, que foi passando de mão em mão até chegar a ela, que teve nojo e não vestiu. A noite caía sem que ninguém soubesse de fato o que estava acontecendo; ainda assim, aguardavam em fila alguma resposta. 
"Pegaram o bandidinho?!", gritaram lá do fundo. A pergunta ecoou até o começo da fila e seguiu sem resposta.

– Tá vendo, filho, é por isso que eu digo pra você estudar, pra não terminar igual esses bandidos aí, que às vezes matam por uma moeda de um real. – disse a gorda.
– Cadê o bandido, mamãe? Eu não consigo ver nada daqui!
– Eu também não to vendo, filho, mas tão dizendo que um marginalzinho matou uma menina de doze anos.
– Que que é "marginalzinho", mãe? 
– Deixa isso pra lá...

A população ficava cada vez mais inquieta. "Crime hediondo!", gritou um estudante de direito. A temperatura despencava brutalmente, uma fina garoa se fazia notar. Alguns cidadãos já desistiam. Largavam lentamente a fila, quase envergonhados por sua falta de fibra. Uns poucos ainda gritavam palavras de ódio ao passo que se distanciavam. 
"Se fosse comigo eu matava!"
Então a fila começou a andar. Simples assim. Alguns comemoravam a surpresa, outros mal acreditavam naquilo! Os desistentes voltaram imediatamente, mas tamanha a euforia do povo, tiveram de ir para o final ou seriam linchados ali mesmo, afinal, aquele lugar na fila era uma vitória, uma conquista da qual não abririam mão.
A fila andava muito rápido, alguns tinham dificuldade em acompanhar o ritmo. Dobraram a primeira esquina em ritmo de maratona, mas Stella cedeu; abandonou a fila. Parou na esquina de casa e, ao se aproximar, notou as filhas no portão.

– Demorou, mãe, a gente tava preocupada!
– Ai, desculpa! É que um bandido matou um homem ali na rua de trás, e eu tava lá vendo!
– Que horror, mãe! Você podia ter se machucado!
– Mas tinha bastante gente lá. O povo cansou de apanhar!
– Verdade, mãe. 
– A senhora trouxe queijo?
– Trazer eu até trouxe, mas comi metade no caminho. Me deu uma fome naquela fila! – Stella ria muito.
– Como assim, "fila"?
– A gente teve que fazer uma fila porque a calçada era estreita e a rua tava movimentada de carro, você acredita? – e gargalhava.
– Uma fila pra ver um cadáver? Que horror!
– Besta! Ninguém chegou a ver o cadáver, eu acho... Tinha muita gente. Cada um disse uma coisa, no fim das contas. Só o que eu sei é que o ladrão era preto!
– Olha, eu não sou racista, até tenho um colega de trabalho que é negro, mas pode ver, a maioria dos ladrões é preto.
– É verdade... – concordaram, confortáveis, entrando em casa.

Até hoje ninguém achou o cadáver. Ou a carteira. Ou vítima. Ou o bandido.
Sequer descobriram o motivo daquela fila ter surgido. 


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