quarta-feira, 16 de abril de 2014

Presságio

I


     O cheiro que senti num relance quando me aproximava do aglomerado de universitários foi um presságio. Mergulhei na memória que o cheiro trazia e era tempero de carne, um taco de madeira alheio ao piso e a pele queimada, imprudente. Tendo a dizer que o cheiro na verdade é só da pele assada; inventei o tempero por inocência. Essa lembrança é antiga e hoje percebo que o cheiro doce e mórbido que senti num relance ao me aproximar do aglomerado de universitários é da pele queimada. O taco é adorno. Adorno da sala, adorno da memória. O taco não estava presente na ocasião, se bem me recordo. O taco é uma alegoria da minha memória distorcida, uma sobra, um abscesso, um câncer, uma pele morta. A pele queimada com cheiro doce me marcou e agora já não me lembro o porquê de ter sentido que o cheiro era um presságio.
     Sinto meu corpo enrijecer quando estou a poucos passos dos universitários e quando adentro o bloco que eles formam, percebo que não é maciço o bloco e sim um montante de círculos constrangidos, mal elaborados, quadriculados por semi-conhecidos, alunos veteranos, alunos novatos e não-estudantes – que em sua maioria são mais velhos e mais escuros (tanto na pele como nas intenções) do que os estudantes, fáceis de distinguir.
     Vejo os mesmos padrões sendo formados e forçados em todos esses bares: duas garotas – uma delas recessiva e insegura – conversando sobre provas e professores com dois ou três garotos extremamente seguros de si (que eu quase diria estarem mais inseguros que a garota recessiva); três ou quatro amigos deslocados do bloco oco porém dentro dele, rindo efusivamente e balançando seus copinhos e suas garrafas e esticando o indicador pro céu, reproduzindo passinhos inseguros de alguma dancinha moderna, buscando projeção entre algum grupo de garotas com roupas apertadas e escovas já sem força, que tentam ofuscar com o excesso de maquiagem; garotas com seus copinhos de cerveja que servem de enfeite ou figurino porque não bebem a cerveja ou até bebem um copinho vez ou outra, mas hoje preferem evitar porque não ousam ficar estufadas, porque a roupa está apertada, porque acabou o remédio anti-gases e porque querem estar com hálito de chiclete na hora de encontrar os não-estudantes que chegarão de carro, o farol alto, o bumbo eletrônico rasgando o subwoofer e não vão descer do carro pra fazer marra. As garotas vão acenar, se despedir do bloco como quem estende roupa no varal, mas não por prática.
     Vejo também alguns solitários. Corajosos inseguros bebendo além da conta, sozinhos em suas motos ou bicicletas, com suas mochilas e sem companhia. Digo corajosos porque eu jamais teria peito de me fincar no chão, sozinho, olhando as paredes internas desse bloco oco. Não permito que me vejam numa situação constrangedora dessas. Meu ego é sensível, coitado.
     Julgo enxergar rostos conhecidos, mas quando chego mais perto percebo que não são as pessoas que eu imaginei e isso é óbvio porque as pessoas que julguei ter visto – amigos próximos e conhecidos que só me toleravam por boa intenção – não moram mais aqui. (Talvez eu não more mais lá.) Os rostos ficaram colados num álbum imaginário de recordações, em alguma caixa de papelão imaginária, com mais algumas tralhas, livros, roupas, hábitos, o clima úmido, o trânsito de cinco carros, a praia, o jardim que a floreia de ponta a ponta, as putas magras de 20 reais e toda minha família.
     Quase posso sentir o cheiro de mofo e pó que ficou aglomerado na caixa imaginária de papelão, mas ligeiro lembro-me do cheiro da pele queimada, imprudente, e quando busco no arquivo morto da minha memória o porquê da impressão de um presságio iminente, espirro. Espirro e emerjo de mim mesmo. Como uma bola de pingue-pongue que uma criança afunda na piscina, depois solta pra vê-la surgir como um golfinho. Espirro não pelo bolor, ou pela poeira, tampouco pela pele queimada que inocentemente comparei a tempero de miojo por tantos anos, mas pelo forte cheiro de asfalto recém colocado na avenida que apelidei de quintal. Ato contínuo, esqueço-me totalmente dos estudantes e não-estudantes e à puta que pariu com isso tudo. 


II  

  

     Me aproximava eufórico de casa. Máquinas curiosas removiam o asfalto com uma facilidade espantosa. O asfalto removido era lançado em pó num recipiente que ficava na parte traseira da máquina. Passei por uma rua que poderia subir se quisesse e seria um atalho pra casa, passei reto, mas pouco antes de chegar à entrada do Buffet dei meia-volta e corei porque hão de pensar que sou louco. Vinha andando a passos largos, daqueles que temos medo quando sonhamos ou quando algum amigo encena, fazendo voz de demônio, e de repente resolvo dar meia volta e subir a rua. É de se estranhar. Podem pensar que não me dei conta da rua, ou que a velocidade com a qual eu andava distorceu o espaço-tempo, de modo que...
     Não. A verdade é que nem sei se me notaram. Meu egocentrismo diz que sim, mas a razão desconfia. Dou três passos contados e largos rua acima, então me lembro da ultima vez em que estive aqui e pensei “esse caminho não vale a pena, nunca mais subo por aqui”, mas seria demasiado estranho se retornasse e retomasse minha antiga rota. Os homens, de louco, achariam que sou débil-mental. Ou que estou despistando algum perseguidor oculto a seus olhinhos suínos. Divagariam sobre meu jeito aterrorizante de andar, sem a desconfiança de que caminho assim por pressa, presságio entalado e vontade de cagar.
     Subo toda a rua como se com vaselina nas solas. Reduzo à primeira marcha, quase ponto morto, e perco a vontade, perco a pressa e o presságio já não tem lá tanta importância. Noto o orelhão que fica de fronte ao bar do cara com deficiência na mão - está fechado - e decido telefonar pra alguém. Insiro o cartão. Três unidades. Dá linha. Busco algum número ou motivo pra telefonar. Tento vencer a primeira oportunidade de linha. Sei que em breve vai dar sinal de ocupado. Tenho todos os números decorados, desde os que aprendi na infância e me gabo disso com freqüência, mas agora todos se misturam numa proporção bizarra porque não se misturam realmente e é só desculpa esfarrapada pra tampar o fato de eu não ter pra quem ligar.
     Dá sinal de ocupado e três garotas vêm descendo pelo oeste. Por obrigação finjo falar com alguém, pois pareceria que sou um estuprador que pretende surpreendê-las sob o poste sem luz, fronte ao bar fechado do mãozinha. Julgo estar louco. Julgo que elas pensaram o mesmo, não só porque fizeram silêncio quando passaram por mim, mas porque não falo com nexo. Se elas soubessem que falo apenas por falar, com o sinal de ocupado me perturbando do outro lado (e por isso as palavras sem harmonia) me julgariam mais louco ainda, então eu explicaria que só criei essa situação pra que elas não pensassem que quero estuprá-las (mas na verdade eu quero) e elas já se afastaram, descendo por onde eu subi e vou atrás delas num ímpeto que desconheço e paro de supetão imaginando se os recepcionistas ainda estariam na porta do Buffet e que se eu descesse agora teriam certeza de que subi pra buscar cocaína, então um diria “eu não disse?, era droga!” e o outro derreteria a face, contrariado.
     Não ter descido a rua foi uma boa escolha. Evito passar por louco, drogado, estuprador e tenho a chance de recuperar o cartão que esqueci no orelhão que apita, agudo, e só noto o apito quando chego muito perto do orelhão porque o barulho das máquinas removendo o asfalto está realmente alto.
     Respiro. Guardo o cartão no bolso de trás e sinto a chave de casa. Três unidades, nenhum número pra ligar. Nenhuma prece por mim esta noite. Meus amigos próximos e os que me toleram por boa intenção devem estar naquele bar que íamos quando eu ainda morava lá. Esse pensamento me consola. Sinto um prazer egoísta e excitante. Sorrio com o canto da boca e penso estar chamando atenção, parado no meio da rua. Não quero andar pra canto algum. Gostaria de me fincar no chão, sozinho, mas sem a atenção das universitárias inseguras, sentindo esse prazer macabro que me invadiu, tão genuíno. Sou teimoso e não movo centímetro. Sigo pensando em meus amigos naquele bar inseguro, com homens inseguros beliscando a bunda de outros homens inseguros, falando de futebol, vídeo-game, putas e empregos com extrema segurança. Todos em sua zona de conforto. Até a discórdia está na zona de conforto comum que se cria por inércia.
     Sinto certa raiva de tamanha estupidez. Deus, como é possível! Uma palavra nova, um pensamento novo, uma ação já seria novidade! Tento imaginar qual faísca salva a noite deles agora que eu não estou mais lá pra beber além da conta e proferir xingamentos terríveis aos ventos, aos outros, dizendo coisas que todos no fundo sabem, mas não ousam comentar. 


III, IV


     Chego ao portão de casa seguido pelo cachorro branco que vive por aí clamando ajuda e quando pensa que vou abrir pra ele entrar, enxoto-o a pisoteios e entro sozinho.
     Percorro o primeiro corredor com cautela. Não enxergo os degraus. Ambiciono escrever um conto assim que me instalar em casa. Penso em usar uma ideia que tive enquanto voltava do trabalho. Um conto que tem como ponto de partida um cheiro que me lembrei recentemente, e a falta de compromisso com o tema me tranquiliza porque é só um cheiro. Percorro o segundo corredor com mais desembaraço. As luzes de algum lugar cedem quase que por obrigação um pouco de claridade ao corredor com portas que é onde eu moro.
     Gosto daqui. Me sinto protegido e exilado. Um exílio opcional e silencioso. Aqui as pessoas não passam muito tempo, como se ficar em casa fosse um crime. Arranjam todos os pretextos imagináveis pra passar o dia todo fora de casa e só sobra tempo de sentir orgulho disso! Que ódio eu tenho dessas pessoas que levantam às cinco, sem ideia alguma do que estão fazendo, que se arrastam por aí, que acordam o sol com a batida no portão – mas não me acordam – e seguem pra algum curso ou pra algum emprego que odeiam e saem do emprego ou do curso que fazem pra poder mudar de emprego e vão pra outro curso, ou outro emprego, ou alguma faculdade que tratam como uma extensão da escola, ou como um intenso e extenso vestibular pra algum trabalho que almejam, mas a verdade é que não têm IDEIA de onde querem chegar. O que se sabe é que é crime ficar em casa. É crime deitar num colchão no chão e olhar pro teto e reparar nas paredes brancas ou no pedaço de céu que lhe é reservado; que ocupa todo o espaço que falta à telha quebrada e graças a deus essa telha está quebrada porque o pedaço de céu que se vê é mágico. Muito melhor do que enxergar todo o céu possível do gramado de um parque, que é falso, que é frustrante, que não é céu e sim a luz do sol refletida em éter ou vácuo ou espaço ainda não colonizado. O céu que me brinda todos os dias é céu de verdade. É um refúgio dentro da minha casa que é meu refugio por essência. E é meu refugio porque aqui eu fico sozinho e quieto e no meio do Morro do Querosene onde as pinturas folclóricas se mesclam às roupas forçadamente despretensiosas dos moradores. E as pinturas folclóricas são também um refúgio porque não me forçam a reciclar o lixo ou evitar sacolas plásticas. Quem as pintou faria isso. Quem as pintou não fica em casa fitando o teto porque acha crime, bem como todos os meus vizinhos que ainda estão fora de casa quando eu chego e abro a porta e peço licença às baratas e sou ignorado e noto que faço papel de bobo em posição defensiva na porta de casa, como quem abre a porta e espera encontrar um homem armado.
      Entro.
     Fecho a porta mas não tranco. Nunca tranco. Acendo a luz do aposento que arrisco chamar de quarto, fingindo que não procuro baratas sobre o colchão. Atiro as tralhas – livros, toda a roupa do corpo, as chaves de casa, o cartão telefônico com três unidades e a vontade de estuprar as três garotas – às pressas no colchão e dou pra preparar um café porque sinto que hoje o texto flui. Abro a despensa improvisada num armário em pátina amarela e procuro café. O café aberto não é suficiente pra minha fome literária, então me obrigo a abrir o outro saco que é de café Pelé. Pego uma colher de sopa de café Pelé, adiciono o farelo do outro que é Três Corações e penso que devo inserir isso no texto que vai ter o cheiro agridoce como ponto de partida, mas logo descarto a ideia porque sei que vão julgar uma armação mal feita, uma piada ridícula. E no caso de nem perceberem que misturar café Pelé e café Três Corações é um fato curioso eu ficaria com cara de gelo porque pensariam ser um merchandising falho.
     Encho a panela com a água e descarto totalmente a ideia de inserir o café no texto. Esquento uma sopa grossa que tomo com pimenta e ligo a TV, sem som. Resolvo não interferir e tomo a sopa fazendo leitura labial. Sinto resíduos de sopa no meu bigode e tento sorver tudo de uma só vez mas me surpreendo com o gosto de bigode que entra na minha boca e a pimenta em excesso que vai direto pra a garganta e queima. Bebo da água que deixei congelar na noite passada na tentativa frustrada de apaziguar o ardor. Um mosquito zune (zune?) dentro do meu ouvido e me irrito, tento pegá-lo mas ainda estou atordoado, ele voa alto e eu me levanto e fico de pé no colchão e sigo o crápula com os olhos e sinto orgulho por não perdê-lo de vista. Encontro um momento oportuno e lanço um jab, erro e lanço uma sequência de cruzados e ganchos e tapas de mão frouxa e não há meio de nocautear o bicho que zune e alem de zunir me chupa o sangue mas duvido que o sangue seja meu quando o estraçalho e vejo um sangue claro demais.
     Dou um peteleco no que ficou grudado no meu anelar direito e vou deixar a cumbuca vazia na pia. Levanto o pé exageradamente pra não tropeçar no fio da TV, que anuncia um combate de MMA depois do programa sobre leitura labial. Hesito um pouco. Julguei ter visto essa luta na noite passada. Como pode? Até comentei sobre a luta com alguns colegas no trabalho e agora sei que fiz papel de besta! O pouco que vi da luta na madrugada de ontem foi suficiente pra me causar emoção na hora, na pausa entre sonhos conturbados e na verdade também era sonho essa pausa. Pesquei o momento do nocaute onde o lutador brasileiro acertava um belo chute no queixo do mexicano, fazendo o queixo esticar desproporcionalmente até que ficava muito mole e tocava o chão, me remetendo imediatamente a um pesadelo da infância. Agora é óbvio que foi sonho. Como pode o queixo de um homem virar melaço e tocar o ringue? Como fui dar a sorte de acordar e flagrar exatamente o momento do nocaute? Como posso ter visto a luta se dormi com a TV desligada?
     Volto pra cama com a xícara de café e tento ligar o computador, sem sucesso. Estou acostumado. Normalmente ele funciona pela vigésima tentativa. Engraçado. Vinte tentativas. Aproveito o tempo pra enriquecer o texto que pretendo escrever assim que o café esfriar e o computador me obedecer. Não consigo sair do tal cheiro.
     Ouço o silêncio. Sopro o café e levo a xícara à boca, mas não chego a tomar. Deposito o café no chão e ligo, certeiro, o computador. Estou ansioso. Volto a sentir aquele prazer mórbido. Ouço o asfalto ser desmantelado, mas não me importo muito com isso. Espero o computador funcionar direito e decido usar o asfalto no texto. O cheiro da pele queimada pode se fundir ao do asfalto fresco e eu posso inserir a situação constrangedora de passar pela calçada do bar da faculdade que tem aqui perto, encher linguiça descrevendo alguns tipos, posso dizer que passo por eles de cabeça baixa mas isso soaria submisso então uno os universitários a alguns amigos que julguei ter visto no mesmo bar dias antes, invento algumas metáforas que logo me escapam, penso em plagiar Budapeste, bebo o café e abro um arquivo com um início de texto que apago e deixo como linha inicial “O cheiro que senti, num relance, era adocicado...”. Gosto desse começo e sou obrigado a colocar fones de ouvido pra não ser interrompido por mosquitos.
     Miro a tela. A barra de texto piscando e estou obstinado a achar disritmia no seu piscar. Enrolo a mim mesmo. Não dou continuação à primeira linha, que mudo incessantemente. Sinto o cheiro absurdo que meu ralo emana e perco o foco. Meu ralo é um rombo indiscreto e fede o fedor de outras casas também. O cheiro adocicado das fezes da vizinha, da bosta do vizinho e da minha bosta que cheira muito melhor que a deles. Mas é injusto que o ralo exale esse cheiro quando eu não usei o banheiro. É injusto – e um pouco fetichista – que eu saiba quando meus vizinhos cagam. Só quando eles cagam eu noto suas presenças.
     Vou até o ralo e despejo mais que o necessário de desinfetante. O cheiro é forte e ofusca o do ralo. Fecho a porta do banheiro sem olhar pra trás, meio fazendo tipo, meio querendo me tornar um homem digno de se colocar num texto que começa com a frase “Quando senti aquele cheiro de pele queimada, num relance, senti que...” e não prossegue. Mudo a introdução e largo o texto – a barra de texto piscando sincopada. Ouço um ruído familiar e me preparo. Cato um pé de tênis que nunca vi na vida e procuro a barata. Noto-a correndo desesperada pelo rodapé da cozinha e arremesso o tênis. Sinto uma dor absurda no ombro que esteve doído o dia todo e eu já nem lembrava. Desisto da barata. Ela entra na caixa dos livros. Levo a mão ao ombro esquerdo, que rodo em semicírculo. Acordei assim hoje. Com dor no ombro. “Talvez tenha sido a comemoração excessiva pela vitória do brasileiro”, penso, e rio um riso auto-suficiente e pateta. Me ocorre a genial ideia de fundir o cheiro da pele desmantelada, do asfalto queimado e do ralo coletivo, talvez acrescentar um perfume barato de alguma universitária insegura.
     Desisto do ralo. Pode parecer plágio. Plagiar o Chico Buarque é até válido porque a prosa dele – embora uma joia rude – sofre fortes influências da prosa alucinada-mas-lúcida do Saramago e por aí vai. Agora, plagiar Selton Mello e Lourenço Mutarelli é meninagem. Mudo a primeira linha do texto e parece que agora vai. Falo do cheiro da pele, invento um taco de madeira pra ilustrar, falo dos universitários, uso exemplos antigos, embarco numa prosa alucinada que não é joia nem lúcida mas não dou bola. Invento um presságio, um cartão telefônico, meninas a oeste, um orelhão na minha rua, um estupro, enfio o Mãozinha no texto, aproveito pra falar das baratas, repudiar os vizinhos, falo falo falo e falo sem sair muito do lugar. Patino na areia fofa. 3.347 palavras escritas e eu só voltei do trabalho pra casa. Passei por jovens sedentos por sexo, cheiros muitos, ruas íngremes, Buffets, céus e parques, um cão carente e uma sopa grossa; até fiz café mas não atingi questão alguma, não concluí nada, não fiz a coisa andar e amanhã eu não posso esquecer de falar pra Maria arrumar os embrulhos de presente. Alternei momentos de bastante pontuação com momentos onde vírgulas pouco se faziam notar, mas acho que não obtive êxito, um mosquito zune (zune?) no meu ouvido e eu largo o texto porque levanto com ódio e quero matá-lo, mas não consigo, então vou até a cozinha pegar a garrafa d’água que sei que deixei congelar e tropeço no fio da TV que desliga e me deixa prostrado no escuro ouvindo o tilintar de alguma barata atrás de mim e piso em ovos pra não pisar em baratas e vou até o interruptor da cozinha com o coração equivalente a um bumbo eletrônico rasgando o subwoofer e quase ouço meu tórax rasgar mas não dá tempo porque acho o interruptor e vou acender a luz com a mão frouxa porque temo tocar em baratas, dou um peteleco fugaz e erro e desisto da cozinha e volto para o aposento que arrisco chamar de quarto num desespero que só Gregor Samsa sentiu quando, numa certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, se viu metamorfoseado num inseto gigante.
     Acendo a luz. 



I, V


     O cheiro que senti num relance quando me aproximava do aglomerado de universitários foi um presságio. Mergulhei na memória que o cheiro trazia e era tempero de carne, um taco de madeira alheio ao piso e a pele queimada, imprudente. Tendo a dizer que o cheiro na verdade é só da pele assada; inventei o tempero por inocência. Essa lembrança é antiga e hoje percebo que o cheiro doce e mórbido que senti num relance ao me aproximar do aglomerado de universitários é da pele queimada. O taco é adorno. Adorno da sala, adorno da memória. O taco não estava presente na ocasião, se bem me recordo. O taco é uma alegoria da minha memória distorcida, uma sobra, um abscesso, um câncer, uma pele morta. A pele queimada com cheiro doce me marcou e agora já não me lembro o porquê de ter sentido que o cheiro era um presságio...


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