sábado, 29 de fevereiro de 2020

Expediente






Pensei a poesia perfeita 
Ouriço de luz
no silêncio noturno 

Irretocável!
Indefinível!
Indecifrável!

Porcelana e nanquim
em lógica oriental!

Não me serviu.

Dobrei a linha do horizonte
                      num sorriso
E decretei fim do expediente.






domingo, 23 de fevereiro de 2020

Redenção




Cansado de angústias e olhares que me tomam por ridículo
  busquei abrigo em algum tipo de caverna metafísica.

Eu, que nunca consegui ter fé
  me esforcei pra encaixar meu corpo nos moldes de um certo budismo ocidental
E fui além, tentando seguir os passos e as palavras de Cristo.

Então minha angústia, que parecia diminuir, tomou proporções absurdas
  e os olhares que me tomavam por ridículo se intensificaram
E a sensação de estar sempre fora do tom
  como se em toda reunião social houvesse um protocolo implícito de tão óbvio
E eu fosse o único a não percebê-lo, destoando sempre e tanto,
  Ridículo.

Suponho que essa nova angústia viesse da incapacidade de encaixar meu corpo
  nos moldes do budismo ou na 
Impossibilidade de ser como Cristo.

Perceber e negar isso  esse ideal de pureza e plenitude
  me foi libertador, de tal forma que de repente me pego andando pela rua
Tranquilo, observando mas não julgando,
  percebendo e não racionalizando.

Posso até parecer distraído e um pouco fora do tom, reconheço
  e aceito.
Não me preocupo mais.
Sou e devo ser exatamente isso que sou:
Nem inseto nem semideus  homem.

E pra provar isso a mim mesmo,
  me lanço numa busca homérica pelas ruas de Belo Horizonte
Atrás de um redentor
                           Pão com linguiça.



Lúcido, firme e unificado




Subitamente estou lúcido
E ao estar lúcido percebo enfim o tanto de tempo que estive insano.
Estou lúcido e enxergo tudo com clareza.
Enxergo agora o mundo com espantosa nitidez.
Subitamente estou lúcido e agora enxergo os poros da realidade.

Percebo até mesmo o ponto de fuga à minha frente.
(Há sempre um ponto bem na nossa frente, que é difícil demais de enxergar)
Percebo a solidez do meu corpo-fortaleza
E as armadilhas metafísicas que estava me metendo.
Toda angústia era estria entre projeção moral-espiritual e a realidade humana  única que alcanço.

Estou lúcido, firme e unificado.
É claro, ainda hoje perderei tudo na roleta do matrimônio
E me sentirei louco e desesperado outra vez.
Deixarei de enxergar o mundo real, que é simples
E tornarei a ver-tocar-sentir os vultos metafísicos da loucura.

Tudo bem.
Quem sabe um banho frio e um pouco de ar puro me façam voltar
E escrever outro poema-socorro como esse.




sábado, 22 de fevereiro de 2020

O duplo




Percorri trinta anos até este momento
Que agora me escapa e jamais haverá.

(Não há em toda a História momento tão definitivo quanto esse que passa.)

Daqui trinta anos sei que passarei novamente por essa rua
E avistarei o eu que será antigo (já agora é antigo).
Trocaremos um discreto olhar, talvez um meneio de cabeça.
E se por acaso fizer sol nesse dia que se cria no futuro,
Usaremos nossas vozes de homem para trocar saudações de homens anacrônicos.

Aquele que terei sido descerá a rua com pressa e medo
Eu, mais grave e lento, subirei sem intenções obscuras.

Acredito que até lá terei percorrido o bom caminho que me fará ser
Esse homem que acabo de encontrar
Numa ladeira do sonho




Hermes




Já não há tempo para ser Deus
Ou talvez não haja capacidade física.
Ser deus dói os ombros e o diafragma.

Não há também
Mais tempo para ser Louco.

Ou talvez não haja capacidade física.
Ser louco dói o fígado e a reputação.

O tempo é de se assumir homem.
Nem um elo a mais na cadeia dos seres terrestres
Nem sequer um nível abaixo da superfície.

É árdua a tarefa do mensageiro Hermes
Condenado ao eterno engarrafamento entre o inferno e o mundo dos homens.




quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Retorno outra vez à escrita




Retorno outra vez à escrita.
Após tê-la cuspido e difamado.
Retorno porque preciso
Portanto mais humilde, falando baixo.

Se pudesse escolher, não voltaria.
Se pudesse escolher, seria engenheiro ou programador de sistemas
Prático e concreto num mundo líquido-volátil
Mas já não posso.

Cruzei há muito a linha definitiva.
O momento irreversível ilustrado por Kafka
E outros.

Tentei ser todo música, não deu.
A poesia exige e ocupa seu próprio latifúndio.
(Poderia agora enveredar por metáforas sobre poesia e terra
Mas, como o filho pródigo, retorno simples e claro)

Se pudesse escolher, seria o agricultor integral de todo ação e pouco gesto.
Jejuaria palavras.
E minha boca seria só afirmação.

Acontece que não posso.
Então retorno. Com boas novas,
Sabendo que nada adiantará:

A noite escura não se amanhece com um feixe de luz.




quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Esses homens





Sinto pelos pedreiros ao meu lado no ônibus
O mesmo amor
Que senti pelo patrão ardiloso
Há pouco, quando esse
Tentou me dissuadir com malícia.

Busco e não encontro ponto comum entre esses homens.

Jamais frequentarão as mesmas festas
Os mesmos restaurantes
As mesmas praias

Exalam cheiros distintos
Palavras distintas
Malícias de homem
Distintas

No entanto meu amor por ambos é o mesmo.

Lateja as mesmas veias
Acaricia as mesmas partes do corpo:
Nariz, coração e a camada mais sensível da minha pele
(Talvez também uma cócega no fêmur)

Não será possível chamá-los irmãos
Apesar das palavras de Cristo.

Em última instância, talvez nem se enxerguem
Se um dia cruzarem a mesma calçada.

É colossal o abismo que os separa
No entanto
Meu amor por eles é exatamente o mesmo.

Medito.

E enfim encontro minha obscura resposta:
O meu amor
É o próprio e último ponto comum entre
Esses homens.

Meu amor é o que os torna irmãos.





terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Todo o peso do tempo




Essa chuva branca.
O cansaço do velho.
A extinção da vaidade.
Querer inalar mais que os pulmões suportam.
A falta de ar.

Desordenadamente penso imagens febris
E busco ser o próprio filtro,
O próprio pulmão da poesia.

Me vejo de fora e percebo esse pequeno labirinto que são os pensamentos.
Um sistema fechado e redundante.
Obstruído pelas próprias marcas da repetição.
Vincos fundos, como córregos canalizando essa mesma chuva branca.

A serpente que se auto-devora.
Um jogo de espelhos.
O eterno retorno.
Todo o peso do tempo numa fração de segundo.

É nesse ponto que me concentro
Sem ar
Cansado
Ainda vaidoso.

Desordenadamente releio e remendo
Tecidos e trechos.
Nós há muito atados.

Serei eu mesmo (quem haveria de ser, senão eu mesmo?)
A própria espada de Alexandre.
A decisiva e eterna espada de Alexandre.




sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Poema imenso




Chega!
Acabou o tempo de meias-palavras
E egoístas metáforas auto-importantes.

Chega!
Acabaram-se as notas miúdas e sem vigor.
Nunca mais a letargia deprimida.
É tempo de ser grande e saudável!

Chegou a hora de levantar e pisar firme.
Não se contentar com menos do que o êxito absoluto!
Daqui pra frente vou enaltecer e parabenizar os amigos sadios e bem-resolvidos
E ao camarada debilitado prestarei meu mais sincero socorro, se assim ele desejar.
Elogiarei frontalmente cada aluno empenhado e talentoso.
Agirei corretamente com o aluno desinteressado, mas já não perderei meu sono com esse.

Estou prestes a completar trinta anos e me sinto melhor do que nunca!
Minha respiração finalmente encontrou seu lugar
E meus órgãos nunca mais foram entoxicados com o álcool.
Tenho feito exercícios (o mínimo necessário)
E é provável que ao me ver na rua, postura ereta, você não me reconheça.

Amigo, se agora canto meu bem-estar
Não é pra te provocar ou causar inveja.
Isso eu juro, do fundo do meu coração sadio.

Acontece que por muito tempo eu me lamentei
Sem perceber que cavava com isso meu próprio leito.
Então, de repente eu me cansei de sofrer, varri os cacos e fiquei de pé.

Estou agora no alto de algum morro e vejo um futuro grandioso à minha frente.
Vamos juntos!
Falaremos de coisas eternas e banais.
Cantaremos eternas e banais canções.
Enfrentaremos tempestades no caminho
Mas, se teremos um ao outro, estaremos bem!

Agora,
Se você me disser que seu caminho não é o da boa vida magnífica
Vou franzir o cenho, olhar no fundo dos seus olhos
E tentar compreender se você diz isso por medo ou resignação.

De qualquer forma,
Pegarei minha mala leve
E partirei sem olhar pra trás.