segunda-feira, 14 de abril de 2014

Noite de espera

"Eu não devia ter tomado aquele café", pensava Carmen com os cotovelos apoiados no parapeito da janela. Numa das mãos segurava um terço; cuidadosamente passeava os dedos através das pequenas bolinhas de plástico, cumprindo suas orações cheias de angústia. Era noite quente e úmida. Não ventava. O céu, sem nuvens, parecia especialmente distante, como se Deus recusasse a ouvir e atender as preces de Carmen.
A luz amarelada e deficiente do poste entrava pelo vão da janela, formando um triângulo isósceles na parede do quarto. O neto de Carmen fingia dormir, o rosto enfiado no vão entre as duas camas que uniam todas as noites. A insônia se devia a uma soma de fatores: essa própria noite atípica, com um silêncio muito pesado e elétrico, eventualmente atravessado pelo gemido distante de algum trem de carga, lá do porto; o triângulo isósceles estampado na parede, fazendo o pequeno Leonardo lembrar-se de um recente pesadelo, onde um homem de chapéu isósceles entrava pela porta do quarto, dirigia-se até Carmen  que dormia na cama geminada  e realizava um tipo de benção, esfregava as mãos, sorria e sumia do quarto  esse mesmo quarto onde agora os dois, avó e neto, aguardam aflitos o retorno da única filha ainda viva de Carmen, mãe do pequeno Leonardo. Aliás, principal motivo da insônia mútua.
O relógio no criado-mudo não podia ser visto na penumbra úmida do quarto, mas a cada duro segundo que se arrastava, o ponteiro se fazia evidente. É inútil ponderar, mas a essa altura o pequeno e indesejado artefato já marca 3:54h. Vânia está fora de casa desde a manhã do dia penúltimo. Saiu pra "dar uma volta", e a essa hora é bem provável que tudo ao seu redor dê voltas e mais voltas. É bem provável que a essa hora Vânia esteja gastando salto em algum boteco realmente sujo, desses que poucos encaram; que poucos encaram à luz da lucidez; à luz da dignidade. É bem provável que a essa hora Vânia esteja eufórica com amigos e desconhecidos (que serão íntimos amigos essa noite, até que acabe a cerveja e a cocaína). 
Em casa, Carmen e Leonardo forjam tranquilidade, imaginando onde estará Vânia. Leonardo bem sabe que a mãe aparecerá hoje ou amanhã, a boca torta, o rosto desfigurado, a cara inchada de coriza e culpa, os olhos cambaleando dentro do crânio, como que ensaboados. Arrependidos, mas falsos. Leonardo sabe. Sabe porque, apesar dos míseros oito anos, está mais do que habituado a essa cena... 
O trem uiva mais uma vez lá fora, bem longe. E Carmen tem um impulso irrefreável. Larga o terço faltando ainda algum Pai-Nosso, veste apenas um casaco leve por cima da camisola rasgada, enfia os pés num par de chinelos, desce as escadas no escuro buscando não acordar o neto (que sequer fechou os olhos essa noite e agora ouve paralisado e aflito os passos da avó na escada, o uivo cada vez mais próximo e, na rua lateral, alguns passos que vão e vêm, ecoando dentro da noite, sob o céu opaco, sem que encontrem o portão e a campainha da casa). 
Carmen, 65 anos, trabalha como moldureira e sustenta uma casa com muitas bocas. Fixas e pedintes. Dentadas e doentias. Bocas limpas e bocas imundas, de vala ou injúria, tuberculose, AIDS. E nesse ambiente vive o que restou da família de Carmen, que agora anda pelas ruas da vizinhança com seus trajes esfarrapados, arrastando uma perna enferma, buscando a filha em qualquer esquina, em todos os bares da região. E finalmente encontra  o impulso foi certeiro, Vânia estava perto de casa, três quadras acima, num pequeno bar chamado NOSTRAVAMOS, bem lá no fundo, quase escondida por detrás de garrafas, copos e pessoas que Carmen tenta reconhecer. A cadeira de Vânia está a poucos passos do banheiro, percebe Carmen, do alto de sua agonia calejada. Não que a essa altura Vânia guardasse algum pudor; já cheirava cocaína há algumas horas, ali mesmo na mesa do bar  muito escuro e ruidoso. Carmen acompanhou o momento em que Vânia tirou do bolso um saquinho de pó, despejou no dorso da mão e meteu o nariz; jogou a cabeça pra trás na intenção de absorver toda a cocaína e foi nesse instante que notou a mãe parada diante da mesa, camisola e chinelo, diante de todas aquelas pessoas sem rosto. Vânia empalideceu. Pegou a bolsa, inalou fundo, levantou-se num pulo sem piscar os olhos e foi até a mãe. 
A discussão a seguir não é conveniente. Basta dizer que minutos depois as duas estavam em casa. Sangrando. Vânia tomava seu primeiro banho em três dias, enquanto Carmen requentava o café. 

Lá fora o dia raiava preguiçoso, sem nenhum sinal do trem.
No quarto, catatônico, o pequeno Leonardo sentia frio.


Um comentário:

  1. Oito anos!? Não sabia!!! Perdoe-me pela falta de atenção!!! Te amo!!!!!!!!!!!!!

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