Existe uma parte em mim
que se tornou personagem da
própria criação.
Outro pedaço quer desistir
da criação por achá-la inútil
e frágil,
ao passo que uma outra parte
evapora,
se perde.
Surge o embate.
Ambas se preocupam com a
erosão da alma.
Uma argumenta,
a outra é desilusão.
Vejo minha parte mais nobre
se perder
e por ser vapor, os dedos
não agarram.
O texto agarra,
parte.
Esse texto…
letras de papel,
digitais,
flácidas, sensíveis demais.
Talvez minha alma não
evaporasse,
não estivesse diluída –
solução aquosa de alma
e lágrimas que também evaporam.
e lágrimas que também evaporam.
(Agora mesmo:
uma parte vê esperanças nesse
poema,
outra parte se agita, sua
frio,
enojada por palavras tão
imprestáveis como:
alma, dor, lágrimas, evaporar, desilusão…
Palavras tão ditas!
Nada aqui é novo;
o ego sensível camuflado em
alma
que não quer dividir o
brinquedo
e aí chora, esperneia, se
agita.
Rouba palavras de uma
baciada,
uma pechincha,
"escreva poemas instantâneos!"…)
Talvez exista ainda outra
parte
que apenas assiste ao duelo,
em silêncio e impotente.
Essa parte já não tem voz.
Mas o suficiente pra sentir
vergonha e piedade.
Recebo uma visita inesperada.
Alguém está à minha porta.
É minha vizinha que me traz
um pedaço de bolo
e lágrimas.
(Num relance, invejo suas lágrimas.)
Ela se acomoda em minha cama
e fala durante uma hora e meia,
alternando momentos de choro
e riso.
Seu choro não me comove,
seu riso não me encanta mais.
Só o que sinto é um estranho
mal estar diante de tantas palavras.
(Chego a duvidar que ela
esteja realmente ali.)
Parte de mim busca um meio de
transformá-la em literatura,
outra parte pensa em pedir
para que ela vá embora.
Todas as partes se agitam e
se chocam, causando uma terrível tontura;
sinto minha cabeça esquentar,
latejando.
Minha parte personagem se
considera Meursalt, aturdido pelo Sol
que são essas palavras numa
lamentação covarde, infantil, patética, conformada, constipada, ridícula
e sem qualquer sentido.
Já não absorvo nada do que
ela diz,
apenas concordo educadamente
e me preocupo por estar sem cuecas.
Não encontro posição
adequada.
Desde o momento em que parei
de ouvi-la grudei num choro desesperado
que frequentemente se mescla
a uma melodia que minha cabeça lateja de modo repetitivo.
Quando penso ser a melodia,
retorna o choro.
Todos os cães do morro
parecem latir.
Então ela fala algo sobre querer ter coragem para viver como eu,
dou risada e penso que também
gostaria dessa coragem…
Ela parece nem perceber,
segue com um sorriso cansado – olheiras como varizes –
tentando disfarçar sua
fraqueza escancarada.
Fala Fala Fala Fala Fala Fala Fala
Fala Fala
Fala Fala Fala
Fala
Fala Fala Fala Fala
Fala Fala
Fala Fala
aí diz “Bom, então vou
indo…”.
Levanto e a acompanho até a
porta. Ela diz “então tá, boa noite”.
Boa noite. E volto ao meu
silêncio, um pouco preocupado.
Estou sentindo aquilo. Mau sinal…
Me deito muito encolhido.
Afasto o violão e a folha em
branco, visto um grosso casaco e me protejo da luz, que esqueci de apagar.
Parte
de mim se parte.
Sou todo uma só parte agora,
mas já não sei qual… sinto um certo temor; me cubro.
Bloqueio qualquer palavra
dita pela minha mente agitada, bloqueio a criação, bloqueio pensamentos
obscuros, bloqueio a ideia de um longo dia de
folga amanhã, para onde me projeto e posso já sofrer de tédio e fraqueza
emocional.
Tento não existir, sem êxito.
Alguma coisa está realmente
fora do lugar.
Isso me é óbvio.
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