Acordei, bati uma punheta triste e
gozei na cara da solidão.
Depois fiquei simplesmente deitado.
Imóvel. Mais um dia pra enfrentar… é isso.
A porra fica rala e me escorre pelo
braço; não me abalo. Permaneço ali, estático. É terrível quando já acordo
assim, de uma certa forma amarrado à cama. Sem força, ânimo ou motivo.
Ninguém disse que seria fácil. E eu
ainda tentando do jeito mais complicado. Pura ilusão. Sim, moro sozinho e pago
meu próprio aluguel aos 21 anos. Grande merda. Se não consigo resolver isso aqui dentro, ainda não
conquistei nada. “Ou quase nada.” Pego um pedaço de papel e anoto uma frase que
me ocorreu. “Acordar
é o pior dos pesadelos.”
É quase engraçado. Você vê que tá mesmo no fundo quando o suicídio parece a
única opção positiva. Mas falta coragem. E disfarço a falta de coragem com uma
suposta esperança na vida. Mas os ditos bons
momentos são apenas… aceitáveis. Não maravilhosos. Viver realmente não vale a pena. A onda vital avança
metros abaixo da linha zero. Sua amplitude é enorme mas emerge dessa linha
apenas uns centímetros – ignorando qualquer lei da física –, como um anfíbio
que coloca os olhinhos e o nariz pra fora da água.
Bem, eu poderia apenas não pensar, mas é impossível. “Preciso me
mexer”. Levanto num pulo, cumpro meu papelzinho de ser humano (me visto, mijo,
fecho uma porta, lavo a mão, tão comportado, tão inofensivo, calço a porra do
tênis) e saio de casa sem ter ideia do que posso fazer.
Tranco a porta e ganho a rua.
Não. Ganho não é a palavra certa. Simplesmente
ando por aquela porra. Faço um esforço e me lembro: é domingo. Embora domingo
seja um dia tão absolutamente característico. Os sons, a luz do sol, as ruas, a
disposição das coisas – tudo isso é característico num dia de domingo. Não
preciso mexer muito na memória. Menos ainda pra lembrar: não tenho um centavo.
Meu pagamento cai em duas semanas. Até lá tenho um pouco de farinha de milho,
acho que meia lata de óleo, talvez até um pouco de arroz, mas não tenho gás pra
cozinhar. Nessas situações, a pior opção é se enfurnar em casa. Nos faz
confrontar nossos demônios; nossa casa é como um enorme espelho: tudo ali são
pedaços de nós. Provas do nosso caráter, da nossa incompetência. O melhor
remédio pra esse estado de negro espírito é observar e absorver a grama do
vizinho, que é sempre mais verde. Sim, isso quando você tem coragem pra sair de casa. Confesso que
me sinto aliviado quando ainda guardo essa faísca no bolso.
Vago devagar, divagando, enquanto
tento enxergar o maior número de casas, banhadas pelo sol dominical,
tranquilas, tão receptivas. Sei que se morasse em qualquer uma delas teria ali
meu inferno, mas evito esse pensamento. Forjo a plenitude. Chego na avenida de
baixo e sigo até minha zona de conforto. Começo a sentir fome. Acabo de lembrar
que ainda tenho um ticket promocional de café da manhã. Tenho quase certeza de
que tá no bolso dessa calça. Vasculho e, sim, encontro. Quem diria! É verdade
que esse ticket só dá direito a um patético pão na chapa e um copo de café, mas
pra quem achava que passaria o dia em jejum…
Posso já prever o gosto. Primeiro
uma mordida no pão, mastigo um pouco e dou um gole no café. O pão vai ficar bem
macio dentro da minha boca e com um gostinho doce. Incrível! Praticamente me
esqueço que estou na areia movediça. Passo pela porta sentindo aquele cheiro
característico de óleo sujo e me dirijo ao caixa, vazio. Parece que minha sorte
começa a mudar.
Oi, apresento meu
ticket, queria o café da manhã
da promoção.
Senhor, não tem mais o café da manhã.
Ué, por quê?
O café é só até as 11h, senhor.
E que horas são?
São 11:05h, senhor.
Por causa de cinco minutos você não vai me servir o café da
manhã?
Desculpa, senhor, já foi tudo recolhido, algo mais em que
posso ajudar?
Não.
Saio dali. Continuo andando.
Totalmente vazio. “Se pelo menos eu tivesse meu bilhete de ônibus e metrô…”
Essa região é horrível pra caminhar. Rodeada de grandes avenidas, marginais,
pistas automotivas. É uma área bem desumana. Além do quê, quanto mais desgaste,
mais fome.
Que situação, economizando energia
como um urso polar no inverno mais rigoroso. Pelo menos se estivesse frio… mas não. Um calor desgraçado e
eu cheio de casaco. “Como poderia adivinhar? Na minha casa o frio era forte.”
Então faço o que, no fundo, sabia que faria: sento num ponto de ônibus. A
melhor opção pra quando se está assim, vazio, sem perspectiva ou sorte. Você
não fica em evidência, suspeito, marginal; pode descansar, fingindo que espera
o ônibus e ainda passa por cidadão comum. Ótimo lugar pra se sentar e ficar só
observando, e eu acabo de observar uma loira deliciosa do outro lado da rua.
Também num ponto de ônibus. "Será que ela sabe o quanto é gostosa?"
Provavelmente. Mas não sabe que nesse momento tem um pau endurecendo por sua
causa. Cruzo a perna, bem fechado, como mulher, e fico balançando a perna pra
estimular o pau. Fica realmente obsceno. Cubro com os braços, sigo mexendo a
perna. A loira tá de pé, de costas pra cá, conversando com duas mulheres que
sentem inveja dela, dando passinhos daqui pra lá, de lá pra cá, se abaixando
pra rir, se curvando pra ver se o ônibus se aproxima. Veste uma calça preta,
dessas de ginástica, e a essa distancia a calça parece meio transparente, ainda
mais pela ajuda do sol forte. Percebo que não sou discreto. Nem um pouco,
aliás. Pareço um obcecado. Um voyeur. Mas de repente sua bunda me parece meio
patética; a sombra formada pela calcinha e o próprio formato da bunda desenham
uma espécie de âncora ali. A calcinha é o corpo da âncora e a borda da bunda
mais o espaço entre as pernas formam a parte de baixo da âncora. Pode ser um
sorriso também. Fico variando. Meu pau amolece aos poucos; daquela bunda sai
merda. Merda. MERDA. Cocô. Fezes, peido, cheiro de cu, suor, pêlos. É só uma
parte do corpo humano. Todo mundo tem isso, até eu tenho. Você tem, sua mãe
tem, Nelson Mandela tem!
Preferia quando a bunda era um
refúgio e tento esquecer tudo isso e a âncora, mas não consigo. A bunda
continua patética e ela acena pro ônibus que para, encobre sua imagem e segue.
Busco outras distrações. Caço outras pessoas por ali, olho pro meu lado
esquerdo e noto um casal dividindo uma bicicleta, mas o curioso é que a garota
é quem pedala e guia, o imbecil vem sentado atrás, naquele apoio que algumas
bicicletas têm. A coitada parece fazer muita força, tá sem equilíbrio, tadinha!
Como um cara desses tem coragem de mostrar a cara em público? Quando estão já
bem próximos dou uma encarada severa entre as pernas dela. Pra buceta mesmo. Está
de saia. Longa, é verdade, daquelas meio hippies (a moda hippie voltou), mas é
suficiente pra fazer meu queixo tremer. O cara percebe que eu olhei, nubla a
expressão e me encara. Retribuo com frieza no olhar. Eles passam por mim e o
garoto vira pra trás – como um homem que se vira pra olhar a bunda da mulher
que passa ao seu lado na rua – tentando me intimidar. Já não tenho vontade de
olhar pra eles, mas não desgrudo o olhar pra que não pareça que ele venceu. Por
fim desiste, posso já olhar pro outro lado.
Meu estômago se manifesta. Ronca
alto. Meu humor despenca. O sol parece ainda mais quente e claro. Quase
desértico. Avisto dois garotos aparentemente retardados que se aproximam com
uma bandeja de frango assado. Cada um carrega uma. Cristo, por quê? Eu pensava
ser o escolhido, o novo messias, e o senhor faz isso comigo? É um teste? VAI TE
FODER, ENTÃO! VAI TESTAR O CARALHO! Esses dois imbecis merecem devorar um suculento
frango assado nessa manhã patética de domingo E EU NÃO?! Estão a menos de cinco
metros de mim. Cinco metros agora, cinco minutos lá atrás. Sempre quase. Cobiço
as bandejas de frango, invejo suas sortes, tudo parece muito silencioso
enquanto devoro o frango com os olhos, os carros passando na avenida não emitem
som, as bocas estúpidas das pessoas se movem mudas, até o sorriso satisfeito e
maldito desses dois comedores de frango sai silencioso, mas não depois que
passam por mim e um deles joga NO LIXO um pedaço enorme de frango e logo
depois, quando passam pelo portão da concessionária, o outro arremessa um
pedaço pros cachorros. Não
pode ser verdade. Não é possível. Fico indignado com essa situação e faço o que
nunca pensei que pudesse fazer. Me levanto e vou até o lixo. Hesito. Olho pros
dois lados; muita gente me conhece por aqui. Moro aqui e trabalho aqui. Ficaria
feio se me flagrassem enfiando o braço no lixo atrás de comida. Mas
aparentemente nenhum conhecido por perto. Procuro o pedaço de frango no lixo e
fico de certa forma aliviado quando percebo que é apenas carcaça. Osso. Sem carne.
É o tórax do bicho.
Sentar novamente no ponto de ônibus
me parece uma ideia absurda. Fujo dali envergonhado e faminto. Caio na
marginal.
Opto por um caminho inédito. Passo
por distintos prédios residenciais, cobertos por cercas e muros e portões.
Ironicamente, passo pela porta de um restaurante que começa agora a servir o
almoço. Devo aparentar a fome que sinto porque o segurança do restaurante me
encara, me bloqueia o sonho de um delicioso e fumegante prato. Sinto uma
contração no estômago, fico tonto, muito calor, muito claro, muitos
carros transitando. Tão potentes, velozes, sem fome. Não notam a minha
existência, são superiores. Entro numa região desconhecida com grama, árvores,
ladeiras, carros, carros, carros caros, casas caras. Finjo que é tudo um
delírio e quase acredito nisso porque a claridade excessiva, o calor excessivo,
a exaustão e a fome me turvam a visão e também a compreensão e interpretação do
mundo todo. Viro à esquerda, atravesso a rua, desço uma ladeira e chego a outra
avenida, então reconheço o território. “Se eu seguir essa avenida vou dar na
ponte. Se continuar firme, chego na Paulista.” Sigo. Passo por uma pracinha
agradabilíssima e decido me sentar, parece o Éden, mas por algum motivo não
paro, sigo em frente, triste, e quase sou atropelado. O cara enfia a mão na
buzina, mesmo já tendo passado por mim. Isso me deixa profundamente irritado e
mostro a porra do dedo do meio tremendo de ódio. Sigo. Tenho que decidir logo
se subo ou não a ponte. Subo. Passo aqui a pé pela primeira vez. Até então, só
de ônibus. O corredor reservado ao pedestre é aconchegante. Separado da pista
por um muro de concreto com aproximadamente um metro de altura. Finalmente
paro. Encosto na grade de proteção, de costas pros carros que passam me olhando,
sinto. Abaixo de mim passa um rio. Ao lado, uma ciclovia, paralela aos trilhos
de trem da estação. É domingo. Eles têm permissão pra pedalar. Quer dizer, a
ciclovia é aberta todos os dias, mas domingo é o dia que lhes é reservado a se
dar esse prazer, afinal são pessoas maduras, sérias. Durante a semana é
trabalho. Onde já se viu… Andar de bicicleta durante a semana! Ninguém aqui é
vagabundo! Mas hoje é domingo. Hoje pode. E daqui posso olhar sem pudor pro
meio das pernas das ciclistas. “Nossa, sou uma criança pervertida” e um cara
passa por ali me olhando, curioso e preocupado: Nossa, será que ele vai se jogar?
Caramba! Que doidão, parado ali no meio da ponte! Aí percebo uma fila de lixo
correndo devagar pelo rio. É curioso, o lixo parece muito organizado, correndo
ali no espacinho que lhe é permitido, como os ciclistas pedalando dentro dos
limites da ciclovia, os carros transitando entre as faixas e muros de proteção,
os trens que transportam passageiros ininterruptamente pelos trilhos. Tudo em
movimento. Seguindo o fluxo. Dentro dos limites estabelecidos. Eu parado ali
pareço errado, quase obsceno, vulgar, perigoso. Sou como um câncer, um
abscesso, algo que deve ser olhado e examinado com curiosidade e grande
atenção. Posso ser um suicida, posso ser um bandido, um vagabundo. No entanto,
só estou parado, quietinho, sentindo certo prazer depois de muito tempo de
espera. Recebo do sol – totalmente desimpedido por nuvens – sensação idêntica à
da infância, na praia de Santos. O chiado do mar (aqui é rio), o burburinho dos
banhistas e bolinhas de frescobol (aqui é trânsito), o excesso de luz e calor
que é idêntico em ambas situações. Viro e olho um pouco pros carros que passam
ali na ponte; pareço estar na estrada outra vez. Vejo os motoristas pelo mesmo
ângulo que via quando praticamente implorava por carona no sul do país, e a
indiferença com que me tratam agora é exatamente igual. Me vêem aqui, mas
tentam evitar que eu perceba, afinal, posso ser uma ameaça. Seguem suas vidas, eu sigo a minha.
Sigo.
que fome...
ResponderExcluirTo com fome....
ResponderExcluir