"Eu não devia ter tomado aquele
café", pensava Carmen com os cotovelos apoiados no parapeito da janela.
Numa das mãos segurava um terço; cuidadosamente passeava os dedos
através das pequenas bolinhas de plástico, cumprindo suas orações cheias de angústia.
Era noite quente e úmida. Não ventava. O céu, sem nuvens, parecia especialmente distante, como se Deus recusasse a ouvir e atender as preces de
Carmen.
A luz amarelada e deficiente do poste entrava pelo vão da janela, formando um triângulo isósceles na parede do quarto. O neto de Carmen fingia
dormir, o rosto enfiado no vão entre as duas camas que uniam todas as noites. A
insônia se devia a uma soma de fatores: essa própria noite atípica, com um
silêncio muito pesado e elétrico, eventualmente atravessado pelo gemido distante de
algum trem de carga, lá do porto; o triângulo isósceles estampado na parede,
fazendo o pequeno Leonardo lembrar-se de um recente pesadelo, onde um homem de
chapéu isósceles entrava pela porta do quarto, dirigia-se até Carmen – que dormia na cama
geminada – e realizava um tipo de benção, esfregava as mãos, sorria e sumia do
quarto – esse mesmo quarto onde agora os dois, avó e neto, aguardam aflitos o
retorno da única filha ainda viva de Carmen, mãe do pequeno Leonardo. Aliás, principal motivo da insônia mútua.
O relógio no criado-mudo não podia ser visto na
penumbra úmida do quarto, mas a cada duro segundo que se arrastava, o
ponteiro se fazia evidente. É inútil ponderar, mas a essa altura o pequeno e
indesejado artefato já marca 3:54h. Vânia está fora de casa desde a manhã do dia
penúltimo. Saiu pra "dar uma volta", e a essa hora é bem provável que
tudo ao seu redor dê voltas e mais voltas. É bem provável que a essa hora Vânia
esteja gastando salto em algum boteco realmente sujo, desses que poucos
encaram; que poucos encaram à luz da lucidez; à luz da dignidade. É bem
provável que a essa hora Vânia esteja eufórica com amigos e desconhecidos (que
serão íntimos amigos essa noite, até que acabe a cerveja e a cocaína).
Em casa,
Carmen e Leonardo forjam tranquilidade, imaginando onde estará
Vânia. Leonardo bem sabe que a mãe aparecerá hoje
ou amanhã, a boca torta, o rosto desfigurado, a cara inchada de coriza e culpa,
os olhos cambaleando dentro do crânio, como que ensaboados. Arrependidos, mas
falsos. Leonardo sabe. Sabe porque, apesar dos míseros oito anos, está mais do
que habituado a essa cena...
O trem uiva mais uma vez lá fora, bem
longe. E Carmen tem um impulso irrefreável. Larga o
terço faltando ainda algum Pai-Nosso, veste apenas um casaco leve por cima da
camisola rasgada, enfia os pés num par de chinelos, desce as escadas no escuro buscando não acordar o neto (que sequer fechou os olhos essa noite e agora ouve
paralisado e aflito os passos da avó na escada, o uivo cada vez mais próximo e,
na rua lateral, alguns passos que vão e vêm, ecoando dentro da noite, sob o céu opaco, sem que encontrem o portão e a
campainha da casa).
Carmen, 65 anos, trabalha como
moldureira e sustenta uma casa com muitas bocas. Fixas e pedintes. Dentadas e
doentias. Bocas limpas e bocas imundas, de vala ou injúria, tuberculose, AIDS. E nesse ambiente vive o que restou da família de Carmen, que agora anda pelas ruas da
vizinhança com seus trajes esfarrapados, arrastando uma perna enferma, buscando
a filha em qualquer esquina, em todos os bares da região. E finalmente encontra – o impulso foi certeiro, Vânia estava perto de casa, três quadras acima, num
pequeno bar chamado NOSTRAVAMOS,
bem lá no fundo, quase escondida por detrás de garrafas, copos e pessoas que
Carmen tenta reconhecer. A cadeira de Vânia está a poucos passos do
banheiro, percebe Carmen, do alto de sua agonia calejada. Não que a essa
altura Vânia guardasse algum pudor; já cheirava cocaína há algumas horas, ali mesmo na mesa do bar – muito escuro e ruidoso. Carmen acompanhou o momento em que Vânia tirou do bolso um saquinho de pó, despejou no
dorso da mão e meteu o nariz; jogou a cabeça pra trás na intenção de
absorver toda a cocaína e foi nesse instante que notou a mãe parada diante da
mesa, camisola e chinelo, diante de todas aquelas pessoas sem rosto. Vânia
empalideceu. Pegou a bolsa, inalou fundo, levantou-se num pulo sem piscar os olhos e foi até a mãe.
A discussão a seguir não é
conveniente. Basta dizer que minutos depois as duas estavam em casa. Sangrando. Vânia tomava seu primeiro banho em três dias, enquanto Carmen requentava o café.
Lá fora o dia raiava preguiçoso, sem nenhum sinal do trem.
No quarto, catatônico, o pequeno Leonardo sentia frio.
Oito anos!? Não sabia!!! Perdoe-me pela falta de atenção!!! Te amo!!!!!!!!!!!!!
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