Esse
é um texto fictício, escrito há algumas semanas. Mas um fato semelhante,
ocorrido
dias atrás, dá um tom quase jornalístico e panfletário à obra.
Tudo
isso não passa de um mal-entendido.
Dedicado à Julia.
Stella
surpreendeu a funcionária da mercearia ao pedir somente 300gr de queijo.
Ao sair do
laticínio teve de virar à esquerda porque a rua onde costumava virar estava
interditada. "ATENÇÃO: HOMENS TRABALHANDO". Aquilo arruinou o humor
de Stella, que não gostava de alterar seus caminhos. Há nove anos trabalha numa
lanchonete de bairro, na parte nobre da cidade. Até sua casa são duas horas de
transporte coletivo. Stella completou cinquenta anos no mês passado
e, apesar da má condição financeira, guarda traços muito delicados e nobres,
dir-se-ia até traços e hábitos de uma verdadeira dondoca. Não esconde as
recentes mechas brancas, pelo contrário, faz questão de exibi-las quando alisa
o cabelo, em datas especiais. Mãe de duas filhas, recentemente divorciada,
finalmente aprendeu a subtrair do queijo diário a parte do ex-marido.
Teria de
percorrer duas quadras até chegar na esquina de sua rua. Mas logo no início da
primeira quadra notou um aglomerado de pessoas. Curiosa que era, apressou os
passinhos e chegou bem perto para verificar; de estatura baixa, não conseguiu
enxergar muito bem, mas notou que as pessoas se organizavam numa espécie de
fila indiana. Incapaz de cometer um ato imoral, Stella se pôs a aguardar
pacientemente atrás do último da fila.
Um leve
toque no seu ombro esquerdo, vindo de trás, fez o corpo todo tremer, quase
levando a sacola ao chão. Era um curioso; homem baixinho, cabeça larga e calva,
bigode muito cheio e aparado, roupa de operário.
– Que é que tá acontecendo aí? – perguntou o homem em tom operário.
O homem
dobrava seu corpo para o lado direito, a fim de poder enxergar o motivo daquela
quizumba, mas seu pescoço era curto demais, e a calçada (muito estreita) não
possibilitava ao homem andar paralelo à fila. Pôs-se a esperar. Iniciaram uma
animada conversa, ele e Stella. Falaram sobre empregos, sobre seus
patrões, sobre filhos, casamento, o preço do ônibus, o tempo, falaram até
sobre futebol – assunto que Stella não dominava.
Dez minutos,
uma senhora gorda vinha pela calçada, mãos dadas a uma criança de uniforme e
mochila nas costas. A mulher pediu licença e pareceu ter interrompido um
funeral porque Stella e seu novo amigo olharam-na com olhar duro
e condenador:
(Stella tratava
a maioria das pessoas por Senhor ou Senhora, mesmo quando da mesma faixa
etária.)
Então a fila
já ocupava meia quadra. Pessoas vinham correndo, esticavam seus pescoços mas
nada viam, então punham-se a esperar no final da fila, que já podia ser notada
de longe. Alguns tentaram burlar a ordem, mas foram hostilizados brutalmente
pelos que esperavam há mais tempo. Stella abriu ali mesmo a
sacola do laticínio. Ofereceu queijo ao homem de cabeça larga, desejando
que ele não aceitasse. Ele, querendo aceitar, recusou por educação. A
gorda – faminta – perguntou para a criança se ainda restava
algo do lanche; a criança, temerosa, fez que sim com a cabeça. Numa situação
normal a gorda teria dado uma baita bronca, mas só o que fez foi abrir a
lancheira e devorar um resto de sanduíche de patê.
Um homem em
sua bicicleta passou lentamente pela fila vendendo suco, água e cerveja. Muitas
mãos solicitaram o homem, que saiu dali minutos depois, com um lucro de $82.
"Fiz meu dia", pensou.
A fila
ocupava três quadras. Espalhou-se um rumor sobre sua origem.
"Assassinato". Um jovem negro teria tentado assaltar uma senhora, mas
foi pego em flagrante e agredido por um homem que passava. O negrinho tirou uma
faca do bolso e matou o homem. Alguns diziam ter sido o contrário: o negro é
quem morreu linchado. Outros, que a senhora é quem havia morrido.
"MATEM
O NEGRINHO!" gritavam em coro alguns ocupantes no final da
fila. Stella concordava: "É isso mesmo! A gente trabalha o dia
inteiro, ainda tem que pegar trem e ônibus lotado pra chegar na rua de
casa e ser assaltado! Se a polícia não faz nada, que matem o negro!"
Os negros
saíam discretamente da fila, com medo de um possível equívoco.
Carros
passavam, curiosos, já formando um engarrafamento em toda a avenida. "É um
absurdo", bradavam, "essas cenas estão cada vez mais comuns. Estupro
à luz do dia! Esse país tem é que afundar mesmo!"
Stella
demonstrou frio e um homem lá de trás cedeu seu casaco, que foi passando de mão
em mão até chegar a ela, que teve nojo e não vestiu. A noite caía sem que
ninguém soubesse de fato o que estava acontecendo; ainda assim,
aguardavam em fila alguma resposta.
"Pegaram
o bandidinho?!", gritaram lá do fundo. A pergunta ecoou até o começo da
fila e seguiu sem resposta.
A população
ficava cada vez mais inquieta. "Crime hediondo!", gritou um estudante
de direito. A temperatura despencava brutalmente, uma fina garoa se fazia
notar. Alguns cidadãos já desistiam. Largavam lentamente a fila, quase
envergonhados por sua falta de fibra. Uns poucos ainda gritavam palavras de
ódio ao passo que se distanciavam.
"Se
fosse comigo eu matava!"
Então a fila
começou a andar. Simples assim. Alguns comemoravam a surpresa, outros mal
acreditavam naquilo! Os desistentes voltaram imediatamente, mas tamanha a
euforia do povo, tiveram de ir para o final ou seriam linchados ali mesmo,
afinal, aquele lugar na fila era uma vitória, uma conquista da qual não
abririam mão.
A fila
andava muito rápido, alguns tinham dificuldade em acompanhar o ritmo. Dobraram
a primeira esquina em ritmo de maratona, mas Stella cedeu; abandonou
a fila. Parou na esquina de casa e, ao se aproximar, notou as filhas no
portão.
– Demorou,
mãe, a gente tava preocupada!
– Ai,
desculpa! É que um bandido matou um homem ali na rua de trás, e eu tava lá
vendo!
– Uma
fila pra ver um cadáver? Que horror!
Até hoje
ninguém achou o cadáver. Ou a carteira. Ou vítima. Ou o bandido.
Sequer
descobriram o motivo daquela fila ter surgido.
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