As duas
batidas secas e ágeis na porta interromperam
o ritual diário de Poliedo. Estirado no escuro, colchão no chão, numa
espécie de transe induzido, Poliedo recebeu aquelas batidas como um aviso
aflito e pesaroso; semelhante ao pai que nutre grande amor pelo filho, mas, num ultimato, anuncia que não
medirá esforços para afastá-lo do vício em drogas.
Era
sua esposa – Poliedo sabia – do outro lado da porta do quarto,
usado como biblioteca e refúgio.
– Pode entrar.
Como
alguém que se arrepende, a esposa de Poliedo abriu a porta cautelosamente e,
enxergando apenas as pernas do marido – iluminadas pelo feixe de luz que acabara
de entrar –, ainda do lado de fora ela perguntou:
– Não vem comer? Já esfriou tudo. Seus
bifes eu ia fritar na hora, senão fica duro.
– Pode deixar que eu me viro depois,
não to com fome agora –
respondeu estático, tendo apenas tensionado involuntariamente a coxa esquerda,
ainda de olhos fechados.
A
esposa ainda manteve a porta aberta por alguns segundos – Poliedo se percebia
observado –,
então o silêncio e a penumbra tornaram a reinar no quarto.
Ele não
sabia, sequer tinha interesse, mas os relógios já passavam das 18h; exceto o da
cozinha, sem pilha, parado às 11:45 – e justamente nisso pairava seu pensamento
desconcentrado e nômade.
Lá
fora o trânsito se intensificava, era possível perceber pelo som urbano dos
motores, pneus no asfalto da avenida e, sobretudo, pela suspensão parcial do
silêncio.
“Eu
deveria escrever sobre o silêncio...”, pensava então, “sobre as múltiplas
camadas do silêncio... As diversas naturezas do silêncio, talvez até me trancar
numa sala anecóica pra compreender de fato o que é o silêncio, porque
certamente isso não é. O que agora trato como silêncio é
simplesmente o isolamento; o abismo entre eu e o resto do mundo. Silêncio é o
que preenche essa bolha onde agora eu estou; esse espaço em branco, vazio,
escuro. Pela janela, além do trânsito, me invadem inúmeros ruídos: o canto insistente de
uma cigarra, talheres tilintando, algum pássaro muito distante, a voz abafada
de uma criança e outras dezenas que percebo mas não decifro, que impedem um
certo tipo de vácuo, que dão textura a esse espaço que me abraça,
possibilitando o próprio isolamento. O silêncio cotidiano nunca é pleno. E eu
sou muito grato a isso...”
Poliedo
levantou num pulo, ofegante, tomado por um formigamento cego, acendeu a luz e
se pôs a procurar papel e caneta, afim de transcrever seus pensamentos acerca
do silêncio, mas – como sempre – fatores externos arruinaram seus planos.
Encontrou papel, mas não caneta. Teve ódio ao ver as palavras se perderem; ao
ver que, sob a luz, era apenas um homem comum inserido num enredo tragicômico,
encenado de si para si.
Abriu
a porta do quarto e ao fazer isso sentiu uma lufada de ar leve e límpido – quase
pôde notar claridade no corpo do ar. A esposa estava na sala, entretida em
alguma atividade.
– A carne tá num pote, na
geladeira, já temperei, é só fritar.
– Você viu a caneta?
– Que caneta?
– Aquela que eu uso pra preparar as
aulas. Pode ser qualquer uma, na verdade...
– Não sei, não sou eu que uso...
deve estar nas suas coisas de música.
– Não tá, já procurei – retrucou
com certa agressividade.
– Eu não sou obrigada a saber onde
você guarda suas coisas. E não começa a gritar comigo, eu não fiz nada!
– Não to gritando, caralho!, mas é
sempre assim, quando eu finalmente consigo sair do marasmo, tudo acontece pra
me atrapalhar e eu não consigo produzir!
– Oh, tadinho! – disse num tom irônico
que irritou Poliedo ainda mais – Como o mundo é cruel com você, né?
– Vai se foder! Só te pedi uma
caneta, porra, não uma opinião.
– Pra quê falar assim, meu? Não
joga a culpa em mim; se você não consegue mais escrever, não é me culpando que isso vai ser resolvido. E talvez se você se preocupasse um pouco
mais com outras coisas, não se frustraria tanto quando uma coisinha assim desse
errado...
– Como assim “outras coisas”? O que
você sabe sobre isso?! Eu só te pedi a porra de uma caneta, não um sermão! –
interrompeu, já se dirigindo ao quarto.
– É sempre assim – a esposa
insistia –, você passa o dia inteiro em casa fazendo nada, fora do mundo real
e, quando não consegue escrever, me agride, me rebaixa...
Poliedo
mal havia fechado a porta, abriu-a de novo, com brutalidade, e foi na direção
da esposa; pegou-a pelo braço com rispidez e olhou-a de modo opressor, de cima
para baixo.
– “Fazendo nada”?! Eu não tenho
culpa se você escolheu se atarefar ao ponto de não conseguir mais pensar...
– Ah, eu escolhi?!
– ...Eu me dou o direito de ficar
parado e não vejo mal nisso! Ou você acha que suas aulinhas e seu trabalhinho
num balcão são mais reais que meus textos? Você acha que as visitinhas que você
é obrigada a fazer à sua mãe são mais reais e mais importantes que minhas
meditações?! Você se acha mais humana por conviver no meio das pessoas, mas na
verdade você não sabe nada sobre elas! Eu vivo desse jeito, em silêncio e no
escuro, porque me condenei a isso. É meu dever! E eu cumpro ele! E sou bom
nele! Agora me dá a porra da caneta e pode voltar pros seus afazeres reais e
ridículos!
Poliedo
saiu de cena com orgulho, sem caneta e sem resposta. Sabia que havia exagerado,
que não devia ter rebaixado a esposa e que no fim ela estava certa. Precisava
arranjar um emprego se quisesse seguir com aquela vida comum, matrimonial.
Pensou em pedir desculpas, mas sabia que amanhã tudo estaria bem outra vez.
Sentiu
falta dos seus dias de estrada e da parcial liberdade que isso proporcionava.
Então, sem mais nem menos, achou a caneta. Voltou ao quarto, mas a atmosfera densa e repovoada condenou
suas últimas palavras ao ostracismo. O discurso sobre as camadas do silêncio
teria de esperar.
Poliedo
catou uma toalha limpa e se dirigiu ao chuveiro, desejando um demorado
banho, no escuro. “Mais tarde, revigorado, eu posso finalmente escrever”,
pensou.
***
O
que se seguiu não foi exatamente assim. Depois de um longo e lento banho no
escuro, Poliedo fritou os dois bifes e sentou-se no sofá, diante da TV
desligada, decidido a encontrar um emprego no dia seguinte.
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