quarta-feira, 23 de março de 2016

um grito na noite


o que nós fizemos?


um vidro quebrou
uma cadeira caiu
o gato rosnou
e então um grito alto,
daqueles que vêm de dentro da alma

"almas não gritam", ele diria.

o corpo com fome grita
a garganta seca grita
o filho abandonado grita
o corpo com ódio grita

mas alma não grita.

a alma está entre o estômago e o coração.
não é um órgão ou glândula,
mas está lá, espremida.

o estômago vazio grita
o coração inerte grita
o gato adestrado já não grita 
a falta de espaço provoca o grito.

o que poderia ter sido,
os passados possíveis...
     um eco.


então uma gaveta se abriu,
ele mexeu nos talheres
e foi aí que o corpo caiu no chão.

e a esposa?

demorou um pouco.
ela abriu uma porta,
veio andando depressa
e quando chegou na cozinha
deu o grito mais assustador que eu já ouvi na minha vida.


os vizinhos distantes também ouviram
mas seguiram suas novelas.

afinal, foi só mais um grito na noite.







noite de tédio em maio de 2012



tédio.
nenhuma rota de fuga hoje.
ilhado no meu recanto
alheio à chuva
filtro sons
mato alguns mosquitos, mato o tempo, corto as unhas do pé.

sinto que alguém me observa.
atuo numa fantasia premeditada, esperando que algo aconteça.
nada jamais acontecerá.

cato fios de cabelo pela casa.
ouço a chuva,
corroído pelo vazio.

escuto passos no corredor e imagino uma visita inesperada.
outra porta se abre,
minha fé se fecha.

a chuva resolve se lançar com tudo
me fazendo lembrar de um amigo que mora na rua.
torço pra que ele esteja seguro.
(certamente estará.)
vive na rua com a filha de um diplomata nigeriano.

tempos atrás, essa garota me ofereceu um boquete no meio de uma noite turva
por 5 reais.

não aceitei.

só não consigo me lembrar o motivo
disso tudo.



05/2012

quarta-feira, 16 de março de 2016

política


me sento apático para escrever.
o país ferve lá fora, bem longe.
me sinto absolutamente fraco.

nada novo.

caminho devagar, de meia, em silêncio
para não acordar o bicho aqui dentro.

os escândalos políticos não me interessam.
os escândalos políticos não me empolgam.
não há nada novo nisso.

vejo as multidões se agitarem.
vejo as multidões se agredirem.
cheiro o manjericão crescer na minha janela.
observo meu gato se lamber com afinco.

ouço o trânsito lá fora.

os bares seguem cheios.
agricultores de mãos calejadas seguem colhendo alimento.
empresários de mãos frias seguem fazendo fortunas frias.
suicídios seguem silenciosos.
assuntos sexuais seguem mal resolvidos:
os mesmos traumas,
os mesmos tabus.

a história segue sendo escrita:
as mesmas palavras,
as mesmas cores:
azul, vermelho
verde, amarelo.

não há nada novo lá fora.

os escândalos políticos não me impressionam.
sigo alheio, imune, inerte, em silêncio.

um silêncio pesado.
silêncio de morte.

choro de repente
e me assusto.

algo enfim
me surpreende
hoje.


sábado, 12 de março de 2016

para não enlouquecer totalmente



mantenha-se hidratado
vai fazer um boxe
lava a louça
separa o lixo reciclável

passa um pano no chão
ouve um jazz
faz umas flexões
pula corda

toma um banho quente
fuma um cigarro
bebe um café
dropa um valium logo

luta mais boxe
ouve Lenine
Racionais
Yamandu

faz um alongamento
medita
me dita a direção.

abraça tua esposa
pula mais corda
limpa a areia dos gatos
come um pouco

lava aquela roupa
termina aquele poema
grava aquela ideia nova
respira um pouco.

brinca com o gato
treina jab com a direita na frente do espelho
(mantém a guarda alta)
passa arnica no ombro.

bola mais um
faz um café
bebe água com gengibre
mantenha-se sempre hidratado.

só não fica nesse sofá
definhando

vai





terça-feira, 8 de março de 2016

isso não é um poema



durante os últimos nove anos da minha vida eu fiz abuso constante de álcool.

não tô falando sobre ir pra balada no sábado e beber umas tequilas.
eu tô falando sobre dependência química. alcoolismo.

nove anos.
dos 17 aos 26
tendo o álcool como companhia,
muleta.

caí muitas vezes. muitas.
perdi amigos, me afastei.
fugi da família, me escondi.

nove anos vendo o álcool arruinar meus dias, meu corpo.
nove anos passando vergonha em público.
nove anos num buraco que eu teimava romantizar.

admiti logo cedo minha fraqueza perante a doença.
tá,
e agora, José?

passei, acredito, por todas as fases do alcoolismo.
da adaptação à paranóia.
da negação à depressão.
da barganha ao fundo do poço.

no sofá, sozinho, em pânico.
semanas sem sair de casa,
sem abrir a cortina (um cobertor na janela)
cancelando compromissos, aulas.

a doença me causou delírios e alucinações.
ódio do mundo.
fome.

exilado. mutilado.
eu tinha tudo pra ser só mais um bêbado fodido
ou um número na lista de suicidas.

muita gente desacreditou.
disseram até que eu tinha virado mendigo,
acredita?

mas sempre carreguei comigo o amuleto.

o meu poder superior:
a Música.

foi a Música que me manteve vivo, lutando.
foi pela Música que decidi não me matar naquele dia
com a faca engordurada na garganta,
na cozinha do meu calabouço, sozinho.

(meu corpo seria encontrado dez dias depois)

mas a música não era suficiente.
ou o amor por uma mulher.

busquei ajuda.
psicológica e psiquiátrica.
nove anos depois.

gastrite, traumas, obsessões, calvície.
cansei de sofrer.
cansei.
chega.

parei de beber há cinco meses.
já recaí algumas vezes
mas sigo firme.
vivo.

tenho a Música como religião
o boxe como forte aliado
e pessoas que me protegem de mim mesmo.

eu, que tanto me fragmentei.
que fui vítima e carrasco.
autor e personagem.
criador e criatura.

percebi, afinal, que corpo e mente não são departamentos distintos.

e eu  sempre eu  não sou vários, como costumava dizer.
sou apenas um.
na lama elétrica da vergonha ou no palco,
sob o foco do refletor principal.

sempre eu.

sem pagar simpatia.
a vida segue amarga.
a vida segue.
eu sigo.
sóbrio.

sobrevivente.



segunda-feira, 7 de março de 2016

Muhammad Ali



Muhammad Ali
ali
diante
de mim
colossal
impávido

Negro.

felino
pugilista, caçador 
um leopardo.

exilado dos ringues
e restaurantes
como desertor.

Negro.

converteu-se ao islamismo,
abandonou seu nome de escravo,
libertou seu povo
e conquistou o mundo branco.

como Miles Davis,
agredia forte e ligeiro entre longos períodos de silêncios
sincopados.

transitou entre o ballet pesado de Tchaikovsky e o berimbau
tranquilo e infalível de Naná,
Negro.

Ali
ali,
alucinado,
versus Larry Holmes invicto e jovem:

A fúria negra ressuscita outra vez.

Ali sempre guiado pela música imprevisível que sua mente capta.

Contra Trevor, aos quarenta, frequência nula.
Soa o gongo final.

Ali,
aqui e em qualquer lugar:
o maior atletartista do século XX.